domingo, 24 de novembro de 2024

O comércio e as profissões em espírito de família

Enriquecimento geral pelo comércio e o artesanato. Castello dei Conti (Itália)
Enriquecimento geral pelo comércio e o artesanato.
Passeata histórica em Castello dei Conti (Itália)
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs




Com o comércio, o elemento essencial da vida urbana é o ofício.

A forma como foi compreendido na Idade Média, como se regulou o seu exercício e as suas condições, mereceu reter particularmente a atenção da nossa época, que vê no sistema corporativo uma solução possível para o problema do trabalho.

Mas o único tipo de corporação realmente interessante é a corporação medieval, tomada no sentido lato de confraria ou associação de ofício, logo alterada sob pressão da burguesia.

Os séculos seguintes não conheceram dela senão deformações ou caricaturas.

Corporação: é a custo que empregamos este termo, do qual tanto se abusou, e que se prestou a inúmeras confusões a propósito das nossas antigas instituições.

Notemos em primeiro lugar que se trata de um vocábulo moderno, que só aparece no século XVIII. Até então só tinha sido questão de mestrias ou de confrarias (jurandes).

Feira medieval: comércio direto entre produtor e consumidor
Feira medieval: comércio direto entre produtor e consumidor
Estas, caracterizadas pelo monopólio de fabrico por um dado ofício numa cidade, foram bastante pouco numerosas durante o belo período da Idade Média.

Existiam em Paris, mas não no conjunto do reino, onde começaram a tornar-se o regime habitual — ainda com inúmeras exceções — apenas no fim do século XV.

A idade de ouro das corporações não foi a Idade Média, mas o século XVI.

Ora, a partir dessa época, sob o impulso da burguesia, elas começavam a ser de fato formadas pelos patrões, que fizeram da mestria uma espécie de privilégio hereditário.

Esta tendência se acentuou de tal forma, que nos séculos seguintes os mestres constituíam uma verdadeira casta, cujo acesso era difícil, senão impossível, para os operários pouco afortunados.

Estes não tiveram outro recurso senão formar por sua vez, para sua defesa, sociedades autônomas e mais ou menos secretas, as companheiragens.

Depois de ter sido, no espírito de determinados historiadores, o sinônimo de “tirania”, a corporação foi alvo de juízos menos severos e por vezes de elogios exagerados.

Os trabalhos de Hauser tiveram sobretudo por finalidade reagir contra esta última tendência e demonstrar que é preciso evitar ver nela um mundo “idílico”.

É bem certo que nenhum regime de trabalho pode ser qualificado de “idílico”, tanto a corporação como algum outro, a não ser talvez por comparação com a situação criada ao proletariado industrial do século XIX, ou com inovações modernas tais como o sistema Bedaud.

Não poderíamos definir melhor a corporação medieval do que vendo nela uma organização familiar aplicada ao ofício.

Entrar num emprego ou profissão era como entrar numa família
Entrar num emprego ou profissão era como entrar numa família
Ela é o agrupamento, num organismo único, de todos os elementos de um determinado ofício: patrões, operários e aprendizes estão reunidos, não sob uma autoridade dada, mas em virtude dessa solidariedade que nasce naturalmente do exercício de uma mesma indústria.

Como a família, ela é uma associação natural, não emana do Estado nem do rei.

Quando São Luís manda Étienne Boileau redigir o Livre des métiers (Livro dos ofícios), é apenas para colocar por escrito os usos já existentes, sobre os quais não intervém a sua autoridade.

O único papel do rei face à corporação, como de todas as instituições de direito privado, é controlar a aplicação leal dos costumes em vigor.

Como a família, como a universidade, a corporação medieval é um corpo livre, que não conhece outras leis senão as que ela própria forjou. 

É esta a sua característica essencial, que conservará até ao fim do século XV.
Loja medieval: o artesão vendia diretamente sua produção
Loja medieval: o artesão vendia diretamente sua produção

Todos os membros de um mesmo ofício fazem obrigatoriamente parte da corporação, mas nem todos, bem entendido, desempenham aí o mesmo papel.

A hierarquia vai dos aprendizes aos mestres-jurados, que formam o conselho superior do ofício.

Habitualmente distinguimos aí três graus:

̶  aprendiz,


̶ companheiro ou servente de ofício e


̶ mestre.

Mas isto não pertence ao período medieval, durante o qual, até por meados do século XIV, na maior parte dos ofícios se pode passar a mestre logo que terminada a aprendizagem.

Os serventes de ofício só se tornarão numerosos no século XVIII, quando uma oligarquia de artesãos ricos procura cada vez mais reservar-se o acesso à mestria, o que esboça a formação de um proletariado industrial.


(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)



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domingo, 17 de novembro de 2024

Relações familiares entre patrões e empregados no trabalho

Mestre açougueiro e aprendiz
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs








Durante toda a Idade Média, no início as oportunidades são as mesmas para todos, e o aprendiz só não se torna mestre por falta de jeito ou indolência.

O aprendiz liga-se a seu mestre por um contrato de aprendizagem — sempre esse laço pessoal, caro à Idade Média — comportando obrigações a ambas as partes: para o mestre, a de formar seu aluno no ofício, e seu sustento durante esse tempo; para o aprendiz, obediência a seu mestre e dedicação ao trabalho.

Transpôs-se assim ao artesanato a dupla noção de “fidelidade-proteção”, que une o senhor a seu vassalo.

Mas como aqui uma das partes contratantes é uma criança de 12 a 14 anos, todos os cuidados são tendentes a reforçar sua proteção.

Deste modo, por um lado manifesta-se maior indulgência para com suas faltas, estorvamentos e até vagabundagens; por outro, delimitam-se severamente os deveres do mestre: ele não pode ter mais que um aprendiz por vez, para que seu ensino seja frutuoso; não pode explorar seus alunos, descarregando sobre eles uma parte de seu trabalho.

Mestre padeiro e aprendiz
O aprendiz só poderá exercer a profissão como mestre depois de exercer a maestria por um ano, para que se tenha certeza de suas qualidades técnicas e morais.

“Ninguém deve ter aprendiz se não for tão sábio e tão rico que o possa ensinar, governar e sustentar, e isso deve ser conhecido pelos homens que protegem o ofício” — dizem os regulamentos.

Eles fixam também quanto o mestre deve despender diariamente com a alimentação e manutenção do aluno.

Os mestres são ainda submetidos a um direito de visita, exercido pelos jurados da corporação, que vem a domicílio examinar como o aprendiz é alimentado, ensinado e tratado.

O mestre tem para com ele os deveres e obrigações de um pai. Entre outras coisas, deve velar por sua conduta moral.

O aprendiz lhe deve respeito e obediência, apesar de conservar uma certa independência.

No caso de ele abandonar a casa de seu mestre, este deve esperar um ano antes de tomar outro, e durante esse período é obrigado a recebê-lo, se voltar.

Todas as garantias do lado mais fraco, e não do mais forte.

O tempo do aprendizado varia segundo as profissões. Em geral é de 3 a 5 anos.

No final o aluno põe à prova suas habilidades perante os jurados de sua corporação.

Essa é a origem da obra-prima, cujas condições se irão complicando com o correr dos séculos.

Armeiros
Ele deve pagar uma taxa, aliás mínima, que corresponde à sua quota da corporação.

Em alguns ofícios em que o comerciante deve provar sua solvabilidade, exige-se uma caução.

Foram estas as condições da maestria na Idade Média.

A partir do século XIV elas haviam sido independentes, mas a partir de então começam a se ligar ao poder central.

O acesso à maestria vai sendo dificultado pouco a pouco.

Por exemplo, tornou-se então obrigatório em quase todas as corporações um estágio intermediário de 3 anos, como companheiro; o postulante devia desembolsar o que se chamou “compra do ofício”, variando de 5 a 20 soldos.




(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)



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domingo, 10 de novembro de 2024

Relações patrão-empregado eram de pai para filho

Mestre e aprendiz fabricando tonéis, catedral de Bourges
Mestre e aprendiz fabricando tonéis. Vitral da catedral de Bourges.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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“Todos os membros de um mesmo ofício fazem parte da mesma corporação (antepasado nobre e remoto dos atual sindicato), mas nela não desempenham o mesmo papel.

“A hierarquia vai dos aprendizes aos mestres-jurados, formando o conselho superior da corporação.

“Durante toda a Idade Média, no início as oportunidades são as mesmas para todos, e o aprendiz só não se torna mestre por falta de jeito ou indolência.

“O aprendiz liga-se a seu mestre por um contrato de aprendizagem — sempre esse laço pessoal, caro à Idade Média — comportando obrigações a ambas as partes: para o mestre, a de formar seu aluno no ofício, e seu sustento durante esse tempo; para o aprendiz, obediência a seu mestre e dedicação ao trabalho.

Transpôs-se assim ao artesanato a dupla noção de “fidelidade-proteção”, que une o senhor a seu vassalo.

“Mas como aqui uma das partes contratantes é uma criança de 12 a 14 anos, todos os cuidados são tendentes a reforçar sua proteção.

“Deste modo, por um lado manifesta-se maior indulgência para com suas faltas, estorvamentos e até vagabundagens; por outro, delimitam-se severamente os deveres do mestre: ele não pode ter mais que um aprendiz por vez, para que seu ensino seja frutuoso; não pode explorar seus alunos, descarregando sobre eles uma parte de seu trabalho.

Marceneiros, catedral de Chartres
Marceneiros. Vitral da catedral de Chartres
“O aprendiz só poderá exercer a profissão como mestre depois de exercer a maestria por um ano, para que se tenha certeza de suas qualidades técnicas e morais.

“Ninguém deve ter aprendiz se não for tão sábio e tão rico que o possa ensinar, governar e sustentar, e isso deve ser conhecido pelos homens que protegem o ofício” — dizem os regulamentos.

“Eles fixam também quanto o mestre deve despender diariamente com a alimentação e manutenção do aluno.

“Os mestres são ainda submetidos a um direito de visita, exercido pelos jurados da corporação, que vem a domicílio examinar como o aprendiz é alimentado, ensinado e tratado.

O mestre tem para com ele os deveres e obrigações de um pai. Entre outras coisas, deve velar por sua conduta moral.

“O aprendiz lhe deve respeito e obediência, apesar de conservar uma certa independência.

“No caso de ele abandonar a casa de seu mestre, este deve esperar um ano antes de tomar outro, e durante esse período é obrigado a recebê-lo, se voltar.

“Todas as garantias do lado mais fraco, e não do mais forte.


Mestre oferece vinho a cliente e aprendiz segura a cabeça, catedral de Chartres
O mestre oferece vinho a um cliente enquanto o aprendiz segura a cabeça.
Vitral da catedral de Chartres
“O tempo do aprendizado varia segundo as profissões. Em geral é de 3 a 5 anos. No final o aluno põe à prova suas habilidades perante os jurados de sua corporação.

“Essa é a origem da obra-prima, cujas condições se irão complicando com o correr dos séculos.

“Ele deve pagar uma taxa, aliás mínima, que corresponde à sua quota da corporação. Em alguns ofícios em que o comerciante deve provar sua solvabilidade, exige-se uma caução.

“Foram estas as condições da maestria na Idade Média”.


(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)




AS CRUZADASCASTELOS MEDIEVAISCATEDRAIS MEDIEVAISHERÓIS MEDIEVAISORAÇÕES E MILAGRES MEDIEVAISCONTOS E LENDAS DA ERA MEDIEVALA CIDADE MEDIEVALJOIAS E SIMBOLOS MEDIEVAIS

domingo, 3 de novembro de 2024

Covadonga: o milagre que parou a invasão muçulmana

Gruta de Covadonga: local do milagre
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
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No ano 722, em Covadonga começou a reconquista da Espanha invadida pelos árabes muçulmanos.

Foi ali que, segundo as crônicas, Pelayo (primeiro rei das Astúrias), derrotou aos seguidores de Maomé, com o auxílio miraculoso de Nossa Senhora.

Aquela vitória milagrosa deu início a 800 anos de Cruzada nos quais se constituiu a Espanha católica.

Cangas de Onís foi a capital do novo Reino de Astúrias até o ano 774.

Nela se estabeleceu o rei Don Pelayo, e desde ela empreendeu com seus homens diversas campanhas no norte da Espanha.

Cangas de Onís ficou com seu heroico rei como único foco de resistência ao expansionismo muçulmano até então invicto.

Don Pelayo
Do antigo e decadente reino visigodo cristão tudo tinha desaparecido.

Só ficou Don Pelayo, um punhado de valentes e, o mais valioso de tudo, o impulso vencedor da Cruz e de Nossa Senhora de Covadonga.

Na batalha de Covadonga, Don Pelayo portava uma Cruz com a inscrição em latim:

 “HOC SIGNO TVETVR PIVS. HOC SIGNO VINCITVR INMICVS”

Quer dizer: “Com este signo o piedoso é protegido. Com este signo o inimigo é vencido”.

Hoje é o símbolo de Astúrias.

Junto à gruta da vitória milagrosa e sobre um pequeno morro surge hoje o Santuário de Covadonga.

Ele foi construído com a pedra avermelhada da região que se destaca entre o verde das pradarias e das florestas.

Na manhã cedinho, quando a névoa envolve o vale, é fácil ver o Santuário emergindo na solidão como se estivesse pairando no ar.

Etimologicamente Covadonga significa Cova da Senhora e está unida indissoluvelmente ao nascimento da nacionalidade hispânica.



Nossa Senhora de Covadonga, a "Santina"
Nossa Senhora de Covadonga, a “Santina”

Bendita seja a Rainha da nossa montanha, cujo trono é o berço da Espanha.

Causa da nossa alegria, vida e esperança nossa, abençoa nossa Pátria e mostra que teus filhos, teus são.

Don Pelayo, o vencedor dos muçulmanos em Covadonga, hoje é considerado na Espanha “o símbolo de uma sociedade, que após ter caído, luta para reconquistar a liberdade, é o modelo para nós reconquistarmos uma sociedade invadida por outros bárbaros”.


Vídeo: Covadonga: o milagre que parou a invasão muçulmana