domingo, 10 de agosto de 2025

A espada encravada na rocha

Detalhe da espada encravada na roca, @Fabio Gismondi-Flickr
Detalhe da espada encravada na roca, @Fabio Gismondi-Flickr
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs






Na Toscana, Itália, há uma espada introduzida numa pedra de modo inexplicável. Ela foi fincada no rochedo por um santo no momento de sua conversão e até hoje se estuda esse mistério.


Em 1148 nascia em Chiusdino, uma vila na província de Siena, Galgano Guidotti, filho de um nobre senhor feudal.

Quando jovem, ele se mostrou um cavaleiro implacável, entregue a uma vida de devassidão, arrogância, egoísmo e violência.

Até que, em 1180, o Arcanjo São Miguel lhe apareceu e pediu que contemplasse o cume de uma colina.

Galgano viu então Jesus e Maria em pé, no interior de um templo, cercados pelos 12 Apóstolos. A presença do próprio Deus parecia envolvê-los.

Atônito, o jovem sentiu uma força invisível empurrando-o em direção ao cume do Monte Montesiepi.

San Galgano Guidotti, Pietro di Giovanni d'Ambrogio, 'Il Sassetta'  (1410–1449)
San Galgano Guidotti, 
Pietro di Giovanni d'Ambrogio, 
'Il Sassetta'  (1410–1449)
Ao chegar lá, a visão se desvaneceu e uma voz, identificada com o Arcanjo São Miguel, se dirigiu a ele novamente, dizendo: “Renuncia a todos os bens e prazeres terrenos”.

Diante desse pedido radical, Galgano se mostrou cético. O príncipe dos Arcanjos lhe fez sentir que ele tinha toda uma vida de pecado incompatível com a nobreza, pelo que ele devia expiar com penitência.

Galgano respondeu que mudar de vida ser-lhe-ia tão difícil como atravessar uma pedra com sua espada.

E para dar força ao que acabava de dizer, sacou sua espada da bainha e a cravou numa pedra próxima.

Mas eis que, em vez de a lâmina se quebrar, afundou até o cabo na rocha como se fosse manteiga...

O cavaleiro ficou tão comovido que jurou colocar uma cruz no local da aparição do Arcanjo.

De fato, o gládio afundara tanto, que só ficou sobressaindo a empunhadura, formando uma cruz.

Ele caiu de joelhos, entregou-se a Deus, renunciou a seus títulos e posses, e se retirou para uma caverna no topo do Montesiepi.

Depois construiu uma cabana ao lado da espada cravada na pedra.

Ali, pelo resto de sua curta vida, se converteu num santo ermitão dedicado a Deus e às visões que testemunhou, não sem causar espanto a seus entes queridos.

Morreu um ano depois, em 3 de dezembro de 1181, aos 33 anos.

Em 1185, pouco depois da morte de Galgano Guidotti, o Papa Lúcio III declarou-o santo.

Para preservar a espada, a Igreja construiu ao redor dela uma Capela de forma circular, que se tornou local de peregrinação, onde viajantes, peregrinos e curiosos afluíam em massa para contemplar a espada milagrosamente cravada na pedra.

Prodigioso fato confirmado


Capela de Montesiepi
Capela de Montesiepi
O gládio continua no local para ser visto e venerado por quem quiser. Porém, em nossa época revolucionária, aumentaram não os crentes, mas os céticos, que põem em dúvida fato tão maravilhoso.

Então, em 2001, padres da Capela Montesiepisolicitaram a cientistas da Universidade de Pavia estudar o prodígio, visando confirmar ou não os rumores de que não passava de uma lenda ou crendice medieval.

Foi escolhido para essa tarefa o químico Luigi Garlaschelli, “investigador do oculto”, que se destacou espalhando palhaçadas a respeito do Santo Sudário de Turim, até ser desmentido por cientistas sérios.

Primeiramente Garlaschelli descobriu, para seu espanto, que o estilo da espada correspondia àquelas feitas no final do século XII, época do milagre, fato confirmado pela datação por carbono.

Portanto, a espada não é uma falsificação nem uma réplica moderna.

Para espanto ainda maior, verificou que várias pessoas já tinham tentado retirar a espada da pedra.

Na década de 1960, um homem havia conseguido puxar parte da espada, e em 1991 outro homem fez o mesmo.

Após essas tentativas, os sacerdotes prenderam a espada com concreto ou chumbo, para garantir que o gládio não fosse quebrado.

Isso levou algumas pessoas a acreditarem que não era mais a mesma espada original e que alguém a havia substituído por uma falsa, ou que a metade inferior da espada não existia.

Mas quando o químico Garlaschelli removeu a metade superior da espada, a linha de quebra se encaixou perfeitamente, e a metade inferior da lâmina permaneceu na rocha.

Radar geológico ratifica o prodígio


A pedra com a espada no centro da capela
A pedra com a espada no centro da capela
Graças aos documentos oficiais vaticanos de canonização de São Galgano, bem como a uma série de biografias escritas por autores posteriores, a historicidade do santo está muito mais bem atestada do que a de muitas figuras históricas.

Muitos relatos contemporâneos da vida do nobre cavaleiro evocam sua vida virtuosa após a conversão e as inumeráveis graças obtidas por sua intercessão após a morte.

Cientistas da Universidade de Pavia constataram com um radar geológico que a espada estava de fato profundamente cravada na rocha e que a lâmina havia penetrado sem se quebrar.

Não puderam explicar como isso foi possível. O radar também permitiu identificar uma cavidade sob a rocha, suficiente grande para ser um túmulo, possivelmente contendo os restos mortais de São Galgano.

Os moradores acreditavam desde remotos séculos que o corpo do santo está enterrado perto da pedra, mas ninguém sabe exatamente onde.

Segundo a tradição, lobos defenderam São Galgano, já eremita, devorando um ladrão que queria roubar a espada.

As mãos do bandido ficaram exibidas na capela como um aviso a potenciais ladrões.

Até hoje se exibem, na capela de Montesiepi, as duas mãos mumificadas.

Com base na datação por carbono, determinou-se que ambas também datam do século XII.



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domingo, 27 de julho de 2025

Europa saiu do caos quando as famílias se apropriaram indissoluvelmente da terra

Casas camponesas em Veules-les-roses, Normandia
Os antepassados foram piratas, os filhos proprietários forjaram uma civilização.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
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A formação da França foi obra de milhares de famílias obstinadamente fixadas ao solo, no tempo e no espaço.

Francos, borguinhões, normandos, visigodos, todos esses povos móveis, cuja massa instável faz da Alta Idade Média um caos tão desconcertante, formavam desde o século X uma nação solidamente ligada à sua terra, unida por laços mais seguros que todas as federações cuja existência se proclamou.

O esforço renovado dessas famílias microscópicas deu origem a uma vasta família, um macrocosmo, cuja brilhante administração a linhagem capetiana simboliza maravilhosamente, conduzindo durante três séculos de pai para filho, gloriosamente, os destinos da França.

É certamente um dos mais belos espetáculos que a história pode oferecer, essa família sucedendo-se em linha direta acima de nós, sem interrupção, sem desfalecimento, durante mais de trezentos anos — tempo equivalente ao que transcorreu desde o rei Henrique IV até a guerra de 1940.

Mas o que importa compreender é que a história dos Capetos diretos é apenas a história de uma família francesa entre milhões de outras.

Esta vitalidade, esta persistência na nossa terra, todos os lares de França a possuíram num grau mais ou menos equivalente, exceção feita a acidentes ou acasos, inevitáveis na existência.

A Idade Média, saída da incerteza e do desacordo, da guerra e da invasão, foi uma época de estabilidade, de permanência no sentido etimológico da palavra.

Isto se deve às instituições familiares, tais como as expõe o nosso direito consuetudinário.

Nelas se conciliam, com efeito, o máximo de independência individual e o máximo de segurança.

Cada indivíduo encontra em casa a ajuda material, e na solidariedade familiar a proteção moral de que pode ter necessidade.

Ao mesmo tempo, a partir do momento em que se basta a si próprio, ele é livre para desenvolver a sua iniciativa, “fazer a sua vida”, nada entrava a expansão da sua personalidade.

O castelo de Rambures é outro exemplo da Normandia. Uma família nobre abriu o que nós chamaríamos uma 'fazenda'.
O castelo de Rambures é outro exemplo da Normandia.
Uma família nobre abriu o que nós chamaríamos uma 'fazenda'.
Mesmo os laços que o ligam à casa paterna, ao seu passado, às suas tradições, não têm nada de entrave. A vida recomeça inteira para ele, tal como biologicamente recomeça, inteira e nova, para cada ser que vem ao mundo.

Ou também como a experiência pessoal, tesouro incomunicável que cada um deve forjar para si próprio, e que só é válido desde que lhe pertença.

É evidente que tal concepção da família basta para fazer todo o dinamismo e também toda a solidez de uma nação.

A aventura de Robert Guiscard e dos irmãos — filhos-segundos de uma família normanda excessivamente pobre e excessivamente numerosa, que emigra, torna-o rei da Sicília e funda aí uma dinastia poderosa — eis o próprio tipo da história medieval, toda feita de audácia, sentimento familiar e fecundidade.

O direito consuetudinário, que fez a força do nosso país, opunha-se nisso diretamente ao direito romano, no qual a coesão da família se deve apenas à autoridade do chefe, estando todos os membros submetidos a uma rigorosa disciplina durante toda a vida — concepção militar, estatista, repousando sobre uma ideologia de legistas e de funcionários, não sobre o direito natural.

Comparou-se a família nórdica a uma colméia que se desloca periodicamente e se multiplica, renovando os terrenos de colheita; e a família romana a uma colméia que não enxamearia nunca.

Sobre a família “medieval” se disse também que ela formava pioneiros e homens de negócios, enquanto a família romana dava nascimento a militares, administradores, funcionários.

É curioso seguir ao longo dos séculos a história dos povos formados nessas diferentes disciplinas, e verificar os resultados a que chegaram.

A expansão romana tinha sido política e militar, e não étnica. Os romanos conquistaram pelas armas um império e o conservaram por intermédio dos seus burocratas.

Esse império só foi sólido enquanto soldados e funcionários puderam vigiá-lo facilmente. Mas não parou de crescer a desproporção entre a extensão das fronteiras e a centralização, que é o fim ideal e a conseqüência inevitável do direito romano.

O Império desabaria por si próprio, pelas suas próprias instituições, quando o ímpeto das invasões lhe veio dar o golpe de misericórdia.

Podemos opor a este exemplo o das raças anglo-saxônicas. Os seus costumes familiares foram idênticos aos nossos durante toda a Idade Média.

Contrariamente ao que se passou entre nós, eles os mantiveram, e é isso sem dúvida que explica a sua prodigiosa expansão através do mundo.

Casas populares na Alemanha.
Casas populares na Alemanha.
Vagas de exploradores, pioneiros, comerciantes, aventureiros e temerários, deixando as suas casas a fim de tentarem a sorte, sem por isso esquecerem a terra natal e as tradições dos pais — eis o que funda um império.

O Renascimento retomou o conceito pagão romano da família e afundou a ordem medieval

Os países germânicos, que nos forneceram em grande parte os costumes que a nossa Idade Média adotou, cedo se impuseram o direito romano.

Os seus imperadores estavam em situação de retomar as tradições do Império do Ocidente. Julgavam que o Direito Romano lhes fornecia um excelente instrumento de centralização para unificar as vastas regiões que lhes estavam submetidas.

Portanto, desde muito cedo foi aí posto em prática, e desde o fim do século XIV constituía definitivamente a lei comum do Sacro Império, ao passo que na França a primeira cadeira de Direito Romano só foi instituída na Universidade de Paris em 1679. Por isso a expansão germânica foi mais militar que étnica.

A França foi sobretudo modelada pelo direito consuetudinário.

É certo que temos o hábito de designar o sul do Loire e o vale do Reno como “regiões de direito escrito”, isto é, de direito romano, mas isso significa que os costumes dessas províncias se inspiraram na lei romana, não que o Código Justiniano tenha aí vigorado.

Durante toda a Idade Média a França manteve intactos os seus costumes familiares, as suas tradições domésticas. Somente a partir do século XVI as nossas instituições, sob a influência dos legistas, evoluem num sentido cada vez mais “latino”.

A transformação se opera lentamente, e começa a notar-se em pequenas modificações. A família francesa remodela-se sobre uma base estatista, que ainda não tinha conhecido.

A maioridade é concedida aos vinte e cinco anos, como na Roma antiga, pois aí o filho encontrava-se em perpétua menoridade em relação ao pai, e não havia inconveniente em que ela fosse proclamada bastante tarde.

Ao casamento — considerado até então como um sacramento, com a adesão de duas vontades livres para a realização do seu fim — vem acrescentar-se a noção do contrato, do acordo puramente humano, tendo como base estipulações materiais.

Ao mesmo tempo que o pai de família concentra rapidamente nas suas mãos todo o poder familiar, o Estado encaminha-se para a monarquia absoluta.

As famílias burguesas geraram verdadeiras obras primas de aconchego defendendo zelosamente a propriedade familiar. Foto: Dornstetten, Alemanha.
As famílias burguesas geraram verdadeiras obras primas de aconchego
defendendo zelosamente a propriedade familiar. Foto: Dornstetten, Alemanha.
A despeito das aparências, a Revolução Francesa não foi um ponto de partida, mas um ponto de chegada — o resultado de uma evolução de dois a três séculos. Ela representa o completo desenvolvimento da lei romana nos nossos costumes, à custa do direito consuetudinário.

O que Napoleão fez foi apenas concluir a obra, instituindo o Código Civil e organizando o exército, o ensino — toda a nação — sobre o ideal funcionarista da Roma antiga.

O direito de propriedade se torna cada vez mais absoluto e individual. Os últimos traços de propriedade coletiva desapareceram no século XIX, com a abolição dos direitos comunais e de terras baldias.

Podemos, aliás, perguntar se o direito romano, quaisquer que sejam os seus méritos, convinha às características da nossa raça, à natureza da nossa terra.

Poderia esse conjunto de leis, forjadas em todos os elementos por legistas e por militares — essa criação doutrinal, teórica, rígida — substituir sem inconvenientes os nossos costumes elaborados pela experiência de gerações, lentamente moldados à medida das nossas necessidades?

Poderia ele substituir os nossos costumes, que nunca foram nada mais que os nossos próprios hábitos, os usos de cada indivíduo — ou, melhor ainda, do grupo de que cada um fazia parte — constatados e formulados juridicamente?

O Direito Romano descristianizado minou a família

O Direito Romano tinha sido concebido por um Estado urbano, não por uma região rural. Falar da Antiguidade é evocar Roma ou Bizâncio, mas para fazer reviver a França medieval é preciso evocar não Paris, mas a Ilha de França; não Bordéus, mas a Guiana; não Rouen, mas a Normandia.

Não podemos concebê-la senão nas suas províncias, de solo fecundo para belo trigo e bom vinho. É um fato significativo, durante a Revolução Francesa, ver quem antes se chamava manant (aquele que fica) tornar-se o cidadão, pois em cidadão há cidade.

Compreende-se, já que a cidade iria deter o poder político, o poder principal, e tendo deixado de existir o costume, a partir daí tudo deveria depender da lei.

As novas divisões administrativas da França — os departamentos, que giram todos à volta de uma cidade, sem ter em conta a qualidade do solo dos campos que a ela se ligam — manifestam bem esta evolução de estado de espírito.

Nessa época a vida familiar estava suficientemente enfraquecida para que pudessem estabelecer-se instituições tais como o divórcio, a alienabilidade do patrimônio ou as leis modernas sobre as sucessões.

As liberdades privadas, das quais antes tinham sido tão ciosos, desapareciam perante a concepção de um Estado centralizado à maneira romana.

Talvez devêssemos procurar aí a origem de problemas que depois se puseram de modo tão agudo: problemas da infância, educação, família, natalidade.

Eles não existiam na Idade Média, porque a família era então uma realidade que possuía para sua existência a base material e moral e as liberdades necessárias.


(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)

Agricultura orgânica medieval





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domingo, 13 de julho de 2025

A transmissão da propriedade privada:
alicerce da unidade e continuidade familiar

O respeito religioso da propriedade e da herança familiar, que não podia ser prejudicado pela autoridade pública foi fator de prosperidade tranquila e continuada. Na foto: casas populares na aldeia de Gueberschwihr, Alsácia, França.
O respeito religioso da propriedade e da herança familiar,
que não podia ser prejudicado pela autoridade pública
foi fator de prosperidade tranquila e continuada.
Na foto: casas populares na aldeia de Gueberschwihr, Alsácia, França.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
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Na Idade Média, a herança familiar, quer se trate de um arrendamento servil ou de um domínio senhorial, permanece sempre propriedade da linhagem.

É impenhorável e inalienável, os reveses acidentais da família não podem atingi-la. Ninguém pode tomá-la, e a família também não tem o direito de a vender ou negociar.

Quando o pai morre, a herança de família passa para os herdeiros diretos.

Tratando-se de um feudo nobre, o filho mais velho recebe quase a sua totalidade, porque a manutenção e defesa de um domínio requer um homem, e que seja amadurecido pela experiência.

Esta a razão do morgadio, que a maior parte dos costumes consagra.

Para os arrendamentos, o uso varia com as províncias, sendo por vezes a herança partilhada, mas em geral é o filho mais velho quem sucede.

Notemos que se trata aqui da herança principal, do patrimônio de família.

Em tal circunstância as outras são partilhadas pelos filhos mais novos, mas é ao mais velho que cabe o “solar principal”, com uma extensão de terra suficiente para ele viver com a sua família.

É justo, pois afinal o filho mais velho quase sempre secundou o pai, e depois dele é quem mais cooperou na manutenção e na defesa do patrimônio.

Em algumas províncias, tais como Hainaut, Artois, Picardie e em algumas partes da Bretanha, não é o mais velho, e sim o mais novo o sucessor da herança principal.

Uma vez mais, isso ocorre por uma razão de direito natural, porque numa família os mais velhos são os primeiros a casar, estabelecendo-se então por conta própria, enquanto o mais novo fica mais tempo com os pais e cuida deles na velhice.

Este direito do mais jovem testemunha a elasticidade e a diversidade dos costumes, que se adaptam aos hábitos familiares de acordo com as condições de existência.

De qualquer maneira, o que é notável no sistema de transmissão de bens é que passam para um único herdeiro, sendo este designado pelo sangue.

“Não existe herdeiro por testamento”, diz-se em direito consuetudinário.

Na transmissão do patrimônio de família, a vontade do testamenteiro não intervém.

Pela morte de um pai de família, o seu sucessor natural entra de pleno direito em posse do patrimônio.

“O morto agarra o vivo”, dizia-se ainda nessa linguagem medieval, que tinha o segredo das expressões surpreendentes.

A paz, o bem-estar, a prosperidade no sosego exigia um primoroso respeito da propriedade familiar. Atentar contra ela e contra a herança era um crime inconcebível. Na foto: casas da pequena burguesia de Obernai, na Alsácia.
A paz, o bem-estar, a prosperidade no sosego exigia um primoroso respeito da propriedade familiar.
Atentar contra ela e contra a herança era um crime inconcebível.
Na foto: casas da pequena burguesia de Obernai, na Alsácia.
É a morte do ascendente que confere ao sucessor o título de posse, e o coloca de fato na posse da terra.

O homem de lei não tem de intervir nisso, como nos nossos dias.

Embora os costumes variem de acordo com as províncias e conforme o lugar, fazendo do mais velho ou do mais novo o herdeiro natural, e embora varie a maneira como sobrinhos e sobrinhas possam pretender à sucessão na falta de herdeiros diretos, pelo menos uma regra é constante: só se recebe uma herança em virtude dos laços naturais que unem uma pessoa a um defunto.

Isto quando se trata de bens imóveis, porquanto os testamentos só dizem respeito aos bens móveis ou a terras adquiridas durante a vida, e que não fazem parte dos bens de família.

Quando o herdeiro natural é notoriamente indigno do seu cargo, ou se é pobre de espírito, por exemplo, são admitidas alterações, mas em geral a vontade humana não intervém contra a ordem natural das coisas.

“Instituição de herdeiro não tem lugar”, tal é o adágio dos juristas de direito consuetudinário.

É neste sentido que ainda hoje se diz, falando das sucessões reais: “O rei morreu, viva o rei”.

Não há interrupção nem vazio possível, uma vez que só a hereditariedade designa o sucessor. Por isso a gestão dos bens de família se acha continuamente assegurada.



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domingo, 29 de junho de 2025

A força do vínculo familiar na Idade Média



Na Idade Média havia guerras de castelo a castelo, uma família entrava em luta com outra.

E isso causa uma sensação misturada de censura e admiração. Não é só de censura, mas também de admiração.

A censura se compreende facilmente: não se guerreia à toa, e sobretudo entre católicos.

Mas, a admiração de onde vem? Não se percebe logo qual é o fundo de admiração.

Ela vem exatamente desse ponto: que haja guerra privada é uma coisa péssima, porque não se compreende que as várias partes de um todo façam guerra entre si.

Mas a guerra de castelo a castelo, de família a família, era uma afirmação da solidariedade dos vários elementos componentes de uma família. Se um membro foi atingido, toda a família se mobiliza e vai combater a outra família, que, também ela, se defende.

Certos historiadores e pregadores de meia tigela vituperam esse costume. Mas, curiosamente, o acham bonito quando o contexto é emoliente e até imoral.

Por exemplo, a atmosfera de Romeu e Julieta, a briga das famílias Capuleto e Montechio entre si, tem um fundo sentimental e por isso é promovida modernamente.

Essa briga é inteiramente antinatural. Duas famílias que fazem parte de uma mesma cidade e combatem entre si é uma coisa mal feita.

Mas, entre os dois extremos:

1) das famílias cujos membros já não têm solidariedade entre si e não se apoiam uns aos outros, e por isso não brigam, ou

2) a das famílias cuja solidariedade chega até o exagero do combate,

Eu prefiro ainda, como abuso menor, o exagero do combate, do que a completa dissolução e liquidação da família, para dar nesta espécie de compoteiras de asfalto que são as sociedades modernas.

A causa admirável é a predominância da vida de família em toda a organização política e social da Idade Média e nas instituições que sobreviveram à Idade Média até a Revolução Francesa.


(Autor: Plinio Corrêa de Oliveira, palestra em 1955, sem revisão do autor).



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domingo, 15 de junho de 2025

A vida socio-política medieval brotava da vida de família

Habitantes de Nantes homenageiam a Jean de Montfort e sua mulher.
Luis Dufaur
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A família é o ponto de partida da vida.

E quando a vida da família se projeta na vida social injeta nela sua vitalidade.

Nasce assim uma sociedade orgânica e viva, por contraposição a uma sociedade inorgânica e morta típica dos totalitarismos modernos.

Para termos uma idéia não apenas teórica, mas viva, do que seja uma sociedade orgânica, seria interessante remontarmos a alguns séculos atrás.

Quando o Império Romano vivia ainda no esplendor de sua glória e na pujança de suas instituições administrativas e jurídicas, era ele sulcado por estradas admiravelmente bem traçadas.

Muitas dessas estradas, ao menos em parte, ainda subsistem em nossos dias.

Mas quando os bárbaros invadiram o Império, a incultura apoderou-se de toda a Europa.

O poderoso e estruturado Estado romano ruiu, as estradas começaram a ser pouco freqüentadas e se deterioraram.

Por assim dizer, cada cidade transformou-se numa ilhota.

A família von Kurneber guiava um vasto conjunto de almas
A família von Kurneber guiava um vasto conjunto de almas
E cada ilhota dessas era como uma espécie de unidade econômica auto-suficiente, em que os habitantes eram obrigados a tirar todos os meios, todos os recursos do próprio solo para viver.

Dessa maneira estruturou-se numa economia de subsistência direta, sem comércio.

E por causa disso, também a vida de alma da pequena comunidade foi tomando uma configuração típica e inconfundível.

Em cada lugar começa a aparecer uma arquitetura própria, uma indumentária própria, trajes regionais próprios, os dialetos vão se formando.

Por outro lado, os costumes vão se diferenciando, e nos primórdios dos séculos XI e XII encontramos a Europa toda transformada num mosaico de pequenos mundos avulsos, cada um estuante de vitalidade própria.

Dessa vitalidade podemos bem ter uma ideia se nos reportamos ao que dela ainda existe hoje.

Todo turista que vai à Europa encanta-se em conhecer os trajes regionais, as arquiteturas regionais as danças regionais que são remotos e resistentes resquícios exatamente dessa proliferação de variedades da Idade Média.

Remotos resquícios que nos dão ideia de como em cada lugar, em cada ponto, foi se formando como que uma cultura própria e uma civilização própria.

Tal proliferação de vida estuante, como se vê bem, não era produto de uma planificação, de um decreto, de uma portaria que vinha de cima.

Cada família e região gerava seu estilo de roupas e apresentação. Na foto, vestimentas típicas de uma aldeia da Bretanha, França.
Cada família e região gerava seu estilo de roupas e apresentação.
Na foto, vestimentas típicas de uma aldeia da Bretanha, França.
Muito pelo contrário, vinha de baixo para cima, sem necessidade de intervenções estatais federais, estaduais, municipais. Essa vida plena vinha da vida de família.

Eram os indivíduos, eram as famílias que, em coletividades muito pequenas, onde o Poder Público se afirmava pouco, naturalmente comunicavam a sua força vital e a sua influência ao ambiente.

E era, portanto, uma ordem de coisas em que o indivíduo, a família, o costume lideravam muito mais do que a autoridade jurídica propriamente constituída.


(Autor: Plnio Corrêa de Oliveira, "Catolicismo", maio de 2002)



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