São Luis IX, rei da França

São Luis: estátua da capela inferior da Sainte Chapelle. Fundo: capela superior. Coroa de Espinhos no relicário atual.
São Luis: estátua da capela inferior da Sainte Chapelle.
Fundo: capela superior. Coroa de Espinhos no relicário atual.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs












O filhote de Leão:
São Luís, estadista da Cristandade

Em 25 de abril de 1214 um menino nasceu no castelo de Poissy, perto de Paris.

Há hoje no local um mosteiro para honrar aquela criança, que conhecemos pelo nome de São Luís IX, Rei da França.

O feliz evento aconteceu em meio a uma tormenta política.

Nesse ano, seu avô, o rei Felipe Augusto, derrotou na batalha de Bouvines uma coalizão de príncipes e nobres franceses revoltados, apoiados pelo rei da Inglaterra, João Sem-Terra, sustentados pelo imperador Othon IV e auxiliados por tropas flamengas da Holanda e da Lorena.

João Sem-Terra cobiçava a coroa francesa e o imperador alemão Othon IV tinha sido excomungado pelo Papa.

A vitória de Bouvines foi considerada um “autêntico juízo de Deus” que salvou o trono a ser ocupado um dia pelo principezinho.

Quando ele aprendeu a escrever, assinava Luís de Poissy, gostava de cantar na igreja e ouvir os feitos bélicos de Bouvines dos próprios lábios de seu avô.

Ao subir ao trono, os conselhos do velho monarca inspiraram-no no exercício do poder régio.

Filhote de Leão

Seu pai, Luís VIII, o Leão, faleceu quando voltava de uma Cruzada contra os hereges albigenses. Sua prematura morte causou consternação.

O reino da França estava muito longe de ser a respeitada estrutura política que São Luís legou depois à sua descendência.

No sul, ainda crepitava a revolta da heresia cátara, panteísta e imoral, que corrompia os costumes até além Pirineus.

A Europa cristã estava ameaçada em todas suas fronteiras, e graves desordens grassavam em seu interior.  Os mongóis arrasavam a Europa Central e miravam o coração da Europa.
A Europa cristã estava ameaçada em todas suas fronteiras, e graves desordens grassavam em seu interior.
Os mongóis arrasavam a Europa Central e miravam o coração da Europa.
No leste, após ser derrotado em Bouvines, Othon IV renunciara à coroa imperial, afastando-se da política.

Porém, os partidários do erro, que negavam o poder do Papa de destituir imperadores, soberanos, bispos e abades, ainda ateavam crises, desmandos e guerras.

Os Papas estavam absorvidos por esse conflito teológico e político.

Na França, o poder da família real era pequeno se comparado ao do rei da Inglaterra, que também era duque da Normandia e da Aquitânia e cujas terras estendiam-se do Canal da Mancha ao Mediterrâneo.

Ademais, turbulentos senhores feudais geravam desordens, atritos e guerras locais.

Na Espanha e no Mediterrâneo, os muçulmanos promoviam incursões, infestavam o mar com sua pirataria e ameaçavam os portos cristãos.

As notícias do leste da Cristandade eram alarmantes: os mongóis devastavam países batizados havia não muito tempo e parecia que ninguém deteria sua marcha infernal rumo ao Ocidente.

Margarida de Provence, esposa de São Luís
Margarida de Provence, esposa de São Luís
Do decadente e cismático Império de Bizâncio provinham muitas intrigas e apelos desesperados em virtude do progresso das hordas do Islã na Terra Santa e na Ásia Menor.

Ao pequeno “Louis de Poissy” incumbiu o dever de salvar o reino e equilibrar a Europa que soçobrava.

Sua mãe, a piedosa rainha Branca de Castela, era constituída da matéria-prima dos verdadeiros chefes de Estado.

Enérgica e diplomática, ela foi nomeada regente durante a minoridade do rei, que herdou sua piedade e seu caráter.

São Luís foi sagrado aos 12 anos, em 29 de novembro de 1226, na catedral de Reims, mas só assumiu o poder régio em 1234.

Casou-se com uma princesa de nome poético, Margarida de Provence, que levou consigo o grão-ducado de seu pai, reforçando o poder da casa real e trazendo estabilidade e segurança.




Rei enquanto santo e santo enquanto rei

São Luís recebe enviados do Velho da Montanha, ou Príncipe dos Assassinos, seita islâmica. Guy-Nicolas Brenet  (1728 — 1792)
São Luís recebe enviados do Velho da Montanha, ou Príncipe dos Assassinos,
seita islâmica. Guy-Nicolas Brenet  (1728 — 1792)
São Luís teria preferido viver num mosteiro, na abstinência e na meditação, explicou em conferência o renomado historiador Georges Bordonove.(2)

Porém, nasceu num berço de ouro agitado pela História e com uma missão divina: reger a filha primogênita da Igreja e tornar-se o árbitro da Cristandade no século XIII.

Sua aspiração à santidade foi realizada na responsabilidade tremenda de monarca e estadista europeu.

“Ele sabia comparecer em grande pompa, acolher faustosamente, dava festas e festins quando necessário. Ele respeitava altamente sua condição de rei.

“Mas na vida privada ignorava o luxo, misturava muita água no vinho e nos molhos para lhes tirar o gosto. Quando ia às procissões, levava calçados sem sola para ocultar que caminhava com os pés nus, na lama ou no pedregulho, pois as ruas de Paris não estavam pavimentadas”, explicou Bordonove.

Segundo o historiador Henri Pourrat, São Luís era “louro, delgado, de ombros um pouco curvos, alto e de fisionomia serena. Joinville disse dele: ‘Asseguro-vos que nunca vistes um homem de tão bela aparência, quando armado. E, mais ainda, era o mais altivo cristão que os pagãos jamais conheceram’”.(3)

O aspecto físico exprimia seu valor moral. São Luís IX foi um dos homens mais extraordinariamente bem apresentados de seu reino. E a França, como sempre, o fulcro do bom gosto e da elegância!

Mas também “era um soldado intrépido, hábil na hora de conduzir uma carga de cavalaria, pondo em risco em primeira linha sua pessoa, levando um elmo dourado que se destacava por cima de todos os barões do reino e que o tornavam alvo natural dos disparos.

Entrementes, tinha horror pelo sangue derramado e após a batalha se empenhava em cuidar dos feridos e salvar os prisioneiros dos abusos”, acrescenta o historiador Bordonove.

São Luís inquietava até seus capelães, que temiam pela sua saúde. Ele saía de seus êxtases ou meditações quase esgotado, no limite do desmaio.

Mas sabia ser o mais brilhante da corte, distinto, generoso e alegre, no protocolo oficial e na vida privada. Ria à vontade, dava às vezes gargalhadas, mas nunca às custas de alguém e jamais permitindo uma expressão grosseira ou ofensiva.

Nele, o chefe de guerra era a outra face do místico. O homem piedoso e amante da virtude da pobreza constituía a outra face do monarca mais brilhante da Europa.

O tato do diplomata revertia na caridade do esmoler, e a suavidade do santo, na esperteza sagaz do diplomata.

Ele se tornou o árbitro dos conflitos da Europa e da Cristandade do século XIII porque foi santo, e foi santo porque praticou heroicamente as virtudes no exercício político do mais requintado trono da Europa e do mais terrível dos exércitos da Cristandade.

Uma coisa estava contida na outra e eram perfeitamente inseparáveis, a ponto de que, se tivesse fraquejado no múnus monárquico, não teria sido santo, e vice-versa.

Ele foi rei cristianíssimo como nenhum de seus sucessores. E o fiel por excelência do Papado até mesmo quando dizia, com inflexível lógica e imenso respeito, algumas verdades ao próprio Papa e aos bispos de vários ducados do reino.




O banquete de Saumur

São Luís na batalha de Taillebourg.  Ferdinand-Victor-Eugène Delacroix 1798-1863, Galerie des Batailles, Versailles
São Luís na batalha de Taillebourg.
Ferdinand-Victor-Eugène Delacroix 1798-1863, Galerie des Batailles, Versailles
Em 1237, o novo rei investiu seu irmão Afonso como conde de Poitiers, um riquíssimo, brilhante e populoso feudo. Mas, infelizmente, um ninho de revoltas da nobreza local!

Atiçados pelo rei Henrique III, da Inglaterra, que sonhava ser rei da França, os senhores feudais não cessavam de fazer intrigas. Já germinava a discórdia que desfecharia na guerra dos Cem Anos.

Os intrigantes haviam motejado o jovem monarca como “rei dos monges”, como “devoto” incapaz de defender sua herança.

São Luís IX quis conferir à investidura do irmão um caráter oficial e solene.

As festas incluíram um famoso banquete no castelo de Saumur e foram descritas por Joinville, autor de uma inigualável biografia do rei santo e espécie de primeiro-ministro do conde de Champagne, um dos mais poderosos, ricos e autônomos senhores da França.

— “O rei reuniu uma grande Corte em Anjou. Eu estava lá e dou testemunho que foi a melhor ordenada que já vi”.

E após descrever os grandes homens do reino sentados à mesa em suas brilhantes roupagens, prossegue:

“Atrás deles havia bem aproximadamente 30 cavaleiros vestidos com túnicas de seda que os protegiam. E, por trás dos cavaleiros, um grande número de lacaios com as armas do conde de Poitiers bordadas sobre tafetá.

“O rei estava vestido com uma túnica de seda bordada de cor azul, tendo por cima um manto de seda vermelha bordada e forrada de arminho, com um chapéu de algodão sobre a cabeça, o qual, aliás, não lhe ficava muito mal!!!, porque ele era jovem”.

Assim se apresentou o terceiro franciscano que ia descalço nas procissões, pois assim o exigiam o bem da ordem política e social, a harmonia da ordem cristã, a vocação e o cargo que Deus lhe deu.

O “devoto” no combate

São Luís recebe a vassalagem de Henrique III da Inglaterra
São Luís recebe a vassalagem de Henrique III da Inglaterra
Por detrás da deslumbrante festa crepitava o drama. Com as cerimônias, São Luís quis patentear seu poder supremo sobre o feudo.

Mas os insubordinados senhores locais interpretaram-na como provocação e tiraram pretexto para revolta.

O chefe dos dissidentes era Hugues de Lusignan, conde de la Marche, que a exemplo de Iscariote à mesa com Jesus na Última Ceia, estava sentado à mesa do rei. E seu suserano era o rei da Inglaterra, Henrique III.

A murmuração correu como rastilho de pólvora: São Luís queria usurpar os direitos do rei inglês.

A prova?

O festim e a nomeação de seu irmão como conde de Poitou!

Louco de raiva, Hugues de Lusignan abandonou Saumur às pressas, prometeu repudiar a vassalagem ao rei da França e montou uma liga militar contra a Coroa.

O rei da Inglaterra garantiu-lhe tropas que viriam por mar. Os amotinados aguardavam reforços da Espanha e o ataque do imperador alemão, que surpreenderia o rei francês pelas costas.

São Luís não se descuidou: estava perfeitamente informado dos planos, tratativas e reuniões secretas dos adversários. E antes de as tropas inglesas desembarcarem, empreendeu a ofensiva!

Os castelos de Hugues de Lusignan capitularam um após outro. E quando o rei inglês pôs o pé em terra com seu exército, era tarde demais.

Ele, porém, ousou enfrentar o “rei devoto”. O choque se deu em Taillebourg, em 1242, batalha completada em Saintes.

A carga de cavalaria conduzida pelo santo sobre um soberbo cavalo branco decidiu a batalha e mudou os rumos da Europa feudal.

São Luís em Taillebourg. Paul Lehugeur
“Luís — narra o historiador Henri Pourrat(4) —, à testa de somente oito homens de armas, lançou-se sobre a ponte de Chernete e sustentou o embate de mil ingleses, até o momento em que sua gente chegou, entusiasmada com o feito do rei”.

Séculos depois, o pintor Delacroix imortalizou a façanha. Pouco faltou para o rei inglês cair prisioneiro. A partir de Taillebourg, a Europa ficou sabendo que esse rei dos monges manejava a espada com implacável maestria.

Esplêndido vencedor, São Luís manifestou magnanimidade, inteligência, tato político e visão histórica que impressionaram a Europa feudal. Seus conselheiros quiseram convencê-lo a despojar os vencidos.

O santo reafirmou que isso estava no seu direito, mas não pediu senão aquilo que julgou politicamente inteligente.

Ao rei inglês derrotado cedeu as regiões francesas de Limousin, Périgord, Agenais, Saintonge e parte de Quercy, com a condição de tornar-se seu vassalo mediante o sagrado juramento de vassalagem.

Luís IX quis firmar os laços de amor entre os filhos de ambas as coroas. O rei da Inglaterra passou a lhe prestar as homenagens de um subordinado.

Assim fazendo, a Guerra dos Cem Anos ficou adiada de um século. Ao conde Hugues de Lusignan, chefe dos revoltosos, o rei perdoou um terço dos bens. Retirando-se para suas terras, morreu de desgosto.




A Coroa de Espinhos e a Sainte-Chapelle

Enquanto punha ordem na França e preparava a Cruzada, São Luís executou um projeto que marca a França até hoje.

Em 1239, o Império de Bizâncio consignou a Coroa de Espinhos a banqueiros venezianos como penhor de uma dívida de 135.000 libras tournois.(5)

A quantia equivalia à metade das entradas do reino francês em um ano! Porém, se comparada com os orçamentos multibilionários dos governos atuais, parece exígua: aproximadamente R$ 84.620.700,00.

São Luís assumiu a dívida, com a condição de a relíquia ficar sob a guarda da casa real francesa, em uma negociação que poderia ser comparada a empréstimos atuais envolvendo o FMI e bancos multinacionais.

Assinados os acordos e apurada a autenticidade da relíquia, ela foi levada à França por religiosos dominicanos.

No dia 10 de agosto de 1239, o santo monarca, seu irmão o príncipe Roberto I de Artois e o Arcebispo de Sens receberam a Santa Coroa, conferiram seus registros de autenticidade e entraram em cortejo na cidade de Villeneuve-l'Archevêque, na França.

Descalços e vestidos com túnicas de penitentes, o rei e o príncipe trasladaram o relicário de ouro e sua caixa de prata até a catedral de Sens.

São Luís carrega na procissão a Coroa de Espinhos até Notre. Dame Jules David, Paris, 1861
São Luís carrega na procissão a Coroa de Espinhos até Notre. Dame
Jules David, Paris, 1861
No dia 11 eles foram de barco até o castelo real de Vincennes, fora dos muros de Paris, e no 18 de agosto, carregando nos ombros o incomparável símbolo do Rei dos reis, o soberano e o príncipe penitentes entraram solenemente na capital em meio às aclamações populares.

No dia seguinte São Luís dispôs a construção da Sainte-Chapelle, para guardar definitivamente a sagrada relíquia, que entrementes ficou na basílica de Saint-Denis.(6)

E providenciou a aquisição de mais sete relíquias da Crucifixão, entre elas a do Santíssimo Sangue de Cristo, da Pedra que fechou o Santo Sepulcro, partes da Santa Lança e da Santa Esponja.

A edificação da Sainte-Chapelle custou 35.000 libras tournois, e o relicário da Coroa de Espinhos e demais relíquias da Paixão consumiram outras 135.000, devido ao ouro e às pedras preciosas empregados.

A Sainte-Chapelle foi concebida como um relicário gigante feito de cristal e pedra.

O movimento da luz através dos imensos vitrais muda o colorido interno e cria uma atmosfera irreal, verdadeiramente sobrenatural, onde a arte mais delicada e a espiritualidade mais alta se fundem num só, segundo Bordonove.

São Luís mandou construir a Sainte Chapelle para servir de relicário da Coroa de Espinhos
São Luís mandou construir a Sainte-Chapelle para ser relicário da Coroa de Espinhos
O imponderável faz esquecer as formidáveis colunas de pedra e as imensas portas da melhor madeira, convidando a alma para um voo místico.

O pensamento se descola da espessa matéria como que espiritualizada pela arte, para partir como um foguete rumo ao Céu. Na Sainte-Chapelle os valores culturais e espirituais assumem a pedra e a matéria como a alma se une ao corpo.

Que ninguém se engane, conclui o referido historiador: São Luís está presente na Sainte-Chapelle não porque as flores de lis da França e os castelos de Castela — símbolos de seu brasão — enchem os muros, mas porque na Sainte-Chapelle lateja a própria alma do santo estadista.

A Sainte-Chapelle [foto] é a capela do Palácio Real e, juntamente com suas relíquias, pertencia à Coroa, e não à Igreja, assentando aliança entre o Rei dos Céus e o rei da França.

A Coroa de Cristo legitimava a Coroa da França, sua vassala por excelência nesta Terra, e ambas se uniam como as duas faces de uma mesma medalha.

“Na linguagem dos liturgistas, a Coroa de Espinhos tornou-se um penhor de Deus confiado ao povo francês. Deus havia penhorado sua Coroa ao rei da França até o dia do Juízo Final, quando Jesus Cristo em pessoa viria bater na porta do Palácio Real de Paris para recobrar a posse da coroa de Seu Reino”.(7)

Até o fim do mundo, a monarquia francesa seria a guardiã da Coroa com que o Redentor julgará a humanidade e encerrará a História. As relíquias foram definitivamente instaladas e a capela consagrada em 26 de abril de 1248.



A pedido de São Luís, foi instituída uma festa litúrgica em 11 de agosto para comemorar a chegada da Santa Coroa à França. Dois meses depois da consagração, o Santo Rei partiu para sua maior campanha militar: as Cruzadas.




“Ressurreição” e Cruzada

São Luís acorda e anuncia a decisão de partir na Cruzada
São Luís acorda e anuncia a decisão de partir na Cruzada
São Luís regressou de Taillebourg padecendo uma disenteria que se agravou rapidamente. Esta havia sido a causa da morte de seu pai, Luís VIII.

A rainha-mãe, Branca de Castela, pediu ao abade de Saint-Denis — abadia onde repousam os restos dos reis da França — para expor à veneração pública o corpo do glorioso São Dionísio, protetor do reino, bem como as relíquias de São Eleutério e São Rústico, seus companheiros de martírio. São Luís já tinha feito seu testamento, e murmurava em voz baixa:

— “Olhai para mim. Eu era o homem mais rico e mais nobre do mundo, o mais poderoso de todos pelos tesouros, pelo meu poder e pelos meus amigos, e eis que não posso obter da morte sequer uma trégua, nem uma hora à doença. De que valeu tudo isso?”

Quando ele perdeu o conhecimento, os médicos anunciaram seu fim iminente. O Palácio Real encheu-se de lamentações, suspiros e prantos. O clero recebeu ordem de preparar as exéquias.

Em certo momento, acreditou-se que o santo-herói tinha morrido. Joinville conta:

“Ele chegou a tal ponto, que uma das damas em volta quis puxar o pano por cima do rosto, dizendo que estava morto. Outra não quis. E enquanto discutiam, Nosso Senhor agiu nele e lhe devolveu a saúde.

“Tão logo pôde falar, pediu que lhe impusessem a Cruz, e assim foi feito. Então, ao ouvir dizer que ele falara, a rainha-mãe manifestou o maior júbilo que podia.

“Mas quando soube que o filho se tinha cruzado [decidido ir para a Cruzada], como ele mesmo dizia, ela ficou num estado de luto como se o tivesse visto morto”.

Vitral da catedral Notre Dame representando a São Luís
Vitral da catedral Notre Dame
representando a São Luís
São Luís IX explicou que Nosso Senhor o havia tirado dentre os mortos para que adotasse a Cruz, montasse um exército e reconquistasse Jerusalém, que gemia desde 1187 sob a tirania muçulmana.

As rainhas Branca e Margarida, os conselheiros reais e as altas autoridades eclesiásticas tentaram de tudo para dissuadi-lo. Mas em vão.

Ele tinha certeza de que fora salvo das fauces da morte para cumprir essa missão, e não por uma simples misericórdia de Deus. Do antigo reino de Jerusalém só ficava São João d’Acre e mais alguns portos periclitantes.

O espírito sobrenatural da Cruzada estava morto. São Luís IX o ressuscitaria com o fervor dos tempos de Godofredo de Bouillon e seus companheiros de expedição.

Reformador sábio e prudente

Prevendo uma ausência longa ou definitiva, Luís IX quis, antes de se lançar na Cruzada, apalpar o estado do reino, dar proteção aos mais fracos e conciliar os poderosos.

Em 1247, inspetores percorreram o reino como outrora os missi dominici de Carlos Magno. Dominicanos e franciscanos, Ordens que viviam um momento de fervor e seriedade, iam em duplas anotando as queixas dos pobres nos campos e nas cidades, sem tomarem contato com os bailios (governadores de província, ao mesmo tempo juízes, chefes militares e coletores de impostos).

O inquérito permitiu a São Luís modificar o Conselho Real, trocar três-quartos dos bailios e definir os limites precisos de seus poderes.

Também moderou os poderes judiciários da alta nobreza, fazendo com que todo o reino pudesse apelar ao rei como juiz supremo.

O escudo de ouro de São Luís
O escudo de ouro de São Luís
São Luís também estabeleceu regulamentos relativos aos costumes das corporações de ofício — os “sindicatos” da época — concedendo-lhes autonomia e estabilidade.

Reorganizou a Prefeitura de Paris e criou uma moeda: o escudo de ouro e o grand denier de prata para facilitar o comércio, pôr fim às fraudes e moralizar a atividade econômica.

Um governante hodierno que mexesse tanto nos costumes do país seria antipatizado, mas o carisma real e a luz da santidade do monarca brilharam nessas reformas e ele foi abençoado pelo povo.

O escudo de ouro foi a primeira moeda, no sentido moderno, emitida por um rei. Nela estava cunhado o escudo — de onde o nome — com o brasão fleurdelisé do santo rei.

O escudo de São Luís foi padrão até a Idade Moderna, sendo reeditado pelos seus sucessores e imitado por bispos, príncipes e senhores que emitiam moeda, e até mesmo pelos Papas, porque era digno de fé e isento de fraude.

A moeda foi conservada por muitos como uma medalha religiosa! Assim, houve um plebiscito mudo aprovando a confiança dos franceses em seu rei.













Árbitro da Cristandade

São Luís estátua em Saint Louis, Missouri, EUA.  Fundo: rosácea de Notre Dame.
São Luís estátua em Saint Louis, Missouri, EUA.
Fundo: rosácea de Notre Dame.
A partir 1241 pioraram as notícias provenientes da Europa Oriental e da Terra Santa. A invasão dos mongóis atingiu a Polônia, a Hungria e a Romênia, após devastar a Rússia e a Ucrânia.

O chefe mongol Subedei mirava o coração da Europa, mas após esmagar o rei da Hungria em Mohi, voltou às pressas para a Ásia por razões não esclarecidas.

A corajosa rainha Branca ficou muito temerosa, mas São Luís parecia ser o único a intuir que a invasão não prosperaria.
“Quando viu a Europa ameaçada pelos tártaros — conta Pourrat —, São Luís disse: ‘Tende coragem minha mãe; ou nós os colocamos nas portas do inferno ou eles nos abrirão as portas do Céu’”.

O santo foi arguto estrategista e homem de fé: ou ele os venceria e eles iriam para o inferno enquanto pagãos horrivelmente criminosos, ou ele morreria e iria para o Céu. Nada se perderia lutando contra eles.

Uma das situações mais tempestuosas para arbitrar se deu na Bretanha, um ducado enfeudado à França mas quase independente dos pontos de vista de governo, cultural, étnico e linguístico.

Lá, Pierre de Dreux, parente de São Luís, tornou-se Duque. Audaz chefe de guerra, mas turbulento senhor feudal, Pierre ganhou o apelido de “Mauclerc” (mau clérigo) por suas exações à Igreja.

Seus atritos com os bispos bretões lhe valeram diversas excomunhões. Os Papas pouco conseguiram junto a este homem que dividiu a nobreza com conflitos de toda ordem.

Após inúmeras desordens, São Luís entrou militarmente na Bretanha e o despojou do ducado por felonia. “Mauclerc” insurgiu-se, mas o exército real, apoiado por boa parte da nobreza bretã, extinguiu a revolta.

Pierre de Dreux se submeteu ao jovem rei em Paris, em 1234. São Luís não o humilhou, mas dispôs que a Bretanha ficaria na posse do filho dele, João, o qual, por sua vez, juraria vassalagem ao rei da França juntamente com os nobres rebeldes.

O santo monarca concedeu a Pierre de Dreux o pequeno feudo de Braine. Assim, “Mauclerc” tornou-se “Braine” e acompanhou o rei na Cruzada ao Egito, onde foi gravemente ferido e morreu ao voltar, recebendo digna sepultura na necrópole familiar de Dreux.

Árbitro entre Papas e Imperador

São Luis em encontro com o Papa Inocêncio IV, em Lyon, 1248.
Louis-Jean-Francois Lagrenee (1724 – 1805)
Muito mais complicada era a secular luta entre o máximo poder temporal da Cristandade — o Imperador do Sacro Império — e o supremo poder espiritual, e indiretamente temporal, dos Papas.

O Imperador Frederico II Hohenstaufen investiu contra os pontífices Gregório IX e Inocêncio IV, tendo sido excomungado duas vezes. Gregório IX qualificou-o de “Anticristo”.

Inocêncio IV, um ano apenas após sua eleição, fugiu da Itália perseguido por ele. Nobres partidários de um e de outro estavam em situação de guerra civil e religiosa na Alemanha e na Itália.

Nesse confronto, o rei santo, que já era o mais respeitado dos príncipes cristãos, poderia ter feito prevalecer sua influência sobre o Papa e o Imperador.

Porém, ele se recusou a tal, pois queria reconciliá-los respeitando suas superioridades. A França estava prosperando tanto, que podia arcar sozinha arcar com o ônus da Cruzada.

Mas Luís queria uni-los nesta santa empresa. Gregório IX ofereceu a coroa imperial ao conde Roberto de Artois, irmão de São Luís. Contudo, o rei não aceitou, pois podia parecer usurpação e falta de respeito ao Imperador.

Em 3 de maio de 1241, arcebispos franceses que iam a um Concílio convocado por Gregório IX foram presos por Frederico II. São Luís IX pediu-lhe explicações, ao que ele respondeu secamente:

“Que vossa majestade real não se espante quando César prende no aperto e na angústia aqueles que vieram para criar angústia a César”.

São Luís IX retrucou com tanta habilidade que os arcebispos foram libertados.

Banido da Itália, Inocêncio IV instalou-se em Lyon e marcou para 1245 um Concílio que julgaria o Imperador. Este reuniu um exército em Turim, visando impedir a assembleia.

São Luís IX lhe fez saber, com tato e força: “Não toqueis no Soberano Pontífice, para não incorrerdes na cólera de Deus”.

São Luís mediador num litígio entre o rei da Inglaterra e seus barões. Georges Rouget (1783-1869), Versailles
São Luís mediador num litígio entre o rei da Inglaterra e seus barões.
Georges Rouget (1783-1869), Versailles
O Imperador entendeu: enviou ao Concílio um jurista para defendê-lo, comunicou que iria à Cruzada contra os mongóis e os sarracenos, e que indenizaria a Santa Sé.

Mas não cumpriu o prometido, voltando aos abusos. Foi então excomungado. Abandonado por boa parte de seus adeptos, pediu a intercessão de Luís IX. Este marcou um encontro sigiloso com Inocêncio IV na abadia de Cluny.

São Luís implorou ao Papa que aceitasse a proposta do imperador em troca da obrigação de ir para a Cruzada. O litígio só acabou com a morte do imperador.

No fim do caso, São Luís ficou consolidado como árbitro da Cristandade, nele confiando Papas, imperadores, episcopados e nobreza, além de corporações de ofício, de estudantes e cidades livres.




As Cruzadas

São Luis embarca para a Cruzada
São Luis embarca para a Cruzada
São Luís tinha certeza de que Deus queria dele a libertação de Jerusalém. E repetia que desejava salvar as almas dos muçulmanos, convertendo-os.

Joinville, contudo, para quem a salvação desses ímpios passava pelo extermínio, espantava-se ouvindo as intenções de tão grande chefe de armas.

Em 1240, para se livrar das potências marítimas italianas cuja politicagem prejudicara as Cruzadas anteriores, São Luís IX ordenou a construção de uma imensa fortaleza e um porto no Mediterrâneo.

Abriu-se uma estrada entre os pântanos, canalizaram-se fios de água, erigiram-se muralhas e torres de defesa e armazenamento.

A população local, que até então morava em palafitas, sentiu-se protegida com o surgimento da cidade de Aigues-Mortes, verdadeira maravilha arquitetônica a partir da qual o santo monarca embarcou para as Cruzadas — tanto para a sétima, em 25 de agosto de 1248, que durou seis anos, quanto para a oitava, em 1270.

Na VII Cruzada o rei desembarcou diante de Damietta, fortaleza que controlava o acesso ao Cairo, sede do Sultão, chefe máximo dos islamitas no Egito.

São Luís desenhou o plano de ataque. Os cavaleiros mais experimentados desceriam primeiro e estabeleceriam uma cabeça de ponte para repelir os contra-ataques mouros. O grosso do exército desembarcaria depois.

Porém, muitas naves não compareceram no dia combinado, desviadas pelos ventos. O Santo ordenou o ataque antes de os muçulmanos concentrarem mais tropas.

A frota real e a dos grandes senhores impressionavam pelo seu esplendor. Assim que a ponta de lança da cavalaria atingiu a terra, foi assediada por grande número de mouros, velozes e hábeis.

A confusão na praia foi geral. São Luís então pulou na água — como descreve Joinville —, todo armado, magnífico, com capacete luzidio e armadura de ouro; e pisou em terra junto com seus homens mais fiéis.

O pânico tomou conta dos islâmicos, que abandonaram a imponente fortaleza. O santo temeu uma emboscada e enviou observadores ao castelo que confirmaram a deserção geral.

São Luís ataca Damietta
São Luís ataca Damietta
Em Damietta, São Luís aguardou a parte do exército que faltava, enviou patrulhas de reconhecimento e pagou informantes para obter dados sobre a estrada até o Cairo e o estado de ânimo dos adversários. Cairo era mais populosa que qualquer cidade da Europa.

O único obstáculo no caminho era a fortaleza da Mansurah. Para atacá-la, era preciso atravessar um braço do rio Nilo que não tinha pontes. Um beduíno denunciou um passo, que a cavalaria atravessou, sendo que metade dos cavalos ia nadando e a metade deles tocava no fundo.

A ordem real era de fincarem pé enquanto o resto do exército cruzava o rio. Os muçulmanos hostilizavam a cavalaria, e fugiam quando esta reagia. O conde de Artois, irmão do rei, perdeu a paciência e foi atrás dos seguidores de Alá, que entraram na fortaleza deixando as portas abertas.

Quando o conde penetrou com os seus, as portas se fecharam: era uma arapuca. A ponta de lança da milícia real, composta de nobres e cavaleiros das Ordens Militares, foi massacrada por desobediência a São Luís.

O rei, que estava doente e comandava na retaguarda, percebeu a magnitude do desastre. Após diversos embates, os cruzados foram desarticulados e o santo caiu prisioneiro.

São Luís prisioneiro no Egito
São Luís prisioneiro no Egito
Os muçulmanos exigiram um alto resgate e a entrega da cidade de Damietta em troca da liberdade do monarca.

Enquanto a rainha Margarida providenciava esse dinheiro em Damietta, São Luís permaneceu numa prisão onde ocorreram fatos singulares.

O sultão Almoadam ficara ébrio de orgulho com a vitória, mas os mamelucos, que constituíam sua guarda pessoal, resolveram assassiná-lo no final do banquete da vitória.

Almoadam foi ferido, fugiu até o alto de uma torre, de onde caiu oferecendo em prantos o seu próprio trono em troca da vida. Octai, chefe dos mamelucos e os seus, traspassaram-no com inúmeros golpes.

Logo a seguir, Octai foi até a tenda de São Luís com a mão ensanguentada, dizendo:

“Almoadam já não existe. Que me darás por ter-te libertado de um inimigo que premeditava a tua ruína e a nossa?”

São Luís nada respondeu. O infiel apontou-lhe a espada, e exclamou irado:

“Não sabes que eu sou senhor de tua pessoa? Faze-me cavaleiro, ou serás morto!” São Luís respondeu: “Faze-te cristão, e te farei cavaleiro”. Octai abaixou a espada e retirou-se sem lhe fazer mal.(8)




Reordena o Reino de Jerusalém

São Luís na Cruzada
São Luís na Cruzada
A rainha Margarida de Provence salvou Damietta com um punhado de cavaleiros e reuniu o imenso resgate de 400.000 bizantinos de ouro, libertando assim o rei, a maioria dos cavaleiros e grande parte do exército prisioneiro.

São Luís trasladou-se a São João d’Acre, onde consultou os barões do Reino sobre permanecer ou não na Terra Santa.

A rainha-mãe Branca de Castela havia informado que o rei da Inglaterra tramava invadir a França e que o reino corria grande perigo.

Segundo Joinville, São Luís explicou:

“Eu não tenho paz nem trégua com o rei da Inglaterra. Mas o povo de Terra Santa quer impedir-me de partir. Eles dizem que se eu for embora, sua terra estará perdida e será destruída e que eles preferem sair comigo. Eu vos rogo pensar nisto e responder-me em oito dias”.

Os nobres, incluídos os dois irmãos do rei e os grandes senhores, julgaram que o estado do exército exigia voltar para a França, a fim de se reorganizarem.

Estátua de São Luis. Fundo: rua medieval de Jaffa.
Estátua de São Luis. Fundo: rua medieval de Jaffa.
O conde de Jaffa, senhor feudal na Terra Santa, defendeu a ideia de ficar, apoiado por Joinville. São Luís decidiu:

“Eu vim para proteger o Reino de Jerusalém e não para perdê-lo. Que os que desejarem ficar comigo falem corajosamente”.

Luís IX autorizou os outros a partir. E ficou quatro anos tentando pôr fim às desavenças entre os príncipes cristãos do diminuído Reino de Jerusalém.

O monarca fortificou os pontos estratégicos e ele próprio carregou pedras para construir castelos. Segundo o historiador Bordonove, São Luís assumiu a missão de um rei de Jerusalém sem ter o título.

Na sua mente, o objetivo de reconquistar a Terra Santa não havia mudado. Ele retornou à França em 1254, quando morreu sua mãe.

Na hora de regressar, quis ser o último a subir no navio. Seu irmão queixou-se pelo atraso. O rei respondeu:

“Conde de Anjou, se eu vos sou pesado, desembaraçai-vos de mim; mas nunca abandonarei meu povo”.

O espírito medieval exigia do grande chefe ser o primeiro a avançar e o último a se retirar.

“Jerusalém!  Nós iremos até Jerusalém!”

Para Luís IX, o fracasso da Cruzada foi um castigo pelos seus pecados, de seus nobres e do povo da França em geral.

O Reino deveria requintar a justiça de sua ordem hierárquica e sacral com piedade e humildade.

A França inteira e ele próprio deveriam se oferecer a Deus. Porém, languidesciam na Europa o heroísmo religioso, a generosidade de alma e a inteira entrega a Nosso Senhor Jesus Cristo.

O rei não encontrou apoios proporcionados e sua saúde fraquejava. Mas, apoiado na promessa divina, zarpou de Aigues-Mortes rumo à África em 2 de julho de 1270.

São Luis mandou construir Aigues Mortes como base e porto para as Cruzadas
São Luis mandou construir Aigues Mortes como base e porto para as Cruzadas
Pisando terra moura, ele “ordenou a seu capelão que lançasse a proclamação de guerra da parte de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Luís, rei de França, seu sargento”, contra a Tunísia, como narra Henri Pourrat.

O verão daquele ano foi abrasador e os poços de água estavam contaminados. O exército foi atingido pelo tifo, inclusive o rei, que havia entregado ao delfim Felipe seu testamento espiritual.

Redigido antes de partir, constituía uma obra sublime de união da Religião e da política, da Fé e da monarquia, de Cristo e da França.

A morte de São Luís
A morte de São Luís
“Meu bom filho, a primeira coisa que eu te ensino é engajar teu coração no amor de Deus. Sustenta os bons costumes do reino e destrói os malvados. Trabalha para que todos os vilões pecadores sejam varridos da Terra e, especialmente, faz tudo que te for possível para abater heresias e blasfêmias”.(9)

Seus mais próximos ouviram-no murmurar com insistência: “Jerusalém! Nós iremos até Jerusalém!” Foi seu último desejo.

Deitado sobre um leito de cinzas em forma de cruz, com as mãos cruzadas sobre o peito e o olhar posto no Céu, entrou no Paraíso e na História no dia 25 de agosto de 1270, aos 56 anos de idade.

Carlos de Anjou, seu irmão, infligiu uma dissuasiva derrota aos sarracenos; o sultão de Túnis aceitou um tratado favorável aos cristãos e a Cruzada encerrou-se.

O corpo do monarca foi trasladado para a Sicília, onde reinava Carlos, e inumado na catedral de Monreale, perto de Palermo.

Seus ossos foram levados para a Catedral de Notre-Dame em Paris, e sua disputa como relíquias foi tão grande, que eles se acham hoje dispersos nos mais variados locais da França.




“Uma espécie de rei eterno”

São Luís, estátua em Saint Louis, Missouri, EUA.
São Luís, estátua em Saint Louis, Missouri, EUA.
São Luís IX realizou a perfeição da França. Encarnou o país da harmonia, da bondade, da generosidade de alma e da inteira entrega a Nossa Senhora.

Ele parece presente na Sainte-Chapelle e em outros lugares que cantam a glória de Nosso Senhor e de Sua Mãe Santíssima.

Foi um santo segundo a alma da França, como São Fernando III de Castela, seu primo-irmão, foi o santo que a Espanha aguardava, ou Santo Henrique imperador foi o anelado da Alemanha.

Ele contribuiu para fazer da Idade Média uma Jerusalém terrestre, imagem da celeste.

Na Alemanha, quando alguém perguntava: “Como você vai?” e o outro ia muito bem, dizia: “Eu vou como vai o bom Deus na França”.

Pois, sob o santo estadista, a França imprimiu na Europa o equilíbrio ideal entre os senhores feudais, a realeza e o povo, entre o Papa e o Imperador, entre os soberanos vizinhos.

O governante sem sabedoria perde seu povo e o rei sábio o salva. Sem sabedoria, o poder civil ou eclesiástico se transforma em instrumento de perdição.

Por isso, Dom Guéranger, o grande abade de Solesmes, formulou um elogio lapidar do santo: “A Sabedoria eterna desceu um dia de seu trono no Céu e pousou sobre São Luís”.

FIM
Estátua de São Luís na basílica de Montmartre, Paris Fundo Eskimo Nebula, NGC 2392, Hubble Space Telescope
Estátua de São Luís na basílica de Montmartre, Paris
Fundo Eskimo Nebula, NGC 2392, Hubble Space Telescope
Notas:


(*) São Luís tornou-se então o árbitro da Cristandade, por suplência e em caráter excepcional, exercendo a função própria ao Imperador — no caso o ímpio Frederico II, que se tornara inepto para exercê-la; e também exercendo o papel de mediador entre o Imperador e os Papas Gregório IX e Inocêncio IV, pois sua autoridade moral superava às dos supremos titulares tanto do plano temporal quando do espiritual.
1) Dom Prosper Guéranger O.S.B., L’anné liturgique, http://www.abbaye-saint-benoit.ch/gueranger/anneliturgique/pentecote/pentecote05/003.htm.
2) Georges Bordonove, Saint Louis, conferencia pronunciada em Paris, em 16-12-92 na Fundação Dosne-Thiers.
3) Henri Pourrat, Les Saints de France, Editions Contemporaines Boivin, 1951.
4) Henri Pourrat, Id. ibid.
5) Na época de São Luís, a libra tournois era cunhada pela abadia de Tours, que lhe dava o nome. Continha 6,74 gramas de ouro, ou 80,88 gramas de prata. Em reais, a libra tournois de ouro valeria: 6,74 gramas X R$ 93,00 = R$ 626,82. Cfr.: http://fr.wikipedia.org/wiki/Livre_tournois; http://ourohoje.com/.
6) Cathédrale Notre-Dame de Paris, La Couronne d’Épines, Association Maurice de Sully, Montligeon, 2014, pp. 29 e ss.
7) Id. ibid.
8) René Grousset, Histoire des Croisades et du Royaume Franc de Jerusalem, Plon, Paris 1936, vol. III, p. 489; J. F. Michaud, História das Cruzadas, Editora das Américas, São Paulo, Vol. V, pp. 87/88.
9) Georges Bordonove, Saint Louis, col. Les rois qui ont fait la France, Ed. Pygmalion, Paris, 1984, p. 314.
10) Georges Bordonove, Saint Louis, id. ibid., p.319.





Como São Luis IX tratou aos terroristas do “Velho da Montanha”

São Luís recebe os enviados do chefe da "seita dos Assassinos"
São Luís recebe os enviados do chefe da "seita dos Assassinos".
Nicolas-Guy Brenet (1728 - 1792). Capela da École Militaire. Paris.
A seita do “Velho da Montanha” havia sido fundada por Hassan Ibn el-Sabbah um sacerdote persa zoroastriano que se instalou no Cairo. A seita era conhecida como a dos “Assassinos”, e marcou o Oriente Próximo durante perto de um século.

O terror que ela causava ficou condensado na frase de um poderoso senhor local: “Eu não ouso mais obedecer-lhe nem desobedecer-lhe”.

Um outro senhor que recebeu uma mensagem do “Velho da Montanha” intimando-o a se render, preferiu demolir seu castelo, sabendo estar ameaçado de morte a qualquer momento e ser assassinado em caso de desobediência, tal vez por algum de seus familiares drogado com maconha.

No ano de 1090, os membros da seita ismaelita dos “Assassinos” se apoderaram da fortaleza de Alamut (o “refúgio dos abutres”) nas montanhas da Pérsia.

A partir dali, eles estenderam progressivamente sua influência pela Síria e pela Palestina.

Desde aquele rochedo inexpugnável, logo rebatizado, o “refúgio da riqueza”, os grandes mestres da seita governavam por meio de intermediários.

Pelo fim do século XII, um deles de nome Rachid el-Din el-Sinan, era tão poderoso que negociava de igual a igual com Saladino.

Nunca foi anunciada a morte de algum dos grandes mestres. Visavam assim fazer que os adversários acreditassem que eram imortais.

Os cruzados francos apelidaram o poderoso chefe da seita de “Velho da Montanha”.

Os jovens sem rumo que eram recrutados pela seita dos Assassinos tinham que jurar obediência, ficavam fanatizados e drogados com maconha (haschisch). De ali provinha o nome Haschuschin, que deu o termo “assassino”.

A função do “assassino” consistia em executar todo aquele que se recusasse a pagar tributo ao “Velho da Montanha”.

Para garantir a fidelidade dos “assassinos” o grande mestre mandava drogá-los e conduzi-los a uns jardins maravilhosos ao pé dos muros de sua fortaleza.

Lá, no meio de fontes e flores, mulheres pagas se ofereciam a eles.

Quando “acordavam”, os esbirros garantiam a eles que tinham tido um antegosto do Paraíso de Alá!

Enganados, eles não temiam morrer ou mesmo serem despedaçados, e obedeciam cegamente.

Os “assassinos” eram tão cruéis que seus inimigos ficavam aterrorizados.

Onde eles estavam ativos, ninguém podia se considerar seguro, nem os camponeses árabes, nem os peregrinos francos, nem os poderosos senhores, nem mesmo os reis.

Uma madrugada, um sultão hostil à seita acordou com um punhal cravado na cabeceira da cama.

Horrorizado pela sinistra advertência, ele aceitou logo pagar o tributo e exonerou os “assassinos” de pedágios e impostos em seus domínios.

Quando São Luis IX desembarcou em Oriente, os Assassinos eram uma potência inevitável.

O velho da montanha droga seus discípulos.
Biblioteca Nacional da França, departamento dos Manuscritos, Français 2810, fol 17
Aliás, já na III Cruzada, heróis como Raimundo de Trípoli e Conrado de Montferrato tiveram que entrar em certo acordo com a seita e engajaram conversações.

O Velho da Montanha reinava sobre um vasto território, mas mantinha relações de boa vizinhança com os cristãos.

Ele praticava um Islã cismático aos olhos dos outros muçulmanos. Estava constantemente em guerra com seus correligionários e chegou a se opor violentamente aos sucessores de Saladino.

Quando soube da derrota dos cruzados em Mansourah, em fevereiro de 1250, o Velho da Montanha enviou mensageiros a São Luis IX, para que ele também lhe pagasse tributo.

“Os príncipes que vos precederam – mandou dizer o misterioso chefe da seita – como o rei da Hungria ou o imperador da Alemanha pagaram tributo ao sheik Al-Jabal para tê-lo como amigo, tu que foste vencido deves fazer a mesma coisa”.

E para mostrar o poder de seu mestre, os embaixadores exibiram a faca símbolo de sua força, e o lençol em que enterravam suas vítimas.

O rei da França não só recusou o pagamento, mas exigiu “receber antes de quinze dias cartas e presentes de amizade”.

A firmeza do Santo impressionou o grande mestre dos Assassinos.

Duas semanas depois, ele fez chegar ao rei da França seu anel e sua própria camisa “porque a camisa está mais perto do corpo que qualquer outra peça do vestiário, assim o Velho mestre quer estar mais perto do rei franco do que qualquer outro”.

E para dar mais força à seus sinais de amizade, lhe enviou também suntuosos presentes: um jogo de xadrez feito de âmbar perfumado e um elefante e uma girafa de cristal.

Em troca, São Luis lhe ofereceu joias e legou um embaixador permanente: o frade dominicano Yves Le Breton.

Esse religioso eminente selou uma verdadeira aliança entre seu rei e o grande mestre dos Assassinos.

A história dessa seita penetra o presente.

Só os mongóis de Hulagu conseguiram vencer o Velho da Montanha e se apoderar da fortaleza de Alamut, em 1256.

Desde então, a seita se dispersou pela Síria, Líbano, Irã e Índia.

Porém, a seita ismaelita subsiste, e os descendentes dos grandes mestres ainda são venerados em nossos dias na pessoa do Agha Khan.

(Fonte: Louis IX et le “Vieux de la Montagne”, http://chrisagde.free.fr/capet/l9hommes.php3?page=4)




Como tratar os terroristas: o exemplo de São Luís

San Luis recebe em Acre os enviados do Velho da Montanha. Georges Rouget (1783-1869) Palácio de Versailles.
San Luis recebe em Acre os enviados do Velho da Montanha.
Georges Rouget (1783-1869) Palácio de Versailles.
“A História é a mestra da vida”, disse Cícero. No momento em que a França e a Europa discutem como responder à provocação terrorista, é esclarecedora a resposta dada por São Luís aos enviados do “Velho da Montanha”, chefe da seita dos Assassinos.

No post anterior já tratamos deste fato histórico: Como São Luis IX tratou aos terroristas do “Velho da Montanha”

Achamos também a descrição do mesmo fato feita por um eminente historiador que acrescenta novos e elucidativos aspectos. Por isso o transcrevemos aqui.

O historiador Henri Wallon (1812-1904) descreve a recepção, baseado nas Memórias do príncipe de Joinville, companheiro de armas de São Luís IX na Primeira Cruzada e historiador máximo do santo rei:

“Durante seu estágio em São João de Acre, ele recebeu os mensageiros do ‘Velho da Montanha’.

“A cena narrada por Joinville lança intensa luz sobre o terror que esse estranho déspota espalhava no mundo por meio de cegos algozes obedientes às suas ordens, e o ascendente que nossas ordens religiosas e militares haviam inculcado no próprio chefe desses fanáticos, desafiando a morte. São Luís bem que merecia pô-lo também a seus pés.

“Ele recebeu os mensageiros na saída da Missa. Estes se apresentaram nesta ordem: à testa, um emir ricamente vestido; atrás dele um assassino, que levava três facas enfiadas uma na outra: a folha da segunda entrava na bainha da primeira, e a da terceira na segunda. Símbolo de morte inevitável: o primeiro assassino deveria ser sucedido pelo segundo, e este pelo terceiro, até o cumprimento da sentença.

“Ao mesmo tempo era sinal do desafio ao rei, e do destino que ele teria em caso de recusa. Atrás vinha um outro, que trazia um lençol envolto em seu braço, como para enterrar aquele que o punhal de seu companheiro ia atingir.

O rei convidou o emir a falar:

— Meu senhor, disse o emir, encomenda-me perguntar-vos se vós o conheceis?

— Não, respondeu tranquilamente São Luís, porque nunca o vi, mas ouvi falar dele.

Um agente do Velho da Montanha (turbante branco) assassina o vizir Nizam-al-mulk. Museu de Topkapi, Estambul
Um agente do Velho da Montanha (turbante branco em pé)
assassina o vizir Nizam-al-mulk. Museu de Topkapi, Estambul
— Posto que vós ouvistes falar dele, respondeu o emir, espanto-me que não tenhais enviado algo de vossa parte para tê-lo como amigo, como o faziam todos os anos o imperador da Alemanha, o rei da Hungria, o sultão de Babilônia e outros, certos de que só poderiam viver enquanto aprouvesse ao meu senhor. Se vós não quiserdes pagar, liberai-o ao menos do tributo que ele deve ao Hospital e ao Templo.

Esse feroz potentado, diante do qual o mundo tremia, de fato pagava um imposto às Ordens do Hospital e do Templo: o que podia ele sobre os grandes mestres dessas ordens, que tão logo fossem assassinados seriam substituídos por outros? Teria sido em vão enviar seus assassinos.

O rei disse ao emir que voltasse após o jantar.

Quando ele voltou, encontrou São Luís sentado entre o Mestre do Hospital e o Mestre do Templo. E o rei lhe disse então que repetisse o que havia dito pela manhã.

O emir respondeu que só o faria diante daqueles que estiveram com o rei pela manhã. Ao que os dois Grandes Mestres disseram:

— “Nós te ordenamos que fales”.

O emir obedeceu e os dois lhe ordenaram que fosse ter com eles no dia seguinte no Hospital.

Ele foi. Os dois Mestres então lhe disseram que o Velho da Montanha tinha ousado demais fazendo o rei ouvir tais palavras.

— Se não fosse pelo amor ao nosso rei, acrescentaram, nós teríamos feito afogar todos os três nas águas sujas do mar de Acre, a despeito de teu senhor. Nós te ordenamos que voltes junto a ele, e que, dentro de quinze dias, retornes, trazendo da parte de teu senhor cartas de fidelidade e joias tais que satisfaçam o rei”.

Ruínas de Alamut, fortaleza do Velho da Montanha, Irã
Ruínas de Alamut, fortaleza do Velho da Montanha, Irã
Na quinzena, os mensageiros voltaram, trazendo como presente a camisa do Velho da Montanha.

“Como a camisa é a veste mais perto do corpo, assim, disseram eles, o Velho quer ter o rei mais perto de seu amor, mais do que qualquer outro rei”.

O sheik também lhe enviava outros símbolos de sua amizade, junto com mais presentes: um anel de ouro muito fino onde estava escrito seu nome, em sinal de seus desponsórios com o rei, com quem queria ser um só a partir de então; um elefante e uma girafa de cristal, maçãs em diversos tipos de cristais; jogos de xadrez e dominó de âmbar, com o âmbar ligado ao cristal com belas filigranas de ouro fino.

O rei ficou contente com esse ato de submissão e não quis ser superado em generosidade: enviou joias, panos de púrpura, taças de ouro e freios de prata ao Velho da Montanha.

Enviou também o Irmão Yves, um bretão que conhecia a língua do país, o mesmo que mandara como embaixador junto ao sultão de Damasco. Pensava provavelmente converter o chefe dos Assassinos.

Esse bom religioso tentou fazê-lo, mas, como Joinville dá a entender, inutilmente, transmitindo uma imagem da corte do Velho própria a desencorajar quem for.

Quando o Velho cavalgava, diante dele ia um arauto com um machado dinamarquês de cabo comprido todo recoberto de prata e eriçado de facas; e o arauto bradava: “Afastai-vos diante daquele que tem em suas mãos a morte dos reis”.

(Autor: Henri-Alexandre Wallon, Saint Louis et son temps, Hachette, Paris 1878, capítulo XI, p. 221-223)




Afabilidade de santo, rei e guerreiro

São Luis, estátua na capela inferior da Sainte Chapelle, Paris
São Luis, estátua na capela inferior da Sainte Chapelle, Paris
Jean de Joinville, senescal de Champagne uniu-se à Sétima Cruzada organizada pelo rei São Luís IX em 1244.

Durante a campanha militar, Jean foi conselheiro e íntimo confidente do rei, participando de muitas de suas decisões.

Após a morte do rei santo, ocorrida na Tunísia em 1270 durante a Oitava Cruzada, a rainha Jeanne I de Navarra encomendou-lhe uma História de São Luís (Histoire de Saint-Louis), que o cronista completou em 1309.

São Luís já havia sido canonizado em 1297, processo que contou com os depoimentos de Jean de Joinville como antigo confidente.

Conta seu infaltável assessor e companheiro de armas, o senescal de Champagne:

Acontecia-lhe muitas vezes, depois da Missa, ir sentar-se no bosque de Vincennes, ao pé de um carvalho, e nos fazer sentar em torno dele.

Todos os que tinham problemas vinham lhe falar sem serem molestados por guardas ou quem quer que fosse.

E ele perguntava: “Há alguém aqui que tenha um adversário?”

Os partidos se levantavam: “Calai-vos, dizia o rei; resolver-se-ão vossos casos uns após outros”.

Jean de Joinville oferece seu livro ao futuro Luís X da França.
História de São Luís, Paris, Biblioteca Nacional da França
Chamava, então, Monseigneur Pierre de Fontaines e Monseigneur Geoffroy de Villete e dizia a um deles: “resolvei este litígio”.

Percebendo alguma alteração necessária às proposições dos juízes, ou do partido contrário, não deixava de fazê-la pela sua própria boca.

Eu o vi algumas vezes no verão ir ao jardim de Paris para ter audiência, vestido de uma cota de camelo e de uma sobrecota sem mangas, um manto negro de seda em torno do pescoço, muito bem penteado e coberto simplesmente com um chapéu de plumas de pavão.

Fazia estender um tapete pelo solo e todo o povo acorria para lhe apresentar pedidos, ficando de pé à sua volta.

E ele resolvia os problemas de maneira que eu disse acima, quando falei do bosque de Vincennes.




São Luís IX descrito por um contemporâneo

São Luis, Beaune, Notre Dame “Em nome de Deus todo poderoso, eu, João, senhor de Joinville, senescal de Champagne, faço escrever a vida de nosso São Luís, e aquilo que eu vi e ouvi pelo espaço de seis anos que estive em sua companhia, na viagem de ultramar e depois que voltamos.

“E antes de que vos conte seus grandes feitos e sua cavalaria, contar-vos-ei o que vi e ouvi de suas santas palavras e bons ensinamentos, para que se achem aqui numa ordem conveniente, a fim de edificar os que os ouvirem.

“Esse santo homem amou Deus de todo o seu coração e agiu em conformidade com esse amor. Pareceu-lhe bem que, assim como Deus morreu pelo amor que tinha ao Seu povo, assim o rei colocou seu corpo em aventura de morte, o que bem poderia ter evitado se tivesse querido, como se verá a seguir.

“O amor que tinha a seu povo transpareceu no que ele disse a seu filho primogênito, durante a grande doença que teve em Fontainebleau: “Bom filho, disse-lhe, peço-te que te faças amar pelo povo do teu reino, pois verdadeiramente eu preferiria que um escocês viesse da Escócia e governasse o povo do reino bem e lealmente, a que tu o governasses mal”.

“Amou tanto a verdade que não quis recusar, mesmo aos sarracenos, o que tinha prometido, como o vereis mais adiante.

São Luis faz caridade com os pobres“Foi tão sóbrio no paladar que jamais em minha vida o ouvi mandar que lhe servissem quaisquer iguarias, como fazem muitos nobres, mas comia pacientemente o que seus cozinheiros lhe traziam.

“Foi moderado em suas palavras, pois jamais em minha vida o ouvi falar mal de ninguém, e nunca o ouvi nomear o diabo - cujo nome está tão espalhado pelo reino, o que acredito não agrada nada a Deus.

“Ele diluía seu vinho na proporção em que via que o vinho lhe poderia fazer mal.

“Perguntou-me um dia, na ilha de Chipre, por que eu não colocava água no meu vinho, e eu lhe disse que os médicos m’o ordenavam, dizendo-me que eu tinha uma cabeça grande e um estômago frio, e que não podia me embriagar; e o rei disse-me que eles me enganavam, porque se eu não diluía o vinho na minha mocidade e quisesse fazê-lo na velhice, a gota e os males do estômago tomariam conta de mim, e nunca teria saúde, e que se eu bebesse o vinho totalmente puro na minha velhice, eu me embriagaria todos os dias, e que isso era uma coisa muito vil para um valente homem, o embriagar-se.

Sao Luis partindo para as Cruzadas“Perguntou-me se queria ser honrado neste século e ter o paraíso depois de minha morte. Disse-lhe: Sim; e ele continuou: “Guardai-vos então de fazer, de dizer qualquer coisa que não possais declarar, se todo o mundo a souber, e não possais dizer: Eu fiz isso, ou disse aquilo”.

“Ele chamou-me uma vez e me disse: “Não ouso falar-vos, por causa do espírito subtil de que estais dotado, de coisa que se refira a Deus; e por isso chamei os irmãos que estão aqui, pois quero fazer-vos uma pergunta”.

“A pergunta foi esta: “Senescal, disse, quem é Deus?” e eu respondi: “É tão boa coisa como melhor não pode ser”.
“– Verdadeiramente, continuou o rei, está bem respondido, porque essa resposta que destes está escrita neste livro que tenho em mãos. Agora, pergunto-vos, disse, o que preferiríeis: ser leproso ou ter cometido um pecado mortal?”.

“E eu, que nunca lhe menti, respondi que preferiria ter cometido trinta pecados que ser leproso.

São Luis entrega as Ordenações a um funcionário“E quando os irmãos tinham partido, chamou-me a sós, faz-me sentar a seus pés e disse-me: “Como me dissestes aquilo?”. E eu disse que ainda o dizia, e ele continuou:

“Falais sem reflexão, como um avoado; porque não há lepra tão vil como a do estar em pecado mortal, porque a alma que nele está, é semelhante ao demônio do inferno. É por isso que nenhuma lepra pode ser tão má. E é verdade que quando o homem morre, fica curado da lepra do corpo; mas quando o homem que cometeu o pecado mortal morre, não sabe e não é certo que tenha tido um tal arrependimento que Deus o tenha perdoado. Deve ter muito grande temor de que essa lepra lhe dure tanto tempo quanto Deus estiver no paraíso. Assim, rogo-vos, acrescentou ele, tanto quanto eu possa, que tomeis mais a peito, pelo amor de Deus e de mim, o preferir que todo mal de lepra e toda outra doença chegue a vosso corpo, antes que o pecado mortal chegue a vossa alma”.

“O rei amou tanto toda espécie de pessoas que crêem em Deus e O amam, que deu a dignidade de condestável de França a monseigneur Gilles Lebrun, que não era do reino de França, porque ele tinha grande reputação de crer em Deus e de amá-lo. E eu creio verdadeiramente que assim foi.

“A lealdade do rei mostrou-se bem no caso de monseigneur de Trie, que remeteu ao santo rei cartas, as quais diziam que o rei tinha dado aos herdeiros da condessa de Boulogne, recentemente falecida, o condado de Dammartin.

São Luis, Sainte-Chapelle, Paris“O selo das cartas estava rompido; não restava senão a metade das pernas da figura do rei, no selo, e o escabelo sobre o qual o rei apoiava os pés, e mostrou-o a nós todos que éramos de seu conselho, e pediu-nos que o ajudássemos com nosso parecer. Dissemos todos unanimemente que ele não estava em nada compelido a pôr as cartas em execução; e então disse a Jean Sarrasin, seu chambellin, que lhe entregasse a carta que lhe tinha encomendado.

“Quando recebeu a carta: “Senhores, disse-nos, eis o selo de que eu me servia antes de que fosse a ultramar, e vê-se claramente por este selo que o sinete do selo quebrado é semelhante ao selo inteiro. É por isso que não ousaria, em sã consciência, reter o dito condado”.

“E então chamou monseigneur Renaud de Trie e disse-lhe: “Eu vos entrego o condado”.


(Fonte : Charles de Ricault d’Héricault, « Histoire Anecdotique de la France », Bloud et Barral, Libraires-Éditeurs, Paris, Tomo II, pp. 286 a 289).




São Luís IX descrito por um companheiro de armas

São Luis rei, estátua equestre de St Louis, Missouri, EUA. Fundo: castelo de Pierrefonds, França.
São Luis rei, estátua equestre de St Louis, Missouri, EUA.
Fundo: castelo de Pierrefonds, França.
Em nome de Deus Todo-Poderoso, eu, João, senhor de Joinville, Senescal de Champagne, faço escrever a vida de nosso São Luís, e aquilo que eu vi e ouvi pelo espaço de seis anos que estive em sua companhia, na viagem de ultramar e depois que voltamos.

E antes de vos contar seus grandes feitos e sua cavalaria, contar-vos-ei o que vi e ouvi de suas santas palavras e bons ensinamentos, para que se achem aqui numa ordem conveniente, a fim de edificar os que ouvirem.

Esse santo homem amou Deus de todo o coração e agiu em conformidade com esse amor. Pareceu-lhe bem que, assim como Deus morreu pelo amor que tinha por seu povo, assim o rei colocasse seu corpo em aventura de morte, o que bem poderia ter evitado se tivesse querido, como se verá a seguir.

O amor que tinha a seu povo transpareceu no que ele disse a seu filho primogênito, durante uma grande doença que teve em Fontainebleau:

“Bom filho — disse-lhe — peço-te que te faças amar pelo povo de teu reino, pois verdadeiramente eu preferiria que um escocês viesse da Escócia e governasse o povo do reino bem lealmente, a que tu o governasses mal”.

Amou tanto a verdade, que não quis recusar, mesmo aos sarracenos, o que tinha prometido, como o vereis mais adiante.

Foi tão sóbrio no paladar, que jamais em minha vida o ouvi mandar que lhe servissem quaisquer iguarias, como fazem muitos nobres, mas comia pacientemente o que seus cozinheiros lhe traziam.

Foi moderado em suas palavras, pois jamais em minha vida o ouvi falar mal de ninguém, e nunca o ouvi nomear o diabo, cujo nome está tão espalhado pelo reino, o que acredito não agrada nada a Deus.

Ele diluía seu vinho na proporção em que via que o vinho lhe poderia fazer mal. Perguntou-me um dia, na ilha de Chipre, por que eu não colocava água no meu vinho. Eu lhe disse que os médicos não o ordenavam, por eu ter uma cabeça grande e um estômago frio, e que não podia me embriagar.

O rei disse-me que eles me enganavam, porque se eu não diluísse o vinho na minha mocidade, e quisesse fazê-lo na velhice, a gota e os males do estômago tomariam conta de mim, e nunca teria saúde; e que se eu bebesse o vinho totalmente puro na minha velhice, eu me embriagaria todos os dias, e que o embriagar-se era uma coisa muito vil para um valente homem.

Perguntou-me se queria ser honrado neste século e ter o paraíso depois de minha morte. Disse-lhe que sim, e ele continuou:

“Guardai-vos então de fazer ou dizer qualquer coisa que, se todo o mundo a souber, não a possais declarar e não possais dizer: ‘Eu fiz isso, eu disse aquilo’”.

São Luís na vitória de Taillebourg. Eugène Delacroix, museu de Versailles.
São Luís na vitória de Taillebourg. Eugène Delacroix, museu de Versailles.
Ele chamou-me uma vez e me disse:

“Por causa do espírito sutil de que estais dotado, não ouso falar-vos de coisa que se refere a Deus. Por isso chamei os irmãos que estão aqui, pois quero fazer-vos uma pergunta”.

A pergunta foi esta: “Senescal, quem é Deus?”

Eu respondi: “É tão boa coisa como melhor não pode ser”.

Continuou o rei: “Verdadeiramente está bem respondido, porque essa resposta que destes está escrita neste livro que tenho em mãos. Agora, pergunto-vos o que preferiríeis: ser leproso ou ter cometido um pecado mortal?”

E eu, que nunca lhe menti, respondi que preferiria ter cometido trinta pecados que ser leproso.

Quando os irmãos tinham partido, chamou-me a sós, fez-me sentar a seus pés e perguntou-me: “Como pudeste dizer-me aquilo?”

Eu reafirmei o que lhe dissera, e ele continuou: “Falais sem reflexão, como um avoado, pois não há lepra tão vil como a de se estar em pecado mortal. A alma que nele está é semelhante ao demônio do inferno. Por isso nenhuma lepra pode ser tão má.

“É verdade que quando o homem morre fica curado da lepra do corpo, mas quando o homem que cometeu o pecado mortal morre, não sabe e não é certo que tenha tido um arrependimento, e que Deus o tenha perdoado.

“Deve ter muito temor de que essa lepra lhe dure tanto tempo quanto Deus estiver no Paraíso. Assim, rogo-vos, tanto quanto eu possa, que tomeis a peito, pelo amor de Deus e de mim, o preferir que todo mal de lepra e toda outra doença chegue ao vosso corpo, antes que o pecado mortal chegue à vossa alma”.

São Luís administrando justiça. Fundo: interior da catedral Notre Dame, Paris.
São Luís administrando justiça.
Fundo: interior da catedral Notre Dame, Paris.
O rei amou tanto toda espécie de pessoas que crêem em Deus e O amam, que deu dignidade de condestável de França ao Sr. Gilles Lebrun, que não era do reino da França, porque ele tinha grande reputação de crer em Deus e de amá-lo. E eu creio verdadeiramente que assim foi.

Muitas vezes acontecia que no verão ele ia sentar-se no bosque de Vincennes, depois da Missa, apoiava-se contra um carvalho e fazia-nos sentar em torno dele.

Todos aqueles que tinham assunto iam falar com ele, sem empecilho de ajudas de câmara nem de outros. Então ele mesmo perguntava:

“Há alguém aqui que tenha pendência?”

Aqueles que tinham pendência levantavam-se, e então ele dizia:

“Calai-vos todos, e sereis atendidos um depois do outro”. Então chamava o Sr. Pierre de Fontaines e o Sr. Geoffroy de Vilette, e dizia a um deles:

“Atendei-me esta pendência”. Quando via alguma coisa a corrigir, no arrazoado dos que falavam por outro, ele mesmo a corrigia.

Eu o vi alguma vez, no verão, ir ao jardim de Paris para atender suas gentes, vestido de uma cota de camelo, de um casaco de lã sem mangas, de um manto de tafetá preto em torno do pescoço, muito bem penteado e sem touca, e um chapéu de penas de pavão branco na cabeça.

São Luís recebe a vassalagem de Henrique III, rei da Inglaterra
São Luís recebe a vassalagem de Henrique III, rei da Inglaterra
Fazia estender um tapete para que nos sentássemos em torno dele, e todos aqueles que tinham assunto a tratar com ele ficavam de pé na sua frente. Então ele os fazia atender, do modo como fazia no bosque de Vincennes.

A lealdade do rei mostrou-se bem no caso do Sr. de Trie.

Este remeteu cartas ao santo rei, dizendo que o rei tinha dado aos herdeiros da condessa de Boulogne, recentemente falecida, o condado de Dammartin.

O selo das cartas estava rompido. Restava apenas do selo a metade das pernas da figura do rei e o escabelo sobre o qual o rei apoiava os pés. Mostrou-o a nós todos que éramos de seu conselho, e pediu-nos que o ajudássemos com nosso parecer.

Dissemos todos unanimemente que ele não estava em nada obrigado a pôr as cartas em execução. Chamou então Joan Sarrasin, seu chambellan, e mandou que trouxesse a carta que lhe tinha encomendado.

Quando recebeu a carta, disse: “Senhores, eis o selo de que eu me servia antes de ir a ultramar. Vê-se claramente por este selo que o sinete do selo quebrado é semelhante ao selo inteiro. Por isso eu não ousaria, em sã consciência, reter o dito condado”.

Chamou então o Sr. Renaud de Trie e disse-lhe: “Eu vos entrego o condado”.


(Charles de Ricault d’Héricault, “Histoire Anécdotique de la France” - Bloud et Barral, Paris, Tomo II, pp. 286-289)




São Luís, o mameluco Octai e a honra do cavaleiro cristão

A cavalaria católica deu à Igreja muitos santos, como São Luís IX, rei da França. Alcançou sua maior perfeição nas Ordens Religiosas militares, como a do Santo Sepulcro, a dos Hospitalários e a dos Templários.

O cavaleiro era respeitado e amado. Mesmo entre os infiéis o prestígio da instituição era extraordinário. Seus brasões e cruzes infundiam terror e admiração.

Na cruzada de São Luís contra o Egito deu-se um episódio característico.

O exército cristão sofreu grave derrota em Mansurah. A doença completou a desgraça. São Luís doente caiu em poder dos muçulmanos junto com a maior parte de suas tropas.

O sultão Almoadam ficou ébrio de orgulho. Mas os mamelucos do Egito, que tinham suportado o peso da guerra, estavam descontentes e resolveram assassiná-lo durante as festas da vitória.

No final do banquete um oficial tentou matá-lo, mas apenas conseguiu feri-lo. Ele fugiu e se encerrou numa torre.

Os rebeldes puseram fogo à torre. Vendo-se perdido, Almoadam lançou-se do alto e caiu aos pés de seus inimigos.

Implorou perdão e ofereceu em prantos o seu próprio trono, em troca da vida.

Tudo em vão.

Um dos chefes de sua guarda, Octai, o repeliu com ira, os mamelucos o transpassaram com inúmeros golpes.

Em Forescour estavam os prisioneiros cristãos, inclusive São Luís.

No meio dessa angústia, Octai entrou na tenda São Luís com a espada ensangüentada.

O maometano disse:

“Almoadam já não existe. Que me darás por ter-te libertado de um inimigo que premeditava a tua ruína e a nossa?”

São Luís nada respondeu.

O infiel apontou-lhe a espada, e exclamou irado: “Não sabes que eu sou senhor de tua pessoa? Faze-me cavaleiro, ou serás morto!”

São Luís respondeu então: “Faze-te cristão, e te farei cavaleiro”.

Octai retirou-se, sem fazer mal a São Luís.

Podendo pedir terras, riquezas (São Luís prometera um milhão de bizantinos de ouro pelo resgate de suas tropas), podendo vingar-se contra o rei cristão, esse maometano preferia a honra de ser cavaleiro.

Assim, Octai, um infiel, provou o prestígio e a glória da cavalaria medieval.









Morte de São Luis na 9ª Cruzada

A morte de São Luís, aquarela
Em 1270, na cidade de Cartago, enquanto preparava o assalto de Túnis, no Norte da África, São Luis IX, chefe da 9ª Cruzada foi atingido pela peste. Sentindo a morte se aproximar, mandou chamar seu filho e lhe disse:

“’Beau fils’, caro filho, a primeira coisa que eu te ensino e te ordeno guardar, é que de todo coração ames a Deus. Porque sem isto, nenhum homem pode ser salvo.

“E cuida bem de nada fazer que Lhe desagrade. Porque deverias antes desejar sofrer todos os tipos de tormentos, do que pecar mortalmente.

“Se Deus te envia a adversidade, recebe-a benignamente, e dá-Lhe graças: pensa que tu O desserviste frequentemente, e que o todo redundará em teu favor.

“Se te dá prosperidade, agradece-Lhe muito humildemente, e atenta para que não fiques pior pelo orgulho ou por outra razão. Porque não se deve tentar a Deus por seus dons.

“Toma muito cuidado de ter em tua companhia homens prudentes e leais, que não sejam cheios de cobiças, sejam homens da Igreja, de religião, seculares ou outros.

Estátua de São Luis no exterior da Sainte Chapelle
Estátua de São Luis
no exterior da Sainte Chapelle
“Foge da companhia dos maus, e esforça-te em escutar as palavras de Deus, e retém-nas em teu coração.

“Faze também equidade e justiça a cada um, tanto aos pobres quanto aos ricos. E com os servidores, que te temem e te amam como mestre; sê leal, liberal e rijo de palavras.

“E se surgir alguma controvérsia ou demanda, seja por ti ou contra ti, indaga até atingir a verdade.

“Se fores advertido de ter com certeza alguma coisa de outrem, tenha sido obtida por ti ou por teus predecessores, devolve-a incontinente.

“Olha com toda diligência como as gentes e os súditos vivem em paz e equidade sob teu reino, em especial as boas aldeias e cidades, e alhures.

“Mantém as franquias e liberdades, que teus ancestrais mantiveram e guardaram, e conserva-as com favor e amor.

“Evita mover guerra contra católicos, sem grande conselho, e somente se não a pudores obviar. Se houver guerra e querelas entre teus súditos, apazigua-as o mais breve que puderes.

“Cuida frequentemente de teus bailios, prebostes e outros oficiais, e indaga sobre seus governos, a fim de que se houver alguma coisa neles a repreender, que tu o faças.

“E te suplico, meu filho, que ao meu fim, tenhas lembrança de mim e de minha pobre alma; e me socorras com missas, orações, preces, esmolas e boas obras, por todo teu reino.

“E me outorgues partilha e porção em todas as boas obras que fizeres.

“Dou-te toda a bênção que um pai possa dar a seu filho, rogando à Trindade do Paraíso – ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo – que te guardem, e protejam de todos os males; para que possamos, depois dessa vida mortal, estar juntos diante de Deus, e dar-Lhe graças e louvores sem fim”.

Todo homem prestes a morrer, desenganado das coisas do mundo, pode dirigir sábias instruções a seus filhos.

Mas quando, tais instruções são apoiadas pelo exemplo de toda uma vida de inocência; quando elas saem da boca de um grande príncipe, de um guerreiro intrépido, e do coração mais simples que jamais houve; quando são as últimas expressões de uma alma divina que entra nas moradas eternas, então feliz o povo que pode se glorificar dizendo:

“O homem que escreveu essas instruções era o rei de meus pais!”

Estátua de São Luis na cripta da Sainte Chapelle, Paris
Estátua de São Luis na cripta da Sainte Chapelle, Paris
A doença fazendo progressos, Luis pediu a extrema-unção. Ele respondeu às preces dos agonizantes com uma voz tão firme quanto se estivesse dando ordens no campo de batalha.

Pôs-se de joelhos ao pé de seu leito para receber o santo viático, e sustentaram o braço desse novo São Jerônimo, na última comunhão.

Desde este momento ele pôs fim aos pensamentos terrenos, e deu-se por quitado em relação a seus povos.

Qual monarca jamais cumpriu melhor seus deveres! Sua caridade estendeu-se então a todos os homens: rogou pelos infiéis, que foram ao mesmo tempo a glória e a infelicidade de sua vida; invocou os santos padroeiros da França, desta França tão cara a sua alma real.

Na segunda-feira pela manhã, 25 de agosto, sentindo que sua hora se aproximava, ele se fez estender sobre um leito de cinzas, onde permaneceu com os braços cruzados sobre o peito, e os olhos elevados para o céu.

Estátua de São Luis em Aigues-Mortes
Estátua de São Luis em Aigues-Mortes
Não se viu senão uma vez, e não se reverá jamais semelhante espetáculo: a frota do Rei da Sicília mostrava-se ao horizonte; o campo e as colinas cobertas pelo exército dos mouros.

Em meio às ruínas de Cartago, o campo dos católicos oferecia a imagem da mais desoladora dor: nenhum ruído fazia-se ouvir; os soldados moribundos saiam dos hospitais arrastando-se em meio às ruínas para se aproximar de seu Rei expirante.

Luís estava cercado de sua família em lágrimas, dos príncipes consternados, das princesas desfalecentes.

Os enviados do Imperador de Constantinopla encontravam-se presentes a essa cena: eles puderam contar à Grécia a maravilha de um passamento que Sócrates teria admirado.

Do leito de cinzas onde São Luís exalava o último suspiro, se visualizava o rio Útico, cada um podia fazer a comparação da morte do filosofo estoico e do filósofo católico.

Mais feliz que Catão, São Luis não foi obrigado a ler um tratado da imortalidade da alma, para se convencer da existência de uma vida futura: dela encontrava a prova em sua religião, suas virtudes e suas infelicidades.

Enfim, às três horas da tarde, o Rei, exalando seu último suspiro, pronunciou distintamente estas palavras: “Senhor, entrarei em vossa casa, e vos adorarei em vosso santo Templo”.

E sua alma voou para o Santo Templo, onde ele era digno de habitar.

Ouve-se então reboar a trombeta dos Cruzados da Sicilia: sua frota chega cheia de alegria e carregada de inúteis reforços.

Não se responde a seu sinal. Carlos d’Anjou se surpreende e começa a temer alguma desgraça. Aborda a margem, vê as sentinelas com as lanças revertidas, exprimindo sua dor menos pelo luto militar do que pelo abatimento de seus rostos.

Estátua de São Luis na cripta da Sainte Chapelle, Paris
Estátua de São Luis na cripta
da Sainte Chapelle, Paris
Precipita-se à tenda do Rei seu irmão, encontra-o estendido morto sobre a cinza. Lança-se sobre as relíquias sagradas, rega-as com suas lágrimas, beija com respeito os pés do santo, e dá mostras de ternura e de lamentação que não se teria esperado de uma alma tão altiva.

O rosto de Luis tinha ainda as cores da vida e seus lábios estavam vermelhos.

Carlos obtém as entranhas de seu irmão, que fez depositar em Montréal, próximo de Salerno.

O coração e os ossos do príncipe foram destinados à Abadia de Saínt-Denis.

Mas os soldados não quiseram deixar partir antes deles esses restos queridos, dizendo que as cinzas de seu soberano eram a salvação do exército.

Aprouve a Deus ligar ao túmulo do grande homem uma virtude que se manifestava por milagres.

A França que não podia consolar-se de ter perdido na terra um tal monarca, declarou-o seu protetor no Céu.

Luís colocado no rango dos santos torna-se assim para a pátria uma espécie de Rei eterno. Logo elevaram-se em sua honra igrejas e capelas mais magníficas do que os palácios simples nos quais havia passado sua vida.

Os velhos cavaleiros que o acompanharam em sua primeira Cruzada, foram os primeiros a reconhecer o novo poder de seu chefe:

“E eu fiz construir, diz o sire de Joinville, um altar em honra de Deus e ‘monseigneur saint Loys'“.

A morte de Luís, tão tocante, tão vitoriosa, tão tranquila, por onde se encerra a história de Cartago, parece um sacrifício de paz oferecido em expiação dos furores, das paixões e dos crimes dos quais esta cidade infortunada foi tão longamente o teatro.

Autor: François-René de Chateaubriand, « Itinéraire de Paris à Jerusalem », Garnier-Flammarion, Paris, 1968, pp. 434 a 441.




Males causados pela interrupção das Cruzadas

São Luis IX rei da França, estátua equestre, EUA.
São Luis IX rei da França, estátua equestre, EUA.
Nunca, talvez, a palavra epopeia foi melhor empregada do que falando das cruzadas.

Nunca a atração do Oriente se manifesta com mais ardor e, apesar dos aparentes fracassos, conduz a mais espantosas realizações.

Basta evocar as fundações dos “francos” na Terra Santa: feitorias dos comerciantes, estabelecimentos organizados que formam verdadeiras cidadezinhas, com sua capela, banhos públicos, entrepostos, habitações dos mercadores, sala do tribunal e de reuniões; praças-fortes, cuja massa desafia ainda o solo, como o krak dos cavaleiros, o castelo de Saône e as fortificações do Tyr; e ainda feitos de armas extraordinários, como os de Raymond de Poitiers ou de Renaud de Châtillon, que fazem pensar que as Cruzadas, posta à parte a sua finalidade piedosa, foram um feliz derivativo para o ardor efervescente dos barões.

A Europa perderá muito no século XIV, quando a sua atenção se afasta do Oriente.

Beato Carlos Magno em guerra contra os mouros
Beato Carlos Magno em guerra contra os mouros
São Luís IX tinha entrevisto a possibilidade de aliança com os mongóis.

Se ela tivesse sido aproveitada, teria provavelmente mudado completamente o destino dos dois mundos, oriental e ocidental.

A sua morte prematura, a estreiteza de vistas dos seus sucessores, deixaram no estado de esboço um projeto cuja importância foi valorizada pelos trabalhos de René Grousset.

Só os mongóis, que procuravam a aliança franca e favoreciam os cristãos nestorianos, podiam opor ao Islã uma barreira eficaz.

Cavaleiro parte para a Cruzada abençoado por São Marcos
Cavaleiro parte para a Cruzada abençoado por São Marcos
As relações estabelecidas por Jean du Pan-Carpin, depois por Guillaume de Rubruquis — quando em 1254 visitava Karakoroum, capital do Grande-Khan — tinham feito uns e outros compreenderem quais frutos poderiam nascer de semelhante união, pois os mongóis se ofereciam para reconquistar Jerusalém aos turcos mamelucos.

Mas a sua oferta não foi tomada em consideração.

O citado historiador das cruzadas fez notar a coincidência das duas datas: 1287, embaixada do nestoriano mongol Rabban Çauma junto a Filipe, o Belo, sem resultado; e 1291, perda de São João d’Acre.

Submergido pelo Islã, o Oriente fechar-se-á à influência e ao comércio europeu, o que marca uma decadência irremediável para as cidades mediterrânicas e para os armadores inquietados pelos piratas.

Só os cavaleiros hospitalários continuarão a lutar palmo a palmo, e de Rodes a Malta desenvolverão encarniçados esforços para manter a nossa via para o Oriente.

Luta desigual, mas admirável, que não cessará antes da tomada de Malta por Bonaparte.


(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge” - Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)




Cronologia das grandes cruzadas

Cruzados adoram o Santo Lenho. Gravura de Gustave Doré (1832 — 1883).
Cruzados adoram o Santo Lenho. Gravura de Gustave Doré (1832 — 1883).
Em duzentos anos, houve nove grandes Cruzadas que tentaram reconquistar a Terra Santa dominada pelos infiéis muçulmanos.

Houve numerosas outras Cruzadas para o Oriente, na península ibérica e dos cavaleiros teutônicos contra os pagãos eslavos.

Cronologia das nove maiores para Terra Santa

1095 - O Papa Urbano II convoca os barões da Cristandade para partir em direção a Jerusalém, a fim de libertar o Santo Sepulcro e livrar os cristãos do Oriente, que haviam tombado sob o jugo muçulmano.

1096-1099 - Primeira Cruzada: três anos são utilizados para cercar e tomar Nicéia, Antioquia e, por fim, Jerusalém.

1147-1149 - Segunda Cruzada, a pedido do Papa Eugênio III (motivado pela queda de Edessa) e pregada na França por São Bernardo. Diante de Damasco, a derrota de Luís VII, rei da França, e Conrado III, imperador alemão.

1189-1192 - Terceira Cruzada, empreendida por causa da queda de Jerusalém em poder de Saladino. O rei da França Felipe Augusto, o imperador alemão Frederico Barbaroxa e o rei da Inglaterra Ricardo Coração de Leão tornam-se cruzados. Tomada da ilha de Chipre e de Acre, no litoral da Palestina. Acordo com Saladino, que concede livre acesso aos Lugares Santos. Criação do reino cristão da Pequena Armênia.

1202-1204 - Quarta Cruzada, convocada pelo Papa Inocêncio III. Objetivo inicial: o Egito. Os cruzados terminaram tomando Constantinopla, onde Balduíno de Flandres instala o império latino, de curta duração.

1217-1221 - Cruzada das crianças: milhares de crianças e jovens morrem a caminho de Jerusalém. Quinta Cruzada, sob novo apelo de Inocêncio III: os cruzados tomam e depois perdem Damieta, no Egito.

1229 - Sexta Cruzada: o imperador alemão Frederico II negocia com o sultão do Egito o livre acesso a Jerusalém, Belém e Nazaré.

1248-1254 - Sétima Cruzada - Jerusalém cai em 1244, pela segunda vez, em mãos dos muçulmanos. São Luís IX empreende a conquista do Egito e conquista Damieta, que depois devolve, ao ser derrotado e tornado cativo.

1270 - Oitava Cruzada - São Luís IX morre diante de Túnis, norte da África.

1291 - Nona e última Cruzada - Tenta infrutiferamente levantar o cerco de Acre. Com o abandono das duas últimas fortalezas da Ordem dos Templários na Palestina e ao norte de Beirute, os Estados latinos da Terra Santa são extintos.


Vídeo: mapa estatístico da agressão do Islã






Autor: Jean de Joinville (1224 – 1317, « Le Livre des saintes paroles et de bons faits de notre saint roi Louis »)






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