As três classes sociais: clero, nobreza e povo: religioso, nobre e plebeu |
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
Classes sociais:
desigualdades
justas, harmônicas
e proporcionadas
Cooperação, serviço
e proteção
desigualdades
justas, harmônicas
e proporcionadas
Cooperação, serviço
e proteção
PRIMEIRA CLASSE: O CLERO
O Clero, primeira classe da sociedade medieval
A via da Verdade. Via Veritatis, Andrea da Firenze. |
Basicamente, o Clero divide-se em Clero secular e Clero regular. O Clero secular depende diretamente do Bispo e vive em paróquias.
O Clero regular é constituído pelos religiosos que moram em conventos e pertencem às várias ordens e congregações.
Santos Gregório Magno (Papa, com tiara), Ambrósio (cardeal com capelo vermelho), Agostinho e Jerônimo (bispos com mitra) |
Eles têm o poder de jurisdição na Igreja.
Porém, a Igreja elaborou outros graus, que concedem um primado honorífico.
Tal é o caso de Patriarcas e Cardeais, Arcebispos, monsenhores e cônegos.
Tais matizes honoríficos são vistos pelo povo como parte da hierarquia eclesiástica.
Os Patriarcas geralmente são Arcebispos de sedes muito antigas, que durante algum tempo tiveram liderança sobre determinadas regiões ou países, especialmente nas Igrejas Orientais. Na Igreja Latina isto ocorreu durante a Idade Média.
Mitra (privativa dos bispos) e paramentos para a Missa |
No Brasil o primaz é o Arcebispo de Salvador, na Bahia, a primeira cidade brasileira a ter bispos.
Os cônegos constituem uma espécie de senado do Bispo, para o governo da diocese.
O Clero regular, e as organizações das ordens religiosas, em geral obedecem a princípios comuns.
Tiara (coroa tríplice do Papa), usada pelo Beato Pio IX |
Abaixo dele estão os Provinciais, com jurisdição sobre as casas da ordem num país, ou em algumas regiões de um país.
Finalmente, os Superiores das diversas casas da ordem, individualmente consideradas.
Além disso, em casa religiosa há os sacerdotes e os simples irmãos leigos.
Esta organização obedece à natureza da Igreja e do sacerdócio como foi instituido por Nosso Senhor Jesus Cristo, e teve seu desenvolvimento pleno na Idade Média. E assim perdura até hoje.
A hierarquia clerical também estava repleta de símbolos.
A coroa papal, a tiara, é uma superposição de três coroas sobre uma armação completamente fechada.
Do mesmo modo variavam, em cores e adornos, os chapéus dos Cardeais, as mitras de Arcebispos e Bispos e o barrete dos padres.
Havia outros símbolos, como o báculo do Abade, com a volta para dentro, representando sua autoridade dentro da abadia.
São Patrício, bispo, apóstolo da Irlanda, com báculo. |
A volta na ponta do báculo é sinal de submissão ao Papa.
Mas o báculo do Papa não tem volta alguma.
Na realidade ele usa a férula, cajado que não tem volta, como símbolo de sua autoridade suprema e universal.
(Fonte: CATOLICISMO, março de 1998)
Dignidade pessoal nas classes sociais medievais: clero, nobreza e povo
Bispo, Notre Dame de Paris |
Ela era condicionada à função de cada qual na sociedade.
Havia uma distinção eclesiástica, uma distinção aristocrática e uma burguesa.
É necessário não confundir a distinção, segundo a concepção medieval, com a dos tempos modernos.
No Ancien Régime, por exemplo, a distinção eclesiástica era ter o cabelo empoado, usar lencinho, e uma série de atitudes congêneres que davam idéia de um homem adamado, freqüentando a sociedade mundana.
Hoje, o bispo avançado procura parecer com qualquer um, um sindicalista ou um invasor de terras do tipo emessetista.
Na Idade Média, pelo contrário, vemos o espelho da distinção do clero nas imagens de bispos esculpidas nos portais das catedrais góticas:
Homens eretos, de porte firme, olhar profundo e simplicidade de maneiras; mas ao mesmo tempo com racionalidade e nobreza, em tudo extraordinárias; verdadeiros pastores de almas, verdadeiros guias, príncipes na ordem do espírito, sem nenhuma preocupação de caráter mundano.
Eis o verdadeiro símbolo da distinção eclesiástica.
Nobre na batalha de Crécy |
A distinção do nobre consistia essencialmente em ser um batalhador corajoso, de peito aberto, olhar inflamado, atitude decidida.
A distinção plebéia, no fim da Idade Média, é a distinção do burguês: sério, calmo, bonachão, pensativo, de aspecto grave, colocado atrás de uma verdadeira tribuna, que era o seu balcão.
É a figura típica do burguês ou do artesão.
Esse modo de ser fazia parte da distinção burguesa.
São três estilos de vida, três funções diferentes na sociedade, dando origem a três tipos distintos.
Porém todos eles, dentro dessas várias ordens, são proprietários das funções que ocupam, e nelas encarnam graus diferentes de distinção, personificando dessa forma os seus respectivos cargos.
Podemos assim ter uma ideia da variedade de tipos e da índole profunda que imperava no conjunto das instituições medievais.
Eram homens profundamente enriquecidos em sua dignidade pessoal, encarnando e personificando as posições que ocupavam.
Esta é uma das mais profundas razões da força e da solidez das instituições medievais.
Autor: Prof. Plinio Corrêa de Oliveira
A grandeza do sacerdote, do juiz e do professor
A grandeza convém mais ao clero do que qualquer classe ‒ é evidente, porque sua missão diz respeito mais de perto a Deus.
Mas, a grandeza convém também àquilo que é da ordem temporal.
Por causa disso, na Idade Média, todas as coisas da ordem temporal tinham uma proporcionada grandeza.
Por exemplo, um edifício onde tem juízes que estão resolvendo casos.
A função de juiz entendida não como ela é entendia em alguns países hodiernos, mas como ela é entendida segundo a ordem divina, essa função é muito alta, nobre e elevada.
O juiz julga, mas Deus assiste o juiz no seu julgamento.
Sobre tudo se ele é um varão católico e pede a Nossa Senhora para ser iluminado e lançar sentenças justas.
O juiz não ganha muito dinheiro, ele não é um alto potentado, mas ele exerce uma alta função.
Por causa disso, o prédio de um tribunal ainda que seja num feudozinho pequeno, com pouco dinheiro para construir um grande prédio, é muito respeitável.
A gente entra lá e encontra as janelas com forma de ogivas presentes em toda espécie de edifícios temporais, espirituais, os vitrais.
Tribunal penal na Idade Média |
A distância com que as partes falam com ele, o modo pelo qual os huissiers falam com o juiz, falam com o povo, etc., etc.
O silêncio que todo o mundo deve manter na sala onde trabalha o juiz.
Até o pequeno juiz de aldeia era cercado de uma respeitabilidade grave, séria.
Isso se aplicava também ao professor por manifestas razões. O professor deve ser respeitado.
Ele entra na sala, todos devem se levantar, não podem se sentar antes dele sentar.
Mas, ele também deve respeitar sua própria função, e, portanto, ao iniciar a aula, o início da aula tem que ter o aspecto de um pórtico respeitável...
(Autor: Plinio Corrêa de Oliveira, 2/6/91. Sem revisão do autor)
A Igreja enxotou os costumes depravados e criminosos
Abadia de Royaumont, França |
O grande filósofo grego Platão, por exemplo, ensinava a conduta monstruosa de que um doente, ou um incapacitado de trabalhar, devia ser morto.
Na Roma antiga havia 30% a mais de homens do que de mulheres. As meninas e os varões deformados eram simplesmente abandonados.
Os estóicos, seguidores de famosa escola filosófica de Atenas, propugnaram o suicídio para fugir da dor ou de frustrações emocionais. Algo parecido com as formas mais extremas de eutanásia que estão retornando hoje.
Os romanos afundaram tanto na sensualidade, que até perderam o culto da deusa Castidade. As sacerdotisas vestais deviam manter aceso um fogo sagrado, porque eles acreditavam que quando esse fogo fosse extinto viria o fim de Roma.
Deviam ficar virgens sob pena de morte e tinham imensos privilégios. A instituição foi extinta pois ninguém mais queria ficar vestal, função que estava decaída a uma espécie de prostituição radical.
A Igreja restaurou a dignidade da família. Von Wissenlo, Codex Manesse 299r |
Segundo Tácito, no século II uma mulher casta era fenômeno raro.
Enfim, reinavam os torpes vícios em que hoje vai recaindo o mundo neopagão que apostatou da Cristandade.
A Igreja restaurou a dignidade do matrimônio e gerou um fato desconhecido pelos pagãos: suscitou mulheres capazes de tocar suas próprias escolas, conventos, colégios, hospitais e orfanatos.
A Igreja definiu e delimitou a guerra justa. Nem Platão nem Aristóteles fizeram qualquer coisa de comparável.
Em sentido contrário, o espírito moderno antimedieval teve um mestre em Nicolò Machiavello.
Ele postulou que a política é um jogo cínico, onde "a remoção de um peão político, embora envolva cinqüenta mil homens, não é mais perturbadora que a remoção de uma peça de xadrez do tabuleiro" (Thomas Woods p. 211).
Prof. Thomas Woods (“How the Catholic Church built Western Civilization”, Regnery Publishing, Washington DC, 2005, 280 p.) que teve uma edição no Brasil (“Como a Igreja Católica construiu a Civilização Ocidental”, Quadrante, São Paulo, 2008, 222 p.).
Como um Papa medieval falava para os bispos
O Beato Urbano II pregando a Cruzada. Na sua direita, os bispos. Na esquerda, os príncipes, no centro, o rei. |
“Meus mais amados irmãos:(Fonte: Fulquério de Chartres, ou Fulcher de Chartres (1059 –1127). Apud BONGARS. Gesta Dei per Francos, 1, 382 f. In: THATCHER, Oliver J.; MCNEAL, Edgar Holmes. A Source Book for Medieval History. New York: Scribners, 1905. p. 513-17.
“Impulsionado pela necessidade, eu, Urbano, com a permissão de Deus, chefe, bispo e prelado de todo o mundo, vim para estas partes como um embaixador, com uma advertência divina para vocês, servos de Deus.
“Eu esperava encontrá-los tão fiéis e tão zelosos no serviço de Deus quanto eu tinha suposto que fossem.
“Mas, se há em vós quaisquer deformidades ou tortuosidades contrárias as lei de Deus, com a ajuda divina, eu farei o meu melhor para removê-las.
“Porque Deus tem lhes posto como mordomos sobre suas famílias para servi-Lo.
“Feliz de fato você será se Ele o considerar fiel em sua serventia.
“Vocês são chamados pastores, cuidem para não agir como mercenários.
“Sejam verdadeiros pastores, com seus cajados sempre às mãos.
“Não durmam, mas guardem de todos os lados o rebanho confiado a vós.
“Pois se através de seu descuido ou negligência um lobo levar uma de suas ovelhas, você certamente perderá vossa recompensa que está com Deus.
“E depois de ter sido duramente açoitado com remorso por seus erros, você será ferozmente destruído no inferno, a abadia da morte.
“Pois, de acordo com o evangelho, “você é o sal da terra” [Mateus 5:13].
“Mas se você ficar aquém de seu dever, pode-se perguntar como poderá ser salgado.
“Quão grande é a necessidade de salgar! É de fato necessário que você corrija com o sal da sabedoria este povo insensato, que é tão dedicado aos prazeres deste mundo, para que o Senhor, quando desejar falar com eles, não os encontre putrificados por seus pecados, sem sal nem fedorentos.
Beato Urbano II, Clermont-Ferrand, França.
Fundo: catedral Notre Dame de l'Assomption da mesma cidade
“Pois se Ele encontrar neles vermes, isto é, pecados, é porque você tem sido negligente em seus deveres.
“Ele irá ordená-los inúteis para seres jogados no abismo das coisas impuras.
“E porque você não pode restaurar a sua grande perda, Ele certamente irá condená-lo e privá-lo de sua amorosa presença.
“Mas o homem que aplicar este sal deve ser prudente, providente, modesto, erudito, pacífico, vigilante, piedoso, justo, equilibrado e puro.
“Pois como pode o ignorante ensinar aos outros? Como pode o desregrado tornar os outros modestos? E como pode o impuro tornar os outros puros?
“Se alguém odeia a paz, como ele pode tornar outros pacíficos? Ou se alguém sujou as mãos com infâmia, como ele pode limpar as impurezas do outro? Lemos também que se o cego guiar o cego, ambos cairão na vala [Mateus: 15:14].
“Assim, primeiro, corrija-se a si mesmo, livrando-se da culpa. Você pode ser capaz de corrigir àqueles que estão sujeitos a você.
“Se você deseja ser amigo de Deus, faça de bom grado as coisas que você sabe que O agradarão.
“Especialmente, você deve deixar todos os assuntos que dizem respeito à Igreja serem controlados pela lei da igreja.
“E tome cuidado para que a simonia não crie raízes entre vós, com receio de que tanto quem compra como quem vende [funções da igreja] seja açoitado com os flagelos do Senhor através de ruas estreitas e levados para o lugar da destruição e confusão.
“Mantenha a igreja e o clero em todo o seu valor, totalmente livre do poder secular.
Arcepispo de Arundel prega ao povo na catedral de Canterbury.
British Library MS Harley 1319 f12
“Verifique se os dízimos que pertencem a Deus são fielmente pagos a partir de todos os produtos da terra.
“Não deixe que sejam vendidos ou retidos.
“Se alguém capturar um bispo, que ele seja tratado como um fora da lei.
“Se alguém sequestrar ou roubar monges ou clérigos, ou freiras, ou seus agentes, ou peregrinos, ou comerciantes, que sejam anátemas [ou seja, malditos].
“Deixe que ladrões e incendiários e todos os seus cúmplices sejam expulsos da igreja e anatematizados.
“Se um homem que não dá uma parte de seus bens como esmola é punido com a condenação do inferno, como deve ser punido quem rouba bens de outro?
“Porque assim ocorreu com o homem rico no evangelho [Lucas 16:19], ele não foi punido porque ele havia roubado os bens de outro, mas porque ele não tinha usado bem as coisas que eram dele”.
Como um medieval via a liturgia da Missa
Os capítulos que Guilherme Durand (séc. XIII) consagrou à explicação da Missa estão entre os mais surpreendentes de sua obra “Rational”.
Eis aqui, por exemplo, como ele interpreta a primeira parte do Divino Sacrifício:
“O canto grave e triste do Introito abre a cerimônia: ele exprime a espera dos Patriarcas e dos Profetas. O coro dos clérigos representa o coro dos Santos da Antiga Lei, que suspiram antes da vinda do Messias, que eles, entretanto não verão”.
“O bispo entra, então, e ele aparece como a figura viva de Jesus Cristo. Sua chegada simboliza o aparecimento do Salvador, esperado das nações”.
“Nas grandes festas leva-se diante dele sete tochas, para lembrar que, segundo a palavra do Profeta, os sete dons do Espírito Santo repousam sobre a cabeça do Filho de Deus.
“Ele se adianta sob um pálio triunfal, do qual os quatro carregadores são comparados aos quatro Evangelistas.
“Dois acólitos caminham à sua direita e à sua esquerda, e representam. Moisés e Elias, que se mostraram no Tabor dos dois lados de Nosso Senhor. Eles nos ensinam que Jesus tinha por Si a autoridade da Lei e a autoridade dos Profetas”.
“O bispo senta-se em seu trono e permanece silencio. Ele parece não desempenhar nenhum papel na primeira parte da cerimônia.
“Sua atitude contém um ensinamento: ela nos recorda pelo seu silêncio, que os primeiros anos da vida de Nosso Senhor se desenrolaram na obscuridade e no recolhimento”.
“O Sub-Diácono, entretanto, dirige-se para a cátera, e, voltado para a direita, lê a Epístola em alta voz. Entrevemos aqui o primeiro ato do drama da Redenção.
“A leitura da Epístola, é a pregação de São João Batista no deserto. Ele fala antes que o Salvador tenha começado a fazer ouvir Sua voz, mas ele não fala senão aos judeus.
“Também o Sub-Diácono, imagem do Precursor, se volta para o norte, que é o lado da Antiga Lei. Quando a leitura termina, ele se inclina diante do bispo, como o Precursor se humilhou diante de Nosso Senhor”.
“O canto do Gradual, que segue a leitura da Epístola, se reporta ainda à missão de São João Batista: ele simboliza as exortações à penitência que ele fez aos judeus, à espera dos tempos novos”.
“Enfim, o Celebrante lê o Evangelho. Momento solene, porque é aqui que começa a vida pública do Messias, Sua palavra se faz ouvir pela primeira vez no mundo. A leitura do Evangelho é a figura de Sua pregação".
“O Credo segue o Evangelho, como a fé segue o anúncio da verdade. Os doze artigos do Credo se reportam à vocação dos doze Apóstolos”.
“Quando o Credo termina, o bispo se levanta e fala ao povo. Escolhendo esse momento para instruir os fiéis, a Igreja quis lhes recordar o milagre de Sua expansão.
“Ela lhes mostra como a verdade, recebida antes somente pelos doze Apóstolos, se espalhou em um instante, no mundo inteiro”.
Tal é o senso místico que Guilherme Durand atribuiu à primeira parte da Missa.
Depois dessa espécie de preâmbulo, ele chega à Paixão e ao Sacrifício da Cruz. Mas aqui, seus comentários tornam-se tão abundantes e seu simbolismo tão rico, que é impossível, por uma simples análise, dar uma ideia. É necessário que se vá ao original.
Nós dissemos bastante, entretanto, para deixar entrever alguma coisa do gênio da Idade Média.
Pode-se imaginar tudo que uma cerimônia religiosa continha de ensinamentos, de emoção e de vida para os cristãos século XIII.
Um uso tão constante do simbolismo pode deixar estupefato alguém que não esteja familiarizado com a Idade Média.
É preciso porém não fazer como fizeram os beneditinos do século XVIII, não ver ali senão um simples jogo de fantasia individual.
Sem dúvida, tais interpretações não foram nunca aceitas como dogmas. Não obstante, é notável que elas quase nunca variam. Por exemplo, Guilherme Durand, no século XIII, atribui a estola o mesmo significado que Amalarius no século IX.
Mas o que é mais interessante aqui, mais do que a explicação tomada em si, é o estado de espírito que ela supunha. E o desdém pelo concreto; é a convicção profunda de que, através de todas as coisas desse mundo se pode chegar ao espiritual, pode-se entrever Deus.
Eis aqui o verdadeiro gênio da Idade Média.
(Fonte: Emile Mâle, “L'Art Religieux du XIII Siècle en France”, Librairie Armand Colin, 1958, pag. 51)
Suger, abade de Saint Denis: não poupar arte nem riqueza no culto sagrado
O abade Suger aos pés de Jesus Cristo, vitral da abadia de Saint-Denis |
Hábil diplomata, foi conselheiro de Luís VI e de Luís VII e Regente durante a Segunda Cruzada.
Foi chamado de “pai da monarquia francesa”.
Suger formulou uma justificação filosófica para a vida e a arte, notadamente para suas realizações arquitetônicas.
Compartilhando o sentir medieval, ele concebia os monumentos como obras de teologia.
Interior da abacial de Saint-Denis, Paris, França |
Ele pregou a via da elevação da alma até a contemplação das coisas divinas a partir da beleza material retamente aproveitada.
A sua influencia na arquitetura gótica foi prodigiosa, especialmente pelas maravilhas introduzidas na Basílica abacial de Saint-Denis.
Esta basílica é a necrópole dos reis da França, e subsiste até hoje, não longe do centro de Paris.
Ele escreveu:
“No que concerne à beleza dos vasos sagrados, nós acreditamos, que devemos esculpi-los primorosamente, com uma nobreza externa que corresponda à dignidade com a qual nós os manipulamos no Santo Sacrifício da Missa.
Cálice do abade Suger
“Pois, em todas as coisas sem exceção ‒ seja pela matéria ou pelo espírito ‒ nós devemos servir o Redentor o mais perfeitamente possível.
“E é por isso que nada será suficientemente precioso, nem suficientemente belo, nem suficientemente esplêndido para conter as Sagradas Espécies.
“No Antigo Testamento, os judeus empregavam vasos e utensílios de ouro para recolher o sangue dos bodes, veados e vacas sacrificadas.
“Os cristãos no poderiam ornar com pedras preciosas os cálices de ouro que contêm o sangue de Cristo?
“A beleza da casa de Deus deve, com maior razão, dar aos fiéis como que um antegosto da beleza do Céu.
“A visão da beleza multicolor das pérolas, com freqüência, me liberou das preocupações da vida exterior elevando minha alma pelo deleite dos esplendores sensíveis até a consideração das virtudes diversas de que elas são o símbolo.
“Esta visão me deu a ilusão de me encontrar, por assim dizer, numa terra estrangeira que de maneira alguma era a terra de lama deste baixo mundo, mas ainda não era a pura região do Céu.
“Assim, parece-me que por meio do regozijo com a beleza material, nós podemos, com a ajuda de Deus, sentirmos transportados, por via anagógica (elevação da alma na contemplação das coisas divinas, êxtase, arrebatamento, enlevo), até a fruição espiritual da beleza suprema”.
(Fonte: apud Edgar de Bruyne, “Le conflit des esthétiques”, Albin Michel, Paris, 1998, p. 143).
Ordens religiosas: austeridade, estudo e trabalho manual
Monges cantando o Ofício Divino |
Na imagem aparecem figuras mais magras do que as que podemos ver na iconografia medieval do povo.
Positivamente era a classe social onde mais se jejuava e onde mais se sentia fome na Idade Média.
As regras das Ordens religiosas eram muito severas e apresentavam exigências de jejuns enormes, cumpridos muito à risca pelos sacerdotes e pelos religiosos, em geral verdadeiros ascetas.
Os monges usavam tonsura, um modo de cortar o cabelo que formava uma aureóla, ou algo parecido.
O hábito dos monges tonsurados é branco, sem nenhuma pretensão humana.
Eles não são homens com a saúde destroçada, mas o jejum está na cara.
Eles, que tanto jejuam, está cantando o Ofício divino.
O estudo era o companheiro inseparável do jejum.
Frei Gonzalo de Illescas, Francisco de Zurbarán, claustro mercedário de Sevilha |
O frade está no seu quarto, estudando, em longas horas de isolamento, de vida intelectual.
Um detalhe no quadro nos apresenta o mesmo religioso fazendo caridade com pobres, velhos e doentes na porta do mosteiro.
Não se tratava de um religioso que se refugiava no estudo esquecendo dos demais.
O clero foi a classe intelectual por excelência na Idade Média.
Todos os historiadores, mesmo os mais superficiais, reconhecem que se a cultura clássica não morreu, é porque foi recolhida nos conventos medievais.
Neles, os grandes escritos da Antiguidade foram assiduamente estudados pelo clero, que comunicou a sua cultura à classe universitária.
A classe dos professores universitários antes nunca existiu.
Ela nasceu do zelo do clero e contou, durante toda a Idade Média e especialmente nos primeiros séculos da era medieval, com muitos clérigos como professores e alunos.
Monges trabalhando a horta do mosteiro |
Não. São clérigos. Percebe-se, pelo fato de usarem um escapulário que desce a partir de uma espécie de pelerine.
Eles estão com um capuz, ceifando o trigo na plantação da abadia que está perto.
“Ora et Labora”, diz a regra de São Bento, a mais acatada na Idade Média: “reza e trabalha”.
Muitas Ordens religiosas impunham ao religioso, como elemento para a formação, ao lado do estudo, da penitência e da oração, o trabalho manual.
Então, esses homens, verdadeiros intelectuais, muitas vezes cumpriam os trabalhos da terra com satisfação. Essa tradição, aliás, se mantém ainda hoje em inúmeras Ordens religiosas.
(Autor: Plinio Corrêa de Oliveira, 22.04.73. Sem revisão do autor.)
Os hospitais: frutos da caridade
desconhecidos antes da Idade Média
desconhecidos antes da Idade Média
As ordens militares, fundadas durante as Cruzadas, criaram hospitais por toda a Europa.
A Ordem dos Cavaleiros de São João (ou Hospitalários, que deu origem à Ordem de Malta) criou um hospital em Jerusalém por volta de 1113.
João de Würzburg, sacerdote alemão, ficou pasmo com o que viu ali.
"A casa — escreveu ele — alimenta tantos indivíduos fora dela quanto dentro, e dá um tão grande número de esmolas aos pobres, seja os que chegam até a porta, seja os que ficam do lado de fora, que certamente o total das despesas não pode ser contado, nem sequer pelos administradores e dispensários da casa". (p. 178)
As citações deste post são do livro do prof. Thomas E. Woods, Jr. Ph. D., “How the Catholic Church built Western Civilization”, Regnery Publishing Inc., Washington D. C., 2005, 280 págs.
Esse livro foi publicado no Brasil com o título “Como a Igreja construiu a Civilização Ocidental”, editora Quadrante, SP, 2008, 222 págs.
Teodorico de Würzburg, outro peregrino alemão, maravilhou-se porque
"indo através do palácio, nós não podemos de maneira alguma fazer uma ideia do número de pessoas que ali se recuperam. Nós vimos um milhar de leitos.
Hospital para peregrinos, León, Castela, Espanha |
Raymond du Puy, prior dos Cavaleiros Hospitalários, incitou os monges-guerreiros a fazerem sacrifícios heroicos por "nossos senhores, os pobres".
"Quando os pobres chegam — diz o artigo 16 do decreto de du Puy — devem ser assim acolhidos: que recebam o Santo Sacramento, após terem primeiro confessado seus pecados ao sacerdote, e depois sejam levados à cama, como se fosse um Senhor". (p. 178-179)
O decreto de du Puy virou um marco no desenvolvimento dos hospitais .
O Hospital de Jerusalém inspirou uma rede de hospitais similares na Europa.
No século XII eles pareciam mais com hospitais modernos do que com os antigos hospícios.
O de São João de Jerusalém impressionava pelo profissionalismo, organização e disciplina. Cada dia o doente devia ser visitado duas vezes pelos médicos, ser lavado e tomar duas refeições.
Hospital para peregrinos, hoje Parador Nacional San Marcos, León, Espanha. |
O protestante Henrique VIII fechou os mosteiros e confiscou suas propriedades, na Inglaterra, sob a falsa acusação de que eram fonte de escândalo e imoralidade.
Desapareceu então a caridade para com os necessitados.
A redistribuição das terras abaciais trouxe "a ruína para incontáveis milhares dos mais pobres dos camponeses; a quebra de pequenas comunidades, que eram o seu mundo, e a verdadeira miséria passou a ser seu futuro" (p. 182). O desespero popular atiçou os motins populares de 1536. (p. 181)
Idêntico ou pior mal fez a Revolução Francesa. Em 1789, o governo revolucionário confiscou as propriedades da Igreja. Em 1847, mais de meio século depois, a França tinha 47% a menos de hospitais do que no ano do confisco.
(Fonte: prof. Thomas E. Woods, Jr. Ph. D., “How the Catholic Church built Western Civilization”, Regnery Publishing Inc., Washington D. C., 2005, 280 págs. O livro foi publicado no Brasil: “Como a Igreja construiu a Civilização Ocidental”, editora Quadrante, SP, 2008, 222 págs.)
Vídeo A CARIDADE CATÓLICA. Aula 8ª do curso sobre 'A Igreja construtora da Civilização'pelo Prof. Thomas E. Woods
Para ver todo o curso CLIQUE AQUI
A caridade cristã exorcizou a brutalidade pagã
O prof. Thomas Woods (ver aulas) W. E. H. Lecky destaca que nem na prática nem na teoria a caridade ocupou na Antigüidade uma posição comparável à que teve no Cristianismo.
O historiador da medicina Fielding Garrison mostra que antes de Cristo "a atitude face à doença e à desgraça não era de compaixão. O crédito de cuidar dos seres humanos enfermos em grande escala deve ser atribuído à Igreja”.
Os cristãos causavam admiração pela coragem com que atendiam os agonizantes e enterravam os mortos. Os pagãos abandonavam em ruas e estradas os parentes e melhores amigos doentes, semi-mortos, ou mortos sem enterrar.
O hospital foi criado pelo cristianismo e desenvolvido no Idade Média pelas órdens hospitalres (primeiro as militares). Na foto Hospital de Beaune, França, medieval |
São João Crisóstomo fundou hospitais em Constantinopla. São Cipriano e Santo Efrém organizaram os auxílios durante epidemias e fomes.
O rei de França São Luís IX dizia que os mosteiros eram o "patrimônio dos pobres". Eles davam diariamente esmolas aos carentes.
Por vezes, míseros seres humanos passavam a vida dependendo da caridade monástica ou episcopal.
Também os monges, os de Cluny por exemplo, distribuíam alimentos aos pobres em sufrágio da alma de um religioso falecido, durante trinta dias no caso de um simples monge, e durante um ano no caso de um abade.
E, às vezes, perpetuamente.
Abadias: hotéis gratuitos para peregrinos, viajantes e pobres
Por isso os mosteiros serviam de hospedagens gratuitas, seguras e honestas para viajantes, peregrinos e pobres.
Não somente os monges recebiam a todos, mas em alguns casos iam à sua procura.
O hospital monástico de Aubrac tocava um sino especial à noite, para orientar os viajantes perdidos no bosque.
A cidade de Copenhague, na Dinamarca, nasceu em torno de um mosteiro estabelecido pelo bispo Absalon, para socorrer os náufragos.
Vídeo: Como o mundo moderno se voltou contra os construtores de nossa civilização
Europa restaura Roda medieval para salvar recém-nascidos
Roda na Alemanha: invento medieval com melhoras modernas |
A Alemanha e diversos países europeus apelaram para um sistema medieval visando salvar a vida de recém-nascidos, acolhendo-os no anonimato.
Trata-se da “Roda dos enjeitados”, ou “Roda da Misericórdia”, ou ainda “Roda dos Expostos”, criada na cidade francesa de Marselha em 1188, durante a Idade Média.
Ela foi largamente usada no Brasil, onde ainda ficam algumas, porém fora de uso. A primeira foi aberta em Salvador em 1734, por determinação real, com o nome de Roda do Asilo do Santo Nome de Jesus. Seu uso se estendeu a todas as cidades importantes do Brasil até o século XX.
Embora o método seja criticado, muitas autoridades europeias reconhecem que todos os anos ele salva as vidas de dezenas de crianças. As críticas obedecem à antipatia visceral contra tudo o que é medieval, ainda quando é benéfico.
A Alemanha adotou o sistema (“Babyklappe” em alemão), visando salvar as vidas dos bebês que morriam de frio abandonados na rua.
Antigamente a Roda funcionava em conventos e hospitais que eram dirigidos por religiosos ou religiosas.
Roda de Misericórdia, Portugal |
Esse bom costume perdurou ainda nos séculos posteriores, sendo muito perseguido e diminuído pelo laicismo de Estado ligado à Revolução Francesa.
Nos séculos penetrados pela doçura da caridade católica, o tratamento dado às criancinhas abandonadas deixa envergonhados os sistemas modernos.
As Rodas eram giratórias, ficavam em locais discretos e a infeliz mãe não era vista. Religiosas e religiosos cuidavam bem das crianças, como se estas fossem o próprio Jesus Cristo. Velavam pela sua saúde, educação, pelo ensino de profissão no caso dos moços e do casamento no caso das moças.
Hoje estão sendo aplicadas melhorias técnicas como um dispositivo automático que toca uma campainha e liga o aquecimento indispensável no frio europeu. Infelizmente, faltam religiosas ou religiosas para atender a essas crianças que são tratadas por funcionários do Estado.
Entretanto, o Comitê das Nações Unidas para os Direitos das Crianças, que jamais ofereceu algum sistema melhor, voltou-se contra o retorno ao sistema medieval.
A ONU, que tanto se tem empenhado pelos direitos humanos dos bandidos, alega que a prática violaria os direitos das crianças ao favorecer um retrocesso à Idade Média!
Roda dos expostos, Viseu. Foto: Viseu com Z |
Se os medievais acertaram melhor, bem-vindos sejam suas invenções e seus progressos.
Segundo Steffanie Wolpert, responsável pela “Babyklappe” de Hamburgo, no ano de 1999, antes do funcionamento da “Roda salva-vidas”, cinco bebês foram abandonados nas ruas, três dos quais morreram de frio.
A Alemanha é o país que tem mais “Rodas” para receber bebês: 99. Hungria, Itália, Polônia, República Tcheca, Eslováquia, Lituânia, Bélgica, Holanda e Suíça também adotaram o sistema.
A caridade cristã inspirou realizações na Idade Média para as quais os homens se voltam hoje à procura de bom senso, humanidade e fé. Os adversários do Catolicismo e da ordem medieval, obviamente, não gostam de nada disso.
Ciência, invenções, Universidades, hospitais, educação, descobertas, culinária, nomes: a lista interminável do progresso medieval
Muitas vezes os leitores do blog desejam conhecer mais sobre a ciência e as invenções medieval, os grandes nomes e realizações.
Essas matéria foram sendo tratadas em "Glória da Idade Média" em diversos posts.
Eis uma seleção dos links, dentre os muitos do blog, que podem ser de interesse para quem quer conhecer mais:
Alguns grandes nomes da ciência medieval
Na Idade Média nasceu a ciência logicamente sistematizada
Sem a Igreja Católica não teria havido ciência e progresso autênticos
Na Idade Média, a Europa encheu-se de escritores, artistas, monumentos e invenções
Os hospitais: frutos da caridade desconhecidos antes da Idade Média
Universidades e catedrais francesas: faróis da cultura medieval
Invenção “sui generis” de um monge e Papa: o zero
Idade Média: era de grandes descobertas geográficas
Historiadores recusam os mitos anti-católicos e anti-medievais
Os mosteiros levaram a agricultura a patamar nunca visto
Descobertas grandes e surpreendentes
Castelos, abadias e aldeias medievais integradas com a natureza. Exemplo dos queijos e cervejas de Chimay
Melhores vinhos modernos: herança das abadias medievais
Monges trapistas fazem a melhor cerveja do mundo
Ordenadas pela lógica floresceram ciências como a mecânica, as matemáticas, a física e a astronomia
Nascimento e triunfo dos altos estudos
A minúscula carolíngia mudou o rumo da cultura e da alfabetização
Convite aos fiéis a aprofundar racionalmente as verdades da fé
Sob a doce luz de Cristo, a Idade Média foi uma explosão de liberdade, criatividade e progresso, diz catedrático de Lisboa
A revolução industrial da Idade Média: os surpreendentes planos de Villard de Honnecourt
A movimentada vida dos engenheiros medievais
A Idade Média à procura do Movimento Perpétuo para resolver o problema da energia
Energia industrial para invenções e “gadgets” em plena era medieval
A geometria a serviço do arquiteto medieval
Conhecimentos industriais e científicos da Antiguidade cuidadosamente aproveitados
Os mestres medievais autores de inventos atribuídos a Leonardo da Vinci
O relógio astronômico do Ocidente nasceu na Idade Média
Um abade na ponta da tecnologia: Dom Richard Wallingford
Uma vocação familiar para relógios nunca antes sonhados: os Dondi
Monges inventores de tecnologias logo comunicadas a todos
Idade Média: ingenuidade ou entendimento superior das coisas?
O monasticismo católico e a restauração da fé, da cultura e das ciências
A Idade Média achava que a Terra era plana?
Idade das Trevas? Ou Idade da Luz da Fé e da razão irmanadas?
O sistema universitário medieval: o oposto do conhecimento fragmentário hodierno
"Caso Galileu": manipulação revolucionária para abalar a hierarquia medieval das ciências
Sob o Catolicismo as ciências progrediram mais que em qualquer outra civilização
Invenções e instituições criadas na época medieval
A revolução industrial medieval: os começos da engenharia moderna
Mito errado: Na Idade Média a ciência ficou estagnada, e não houve progresso técnico
Na Idade Média nasceu a ciência logicamente sistematizada
Sem a Igreja Católica não teria havido ciência e progresso autênticos
Na Idade Média, a Europa encheu-se de escritores, artistas, monumentos e invenções
Os hospitais: frutos da caridade desconhecidos antes da Idade Média
Universidades e catedrais francesas: faróis da cultura medieval
Invenção “sui generis” de um monge e Papa: o zero
Idade Média: era de grandes descobertas geográficas
Historiadores recusam os mitos anti-católicos e anti-medievais
Os mosteiros levaram a agricultura a patamar nunca visto
Descobertas grandes e surpreendentes
Castelos, abadias e aldeias medievais integradas com a natureza. Exemplo dos queijos e cervejas de Chimay
Melhores vinhos modernos: herança das abadias medievais
Monges trapistas fazem a melhor cerveja do mundo
Ordenadas pela lógica floresceram ciências como a mecânica, as matemáticas, a física e a astronomia
Nascimento e triunfo dos altos estudos
A minúscula carolíngia mudou o rumo da cultura e da alfabetização
Convite aos fiéis a aprofundar racionalmente as verdades da fé
Sob a doce luz de Cristo, a Idade Média foi uma explosão de liberdade, criatividade e progresso, diz catedrático de Lisboa
A revolução industrial da Idade Média: os surpreendentes planos de Villard de Honnecourt
A movimentada vida dos engenheiros medievais
A Idade Média à procura do Movimento Perpétuo para resolver o problema da energia
Energia industrial para invenções e “gadgets” em plena era medieval
A geometria a serviço do arquiteto medieval
Conhecimentos industriais e científicos da Antiguidade cuidadosamente aproveitados
Os mestres medievais autores de inventos atribuídos a Leonardo da Vinci
O relógio astronômico do Ocidente nasceu na Idade Média
Um abade na ponta da tecnologia: Dom Richard Wallingford
Uma vocação familiar para relógios nunca antes sonhados: os Dondi
Monges inventores de tecnologias logo comunicadas a todos
Idade Média: ingenuidade ou entendimento superior das coisas?
O monasticismo católico e a restauração da fé, da cultura e das ciências
A Idade Média achava que a Terra era plana?
Idade das Trevas? Ou Idade da Luz da Fé e da razão irmanadas?
O sistema universitário medieval: o oposto do conhecimento fragmentário hodierno
"Caso Galileu": manipulação revolucionária para abalar a hierarquia medieval das ciências
Sob o Catolicismo as ciências progrediram mais que em qualquer outra civilização
Invenções e instituições criadas na época medieval
A revolução industrial medieval: os começos da engenharia moderna
Mito errado: Na Idade Média a ciência ficou estagnada, e não houve progresso técnico
No fim do Império Romano o analfabetismo era geral.
No fim da Idade Média foi o triunfo das Universidades
No fim da Idade Média foi o triunfo das Universidades
Universidade Jagellonica, Cracóvia, Polônia |
Para que se possa avaliar o que, em matéria intelectual, a Europa realizou durante a Idade Média, basta comparar a situação cultural em que ela se encontrava no início e no fim desse período histórico.
É necessário voltar sempre à mesma consideração, que é fundamental no Estudo da Idade Média.
Por isso, lembro novamente aos senhores a situação em que as invasões bárbaras e o fragoroso desabamento do Império Romano do Ocidente deixaram a Europa.
Já tive ocasião de dizer aos senhores que os bárbaros eram totalmente analfabetos, e que, na generalidade, nem sequer seus reis sabiam ler e escrever.
Os bárbaros arrasaram a civilização. Roma |
As invasões bárbaras foram grandes irrupções de analfabetismo, na Europa.
Depois de uma longa e penosa ascensão artística e intelectual a Europa, nos últimos séculos da Idade Média, se apresenta em situação diametralmente oposta a esta.
Numerosas e magníficas universidades se encontravam disseminadas por quase todos os países da Europa.
Bastará citar as de Paris, Oxford, Cambridge, Salamanca, Heidelberg e Praga, para que os senhores possam ter uma ideia do desenvolvimento intelectual dos estudos superiores da Idade Média.
Na Idade Média a Igreja criou as Universidades. Aula em Universidade medieval. Laurentius de Voltolina (Bologna, segunda metade século XIV. |
E as antigas universidades medievais que ainda existem continuam a ser das mais famosas do mundo inteiro.
Deu-se com as universidades pouco mais ou menos o que se deu com as corporações. Depois de abandonadas em muitos países ‒ que as consideravam como pouco práticas ‒ começaram novamente a ser restauradas.
No Brasil, a fundação das recentes universidades entre as quais a nossa, é um índice bem expressivo de como vai conquistando terreno a ideia da formação dos grandes centros de cultura superior.
Não será ocioso que, em duas palavras, eu lhes lembre o que significa, sob o ponto de vista cultural e didático, uma universidade.
Antes da fundação da Universidade de São Paulo, que tínhamos aqui diversas escolas superiores, entre as quais a nossa Faculdade de Direito, Escola de Medicina e a Escola Politécnica.
Esses estabelecimentos de ensino superior não tinham entre si qualquer vínculo de união, vivendo cada qual sua vida própria e autônoma, sob a direção até de Poderes públicos diversos, pois que nossa Faculdade de Direito era federal e as duas demais escolas eram estaduais.
A barbárie e o analfabetismo foram generalizados no inicio da Idade Média na Europa |
A Faculdade de Direito foi "estadualizada", isto é, deixou de ser um órgão de ensino federal, para passar a ser estadual.
E, tanto a Faculdade de Direito quanto a Escola de Medicina e a Escola Politécnica, passaram a fazer parte de um mesmo conjunto cultural, submetidas, sem prejuízo de sua autonomia, a uma alta direção comum, que é a Reitoria da Universidade.
No fundo dessa organização, há a ideia de que todos os estabelecimentos de ensino devem ter uma certa unidade de pensamento e de orientação, para que a cultura elaborada pelas escolas superiores seja homogênea nos mais diversos setores do saber humano.
Essa homogeneidade é dada à Universidade pelo estudo da filosofia.
Ora esta concepção é, na sua essência, genuinamente medieval e escolástica.
As grandes universidades medievais eram grandes centros de ensino superior, onde, à sombra da filosofia escolástica, e super-entendidas por ela, todas as ciências progrediam.
Como os senhores veem, não apenas as corporações mas também as universidades entram novamente em voga.
E isto atesta mais uma vez que a Idade Média não foi a época do obscurantismo e atraso que se costuma dizer...
Universidade de Louvain, Bélgica |
Especialmente os Papas trabalharam com afinco nessa obra, e grande número de universidades ainda hoje existentes foi fundado por decretos pontifícios.
As universidades deram à cultura medieval a magnífica unidade que a caracterizou.
Em lugar de termos, como hoje, uma cultura fragmentária, em que muitos juristas elaboram suas concepções com bases filosóficas que eles repudiam no terreno de suas convicções íntimas ou pessoais.
Em lugar de termos princípios reputados verídicos em Direito e falsos em Medicina, poderíamos ter uma cultura única e uniforme, se uma filosofia comum reunisse os sufrágios de todas as inteligências, como a filosofia escolástica, na Idade Média, reuniu os espíritos.
Nascimento e triunfo dos altos estudos
Faculdade de Medicina de Salerno |
Algumas dessas instituições recebiam da Igreja ou de Reis o título de Studium Generale; e eram consideradas os locais de ensino mais prestigiados da Europa, seus acadêmicos eram encorajados a partilhar documentos e dar cursos em outros institutos por todo o continente.
Tratando-se não apenas de instituições de ensino, as universidades medievais eram também locais de pesquisa e produção do saber, além de focos de vigorosos debates e muitas polêmicas. Isso também ficou claro nas crises em que estas instituições estiveram envolvidas e pelas intervenções que sofreram do poder real e eclesiástico.
A filosofia natural estudada nas faculdades de Arte dessas instituições tratava do estudo objetivo da natureza e do universo físico. Esse era um campo independente e separado da teologia; entendido como uma área de estudo essencial em si mesma, bem como um fundamento para a obtenção de outros saberes.
Influxo decisivo das ordens religiosas
Outro fator importante para o florescimento intelectual do período foi a atividade cultural das novas ordens mendicantes: especialmente os Dominicanos e os Franciscanos.
São Francisco e franciscanos, Benozzo Gozzoli |
A integração dessas ordens nas universidades medievais proporcionava a infra-estrutura necessária para a existência de comunidades científicas e iria gerar muitos frutos para o estudo da natureza, especialmente com a renomada escola Franciscana de Oxford.
O influxo de textos gregos, as ordens mendicantes e a multiplicação das universidades iriam agir conjuntamente nesse novo mundo que se alimentava do turbilhão das cidades em crescimento.
Em 1200 já havia traduções latinas razoavelmente precisas dos principais trabalhos dos autores antigos mais cruciais para a filosofia : Aristóteles, Platão, Euclides, Ptolomeu, Arquimedes e Galeno.
Nessa altura a filosofia natural (e.g. ciência) contida nesses textos começou a ser trabalhada e desenvolvida por escolásticos notáveis como: Robert Grosseteste, Roger Bacon, Alberto Magno e Duns Scot, que trariam novas tendências para uma abordagem mais concreta e empírica, representando um prelúdio do pensamento moderno.
A Igreja Católica, alma da reta glorificação da razão
Universidade Jagellonica, Cracovia, Polônia |
Além disso, afirmou que esses dois caminhos deveriam ser verificados - ou invalidados - através de experimentos que testassem seus princípios. Grosseteste dava grande ênfase à matemática como um meio de entender a natureza e seu método de pesquisa continha a base essencial da ciência experimental.
Roger Bacon, aluno de Grosseteste, dá atenção especial à importância da experimentação para aumentar o número de fatos conhecidos a respeito do mundo. Ele descreve o método científico como um ciclo repetido de observação, hipótese, experimentação e necessidade de verificação independente.
Bacon registrava a forma em que conduzia seus experimentos em detalhes precisos, a fim de que outros pudessem reproduzir seus experimentos e testar os resultados - essa possibilidade de verificação independente é parte fundamental do método científico contemporâneo.
Ordenadas pela lógica floresceram ciências como a mecânica, as matemáticas, a física e a astronomia
Estudo de D. Grosseteste sobre a refração da luz, século XIII |
Seus estudos em lógica levaram-no a defender o princípio hoje chamado de Navalha de Occam: se há várias explicações igualmente válidas para um fato, então devemos escolher a mais simples. Isso deveria levar a um declínio em debates infrutíferos e mover a filosofia natural em direção ao que hoje é considerado Ciência.
Nessa altura, acadêmicos como Jean Buridan e Nicole d'Oresme começaram a questionar aspectos da mecânica aristotélica.
Em particular, Buridan desenvolveu a teoria do ímpeto, que explicava o movimento de projéteis e foi o primeiro passo em direção ao moderno conceito de inércia. Buridan antecipou Isaac Newton quando escreveu:
...depois de deixar o braço do arremessador, o projétil seria movido por um ímpeto dado a ele pelo arremessador e continuaria a ser movido enquanto esse ímpeto permanecesse mais forte que a resistência. Esse movimento seria de duração infinita caso não fosse diminuído e corrompido por uma força contrária resistindo a ele, ou por algo inclinando o objeto para um movimento contrário.
Nessa mesma época, os denominados Calculatores de Merton College, de Oxford, elaboraram o Teorema da velocidade média.
Expositio in Aristotelis por Johannes Buridan |
Hoje sabemos que as principais propriedades cinemáticas do movimento retilíneo uniformemente variado (MRUV), que ainda são atribuídas a Galileu pelos textos de física, foram descobertas e provadas por esses acadêmicos.
Nicole d'Oresme, por sua vez, demonstrou que as razões propostas pela física Aristotélica contra o movimento do planeta Terra não eram válidas e invocou o argumento da simplicidade (da navalha de Occam) em favor da teoria de que é a Terra que se move, e não os corpos celestiais.
No geral, o argumento de Oresme a favor do movimento terrestre é mais explícito e bem mais claro do que o que foi dado séculos depois por Copérnico. Entre outras proezas, Oresme foi o descobridor da mudança de direção da luz através da refração atmosférica; embora, até hoje, o crédito por esse feito tenha sido dado à Robert Hooke.
Em 1348, a Peste Negra levou este período de intenso desenvolvimento científico a um fim repentino. A praga matou um terço da população européia. Por quase um século, novos focos da praga e outros desastres causaram contínuo decréscimo populacional. As áreas urbanas, geralmente o motor das inovações intelectuais, foram especialmente afetadas.
Cristianismo e o estudo da natureza
O pensamento de Santo Agostinho foi basilar ao orientar a visão do homem medieval sobre a relação entre a fé cristã e o estudo da natureza.
Ele reconhecia a importância do conhecimento, mas entendia que a fé em Cristo vinha restaurar a condição decaída da razão humana, sendo, portanto, mais importante.
Livre de la Chasse, BNF, Paris |
Escritos como sua interpretação “alegórica” do livro bíblico do gênesis vão influenciar fortemente a Igreja medieval, que terá uma visão mais interpretativa e menos literal dos textos sagrados.
Durante os tempos confusos da dissolução do Império Romano do Ocidente e dos primeiros séculos da Idade Média muito da cultura clássica se perdeu, mas o declínio cultural teria sido bem mais intenso não fosse pelo monasticismo, mais especificamente pela ação dos monges copistas.
É bem verdade que os textos em grego já não estavam mais acessíveis pelo esquecimento do idioma e que os escritos que passavam pelo trabalhoso processo de cópia manual eram selecionados de acordo com a importância dada a eles pelos religiosos.
A Igreja também esteve a cargo da estrutura educacional, ou, pelo menos, supervisionando a mesma. Quando Carlos Magno chamou o monge Alcuíno para elaborar uma reforma na educação européia, a Igreja ficou responsável tanto pelas escolas monacais quanto pelas escolas catedrais.
A maioria das universidades nos séculos XII e XIII surgiram precisamente de escolas ligadas às catedrais e funcionavam sob a proteção de jurisdição eclesiástica.
Com relação à investigação da natureza, que renasceu na Idade Média Clássica, já foi mencionada a importância das ordens religiosas mendicantes.
Alcuino, abade de York |
Embora Bernardo de Claraval e alguns outros religiosos tenham chegado a desencorajar o estudo das ciências por entenderem que muitos buscavam esses conhecimentos por vaidade, seus pontos de vista jamais foram adotados.
A Inquisição estava presente, mas a Igreja concedia aos professores muita elasticidade em suas doutrinas e, em muitos casos, estimulou as investigações científicas.
Nas universidades, o campo da filosofia natural dispunha de grande liberdade intelectual, desde que restringisse suas especulações ao mundo natural.
Embora se esperassem retaliações e castigos caso os filósofos naturais passassem desse limite, os procedimentos disciplinares da Igreja eram voltados principalmente aos teólogos, que trabalhavam numa área bem mais perigosa.
Em geral, havia suporte religioso para a ciência natural e o reconhecimento de que esta era um importante fator no aprendizado.
Os mosteiros medievais resgataram e transmitiram o saber da Antiguidade
Saladino incendeia uma cidade, Chroniques de Guilhaume de Tyr, BNF. O Islã foi um dos máximos destruidores da cultura antiga. |
“Afirma-se, no mesmo embalo, que os autores de Antiguidade não foram conhecidos senão por intermédio dos Árabes, únicos capazes de explorar e transmitir essa cultura que nossos clérigos menosprezavam.
“Esses livros falam a vontade dos sábios e dos tradutores de Toledo que no tempo dos califas de Córdoba teriam estudado e teriam tornado conhecidos os autores antigos.
“Mas, eles se esquecem de lembrar que essa cidade episcopal, como muitas outras, e numerosos mosteiros, já no tempo dos reis bárbaros, e bem antes da ocupação muçulmana, era um grande centro de vida intelectual totalmente penetrado pela cultura antiga.
Nos 'scriptorium' dos mosteiros os monges salvaram a cultura, copiando os grandes escritos da Antiguidade pagã |
“Querem nos fazer acreditar nas piores asneiras e mostram para nós os monges como copistas ignaros, só ocupados na transcrição dos textos sagrados, obsedados em jogar no fogo preciosos manuscritos dos quais nada podiam compreender.
“Entretanto, testemunha alguma nos tempos obscuros da Idade Média viu alguma vez uma biblioteca entregue às chamas e são numerosos os que, pelo contrário, falam de mosteiros reunindo importantes coleções de textos antigos.
Reconstituição virtual do 'scriptorium' do Mont Saint-Michel. |
“Não há sequer indício na Igreja, nem no Oriente nem no Ocidente, de qualquer tipo de fanatismo, enquanto que os muçulmanos eles próprios relatam numerosos exemplos do furor de seus teólogos e de seus chefes religiosos contra os estudos profanos. (…)
“Os 'árabes' certamente procuraram menos e estudaram menos os autores gregos e romanos que os cristãos.
“Os ocidentais não tinham necessidade alguma da ajuda dos árabes porque dispunham em seus países de coleções de textos antigos, latinos e gregos, reunidos no tempo do império romano e que tinham permanecido nos locais originais.
“Sob todo ponto de vista, era em Bizâncio e não nos “árabes” que os clérigos de Europa iam aperfeiçoar seu conhecimento da Antiguidade.
Modelo de mesas típicas de um 'scriptorium' monástico medieval |
“Na Espanha dos visigodos, os mosteiros, as escolas episcopais, os reis e os nobres recolhiam os livros antigos em suas bibliotecas.
“A Espanha servia de etapa na rota marítima rumo à Armorique (Bretanha) e à Irlanda onde os monges, lá também, estudavam os textos profanos da Antiguidade.
“Pode se esquecer que os Bizantinos, nos anos 550, reconquistaram e ocuparam a Itália toda, as províncias marítimas da Espanha e uma boa parte do que fora a África romana?
“Que Ravenna ficou grega durante mais de duzentos anos e que os italianos chamaram essa região de Romagna, a terra dos romanos, quer dizer dos bizantinos, herdeiros do império romano?
“Também nada é dito sobre o papel dos mercadores da Itália, da Provence ou da Catalunha que desde os anos mil frequentavam regularmente os portos do Oriente, com mais frequência Constantinopla que Cairo.
“Seria preciso imaginá-los como seres cegos, sem alma e sem cérebro, sem outra curiosidade senão suas especiarias?
“Apresentar os ocidentais como tributários das lições dadas pelos árabes é facciosismo e ignorância demais.
“Não é outra coisa senão uma fábula que reflete uma curiosa tendência para se denegrir a si próprio.”
(Fonte: Jacques Heers, Nouvelle Revue d’Histoire, n°1. Heers foi professor de História e ensinou nas Faculdades de Literatura e nas Universidades de Aix-en-Provence, Alger, Caen, Rouen, Paris X-Nanterre e Sorbonne (Paris IV). Foi Diretor do Departamento de Estudos Medievais da Universidade Paris-Sorbonne.)
Criação das universidades na época medieval
Universidade de Cambridge, Inglaterra |
Mas não é preciso ir muito longe para verificar o contrário.
Basta considerar uma das máximas realizações medievais: as universidades.
Aliás, foi um aporte exclusivo à História. Nem Grécia ou Roma conheceram algo parecido.
A Cátedra de Pedro foi a maior e mais decidida protetora das universidades. O diploma de mestre, outorgado por universidades como as de Bolonha, Oxford e Paris, dava direito a ensinar em todo o mundo.
Gregório IX aprova os Decretais, Rafael, Stanza della Segnatura, Roma |
A Igreja protegeu os universitários com os benefícios do clero. Os estudantes da Sorbonne dispunham de um tribunal especial para ouvir suas causas.
Na bula Parens Scientiarum, Gregório IX confirmou à Universidade de Paris o direito a um governo autônomo e a fixar suas próprias regras, cursos e estudos.
Também a emancipou da tutela dos bispos e ratificou o direito à cessatio — a greve das aulas — se os seus membros fossem objeto de abusos, como aluguéis extorsivos, injúrias, mutilação e prisão ilegal.
Os Papas intervinham com força, a fim de que os professores fossem pagos dignamente.
Completados os estudos, o novo mestre era oficialmente investido. Em Paris, isso ocorria na igreja de Santa Genoveva, padroeira da cidade. O novo mestre ajoelhava-se diante do vice-chanceler da Universidade, que pronunciava esta bela fórmula:
"Eu, pela autoridade com que fui revestido pelos Apóstolos Pedro e Paulo, vos concedo a licença de ensinar, comentar, disputar, determinar e exercer outros atos magisteriais seja na Faculdade de Artes de Paris, seja em qualquer outra parte, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amem”.
Vídeo: O sistema universitário foi criado pela Igreja.
Para ver todo o curso CLIQUE AQUI
Como passar do caos à Civilização. A obra beneditina
São Bento |
No Ocidente, o monaquismo foi estruturado por São Bento de Núrsia.
Sua regra é de uma moderação e de um senso da ordem admiráveis.
Até inícios do século XIV os beneditinos tinham dado à Igreja 24 Papas, 200 cardeais, 7.000 arcebispos, 15.000 bispos e 1.500 santos canonizados. Em seu auge, a Ordem Beneditina reuniu 37.000 mosteiros.
E não é uma questão apenas de números.
A Ordem era tão admirada, que nela foram concluir seus dias 24 imperadores, 10 imperatrizes, 42 reis e 15 rainhas.
Essa colossal rede monástica explica a transformação do caos que existia no início da Idade Média, na civilização por excelência, a despeito de invasões e guerras.
Quando os gregos sofreram a invasão dos dórios no século XII a.C., recaíram durante três séculos no analfabetismo.
copista medieval |
Não menos devastadoras foram as invasões posteriores de vikings, saxões, magiares ou maometanos.
Mas a determinação inabalável de bispos e monges salvou a Europa de um segundo colapso.
De acordo com o historiador malês Cristopher Dawson, as hordas saquearam mosteiros e queimaram bibliotecas, mas os monges impediram que a luz do conhecimento fosse extinta.
Alguns mosteiros ficaram célebres pelo domínio de certos ramos do saber.
Os monges de Saint-Bénigne em Dijon, na França, davam aulas de medicina.
Universidade de Salamanca |
Em conventos alemães podiam-se assistir aulas em grego, hebreu e árabe.
Os monges tinham devoção pelos livros e embelezavam os manuscritos, especialmente as Escrituras, com artísticas iluminuras.
São Bento Biscop, fundador do mosteiro de Wearmouth (Inglaterra), mandava trazer livros de toda parte.
São Maïeul, abade de Cluny (na França), viajava sempre com um livro à mão. São Hugo de Lincoln, prior de Witham, primeira cartuxa na Inglaterra, explicou:
"Nossos livros são nossa delícia e nossa riqueza em tempos de paz, nossas armas ofensivas e defensivas em tempo de guerra, nosso alimento quando temos fome, e nosso medicamento quando estamos doentes".
Vídeo: a Igreja e as origens do Direito Internacional
Requintes medievais na arte de ensinar aos alunos
Jovem doutor em leis, do século XV |
Os intelectuais de então diziam que o homem é um ser que esquece suas experiências.
Ele consegue resgatá-las através da linguagem .
Assim, a expressão educação era entendida como estando associada à sua raiz etimológica latina: educe, “fazer sair”.
Como o conhecimento já existia inato no indivíduo, restava responder à seguinte pergunta: de que modo o estudante era conduzido da ignorância ao saber?
Como o aluno aprendia?
Essa era a questão básica dos educadores medievais.
Preocupados com a forma da aquisição, os pedagogos de então tiveram uma importante consciência: cabia ao professor “acender uma centelha” no estudante e usar seu ofício para formar e não asfixiar o espírito de seus alunos.
Muito moderna a educação medieval!
(Autor: Ricardo da Costa, Prof. Adjunto de História Medieval da Universidade Federal do Espírito Santo. Home-page: www.ricardocosta.com riccosta@npd.ufes.br. Texto completo em Mania de História).
Nos mosteiros: escolas gratuitas para crianças de todas as condições
São Bento ressuscita uma criança do convento morta em acidente. Lorenzo Monaco (1370 – 1425). Galleria degli Uffizi, Florença. |
Os monges criaram verdadeiros “jardins de infância” nos mosteiros, recebendo indistintamente todas as crianças entregues, vestindo-as, alimentando-as e educando-as, num sistema integral de formação educacional.
As comunidades monásticas célticas foram as que mais avançaram nesse novo modelo de educação, pois se opunham radicalmente às práticas pedagógicas vigentes das populações bárbaras, que defendiam o endurecimento do coração já na infância.
Pelo contrário, ao invés de brutalizar o coração das crianças para a guerra e a violência, os monges o abriam para o amor e a serenidade .
As crianças eram educadas por todos do mosteiro até a idade de quinze anos. A Regra de São Bento prescreve diligência na disciplina: que as crianças não apanhem sem motivo, pois “não faças a outrem o que não queres que te façam.”
O sistema medieval e monástico previa a aplicação de castigos.
Na Bíblia há passagens sobre os castigos com vara que devem ser aplicados aos filhos; na Regra de São Bento há várias passagens (punição com jejuns e varas , pancadas em crianças que não recitarem corretamente um salmo), e esse ponto foi muito destacado e criticado pela pedagogia moderna, que, no entanto, não levou em consideração as circunstâncias históricas da época.
Naturalmente isso se deve a um anacronismo e preconceito que não condizem com a postura de um historiador sério.
Basta buscar os textos de época que vemos a felicidade dos egressos dos mosteiros pelo fato de terem sido amparados, criados e educados.
Ao se recordar do mosteiro onde passou sua infância, São Cesário de Arles (c. 470-542) diz:
“Essa ilha santa acolheu minha pequenez nos braços de seu afeto. Como uma mãe ilustre e sem igual e como uma ama-de-leite que dispensa a todos os bens, ela se esforçou para me educar e me alimentar”.
Por sua vez, Walafried Strabo (806-849), então jovem monge, nos conta em seu Diário de um Estudante:
“Eu era totalmente ignorante e fiquei muito maravilhado quando vi os grandes edifícios do convento (…) fiquei muito contente pelo grande número de companheiros de vida e de jogo, que me acolheram amigavelmente.
“Depois de alguns dias, senti-me mais à vontade (…) quando o escolástico Grimaldo me confiou a um mestre, com o qual devia aprender a ler. Eu não estava sozinho com ele, mas havia muitos outros meninos da minha idade, de origem ilustre ou modesta, que, porém, estavam mais adiantados que eu.
“A bondosa ajuda do mestre e o orgulho, juntos, levaram-me a enfrentar com zelo as minhas tarefas, tanto que após algumas semanas conseguia ler bastante corretamente (…)
“Depois recebi um livrinho em alemão, que me custou muito sacrifício para ler mas, em troca, deu-me uma grande alegria…”
Esses são apenas dois de muitos exemplos que contam a felicidade e a alegria que os medievais sentiram com o fato de terem tido a sorte de serem acolhidos em um mosteiro.
(Fonte: Ricardo da Costa, Prof. Adjunto de História Medieval da Universidade Federal do Espírito Santo. Home-page: www.ricardocosta.com riccosta@npd.ufes.br. Texto completo em Mania de História).
O sistema universitário medieval oposto do conhecimento fragmentado hodierno
Especialmente os Papas trabalharam com afinco nessa obra, e grande número de universidades ainda hoje existentes foi fundado por decretos pontifícios.
Independente das polêmicas, a mais antiga é a de Bolonha na Itália instituída em 1088. O Imperador Federico I pela "Constitutio Habita" (lei orgânica da universidade) transformou-a praticamente numa Cidade Estado.
A mais antiga da Inglaterra é a celebérrima Universidade de Cambridge fundada em 1209 pelo rei Henrique II. Mas a primeira que ganhou o nome de "Universidade" foi a de Salamanca, fundada em Espanha em 1218, a mais antiga do país.
As universidades deram à cultura medieval a magnífica unidade que a caracterizou.
O conceito de "universitas" que gerou o termo Universidade é o oposto da atual formação universitária altamente especializada e por isso também altamente fragmentada.
A "Universitas" medieval foi concebida como uma instituição universal com poderes autônomos, até de governo e policia, a serviço de uma Ciência também universal, em função da qual as diversas ciências estão hierarquicamente organizadas e harmonizadas.
Na decadência atual do espírito universitário, por exemplo, muitos advogados ou juristas elaboram suas concepções com bases filosóficas que eles não aplicam ou aceitam no terreno de suas convicções íntimas ou pessoais.
Entrada da Universidade de Salamanca, Espanha, fundada em 1218. Foi a primeira a receber o nome de Universidade. Mas "só" é a terceira mais antiga da Europa católica e do mundo. |
Não havia princípios reputados verídicos em Direito e tidos como falsos em Medicina, como por exemplo a respeito do aborto ou da ideologia de gênero.
Uma cultura universal unida por uma filosofia comum reunia os sufrágios de todas as inteligências e as ciências visando um bem comum superior.
Essa filosofia era a escolástica, aristotélica-tomista, que na Idade Média reunia os espíritos e os levava a sempre maiores construções do saber com uma maravilhosa adequação às mais pequenas realidades da vida quotidiana.
Série da EWTN apresentada por Thomas E. Woods, autor do livro "Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental".
Episódio 5: O Sistema Universitário. Legendado em Português.
Bula “Universitas Parens Scientiarum” do Papa Gregório IX regulamentando a Universidade de Paris
Gregório IX, autor da Bula “Universitas Parens Scientiarum” Detalhe de afresco nas "Stanze di Raffaello", Vaticano. Raffaello Sanzio da Urbino (1483 – 1520). |
Em diversos posts deste blog tratamos da importância capital do impulso dado pelos Papas às Universidades.
A seguir apresentamos um exemplo de como os Papas fizeram isso.
Trata-se da Bula “Universitas Parens Scientiarum” de 13 de abril de 1231, emitida pelo Papa Gregório IX (1227-1241), regulamentando as atividades da Universidade de Paris, mais conhecida como a Sorbonne.
Numa época como a nossa em que as Universidades Católicas se revoltam contra as legítimas autoridades eclesiásticas e até decapitam em esfinge ao Santo Padre, como aconteceu na PUC de São Paulo, o documento a seguir produz um efeito ordenativo restaurador:
Gregório bispo, servidor dos servidores de Deus, a seus amados filhos, a todos os mestres e estudantes de Paris, saudação e bênção apostólica.
Paris, mãe das ciências, como uma outra Cariath Sepher, cidade das letras, brilha com um esplendor precioso, grande sem dúvida.
Ela faz ouvir de si as maiores coisas, graças àqueles que nela apreendem e ensinam (...)
Desta maneira, é fora de dúvida que aquele que em dita cidade se esforçar para perturbar uma graça tão resplandecente ou aquele que não se opuser claramente e com força àqueles que a perturbam, desagrada profundamente a Deus e aos homens.
Paris medieval, época em que nasceu e floresceu a atual Universidade da Sorbonne.
Detalhe de iluminura do século XV, anônimo.
É por isso que, tendo considerado atentamente os problemas que nos foram submetidos a propósito da discórdia que ali nasce por instigação do diabo e que perturba gravemente os estudos, Nós julgamos, após ouvir o conselho de nossos irmãos, que é preferível resolver os problemas de modo mais prudente com um regulamento do que por uma decisão judicial.
Assim, no que concerne ao estatuto dos estudantes e das escolas, Nós decidimos que se deverão aplicar as seguintes regras:
Reunião de doutores da Universidade de Paris.
Fonte: manuscrito 'Chants royaux', Bibliothèque Nationale,
Paris, Français 1537, fol. 27v.
Autor: Etienne Collault (1521-1541).
Aquele que será escolhido como Chanceler de Paris deverá, na hora de sua posse, jurar diante do bispo, ou por decisão dele, diante do capítulo de Paris, na presença de dois mestres convocados para isso em representação da Universidade dos estudantes de Teologia e de Direito, lealmente e segundo a sua consciência, que ele não concederá licença de ensinar senão a homens dignos em função do lugar e do momento, segundo o estatuto da cidade, a honra e o renome das Faculdades, e recusará a licença aos indignos, afastando toda acepção de pessoa ou de origem.
Antes de conceder a licença a quem quer que seja, nos três meses a contar desde a apresentação do pedido de licença, ele deverá fazer-se examinar com diligencia, pelos mestres em teologia presentes na cidade e também por outras pessoas honestas e cultivadas, para que por meio deles se possa conhecer o valor, as ambições e outras coisas que se examinam nessas ocasiões.
Tendo assim examinado tudo o que convém fazer e parecer oportuno, o Chanceler, de acordo com sua alma e consciência, concederá ou recusará ao candidato a licença solicitada.
Quanto aos mestres de teologia e direito, quando eles começarem a dar aulas, prestarão juramento público de dar fiel testemunho das coisas ditas. O Chanceler jurará também não revelar jamais as declarações dos mestres se for em detrimento deles, da sua liberdade e do direito dos cônegos de Paris, que continuam com todo seu vigor inicial.
No caso dos médicos, dos artistas e dos outros, o Chanceler prometera examinar lealmente os mestres e admitir pessoas dignas, excluindo as indignas.
Estudantes na Universidade de Paris.
Detalhe de iluminura de
'Liber ethicorum des Henricus de Alemannia'.
Laurentius de Voltolina (séc. XIV) Bolonha, Itália.
Kupferstichkabinett, Berlim.
Além do mais, sendo verdadeiro que o mal se infiltra facilmente onde reina a desordem, Nós vos concedemos o poder de estabelecer sábias constituições ou regulamentos sobre os métodos e os horários das lições, das discussões, sobre as vestimentas apropriadas e as cerimônias funerárias.
Sobre os bacharéis: quem deverá dar as aulas, a hora, o autor escolhido, as taxas dos aluguéis e a proibição de certas casas, bem como o poder de castigar devidamente aqueles que se rebelarão contra estas constituições ou regulamentos, expulsando-os se mister (...).
Aquele que cometer um crime que postula prisão será detido no cárcere do bispo, ficando o Chanceler absolutamente proibido de manter uma prisão privada.
Nós proibimos, além do mais, que qualquer estudante venha preso por causa de uma dívida, pois isso está proibido por decisões canônicas regulares.
Nem o bispo, nem seu vigário, nem o Chanceler poderá pronunciar uma pena pecuniária para levantar uma excomunhão ou qualquer outra censura.
O Chanceler não poderá exigir dos mestres aos quais concedeu licença, juramento algum, ou qualquer sinal de submissão, ou outra forma, e não exigirá em virtude deste documento soma alguma de dinheiro ou obrigação, mas se contentará com o juramento acima indicado.
Nós proibimos formalmente os estudantes de andarem armados e ordenamos que a Universidade interdite aqueles que perturbarem a paz e o estudo.
Estatutos da Universidade de Paris.
Foto: Chancellerie des Universités de Paris
Aqueles que fingem serem estudantes sem frequentar as aulas nem terem mestres, jamais poderão gozar das franquias (libertas) dos estudantes (...).
Que ninguém infrinja esta decisão, constituição, concessão, proibição e interdição, ou ouse opor-se a ela com audácia temerária.
E se alguém ousar atentar, saiba que encontrará a indignação de Deus todo-poderoso e dos bem-aventurados Apóstolos Pedro e Paulo.
Dado em Latrão, nos idos de abril, do quinto ano de nosso pontificado.
(Fonte: Internet Medieval Sourcebook, https://sourcebooks.fordham.edu/source/uparis-stats1231.asp, Gregório IX (1227-1241), Bula “Universitas Parens Scientiarum”, datada de 13 de abril de 1231. “Chartularium Universitatis Parisiensis”, éditions H. Denifle et E. Chatelain, Paris, Delalain, 1889, Tome 1, p. 136-139).
Esplendor das Universidades medievais
Não é verdade que a Idade Média tenha sido uma época de estreitamento intelectual, escreveu Jean Guiraud.
O testemunho que ela deixou de si mesma nos dá uma impressão toda contrária.
O século que precedeu a Renascença, o século XIV, foi, no dizer de M. Coville, “uma época de grande atividade intelectual”.
A Universidade de Paris exercia a profissão de fazer falar a “razão no seio da Igreja – Ratio dictans in Ecclesia”.
Gerson a chamava “nosso Paraíso terrestre no qual estava a árvore da ciência do bem e do mal”.
Seus ensinamentos tinham gerado centenas de mestres seguidos por milhares de estudantes.
“A Faculdade de Artes nos dá, em 1349, 502 mestres regentes (titulares); em 1403 já havia 790, e esse número é inexato.
No sínodo de Paris de 1406, Jean Petit falava de mil mestres e um assistente o interrompeu para retificar, afirmando existirem dois mil”.
Não se saberia determinar o número dos estudantes. Juvenal de Ursins diz seriamente, a propósito de um desfile em 1412:
“O desfile foi feito da Universidade de Paris até Saint-Denis; e quando os primeiros estavam em Saint-Denis, o reitor estava ainda em Saint-Mathurin, rua Saint-Jacques”.
Isto significa um cortejo de estudantes com mais de 12 quilômetros de extensão!
E isto não nos deve deixar admirados porque, já no século XIII, estimava-se em 30.000 a população universitária de Paris e em 20.000 a de Bologna.
Tornando-se mais importante pelo seu renome e a multidão de seus mestres, a Universidade de Paris tinha numerosas rivais na França e na Europa inteira.
O mundo cristão apresentava uma população de estudantes tão considerável, que mesmo nossos tempos não podem superá-la em número.
Ora, durante todos os séculos da Idade Média, este povo de estudantes tinha dado provas de uma vida intelectual intensa.
“Em certas ruas, escreve M. Coville, não havia casa sem escola; de todo lado se elevavam as construções imponentes dos colégios; em toda parte ensinava-se, discutia-se.
“A vida se passava em longos comentários de autores e em argumentação ou 'disputas', segundo a expressão consagrada.
“Havia as sessões solenes de argumentação na Faculdade de Artes, nos colégios da Navarra e da Sorbonne onde estes exercícios se prolongavam mesmo durante o recreio.
“É ao começo do século XIV que se reporta a instituição da sustentação dita “Sorbonnique” onde o autor devia sustentar uma tese durante doze horas.
“A Universidade nunca havia tido uma atividade intelectual tão intensa”.
Capela da Universidade de Coimbra |
O Anjo da Escola, São Tomás de Aquino, não havia ensinado que a razão pode render conta da fé e que a teologia é uma ciência?
“Seriam necessários inúmeros volumes – nos diz Victor Le Clerc – para enumerar a multidão dos teólogos que floresceram no século XIV, teólogos esses tão numerosos e tão fecundos que se faziam notar pelo ardor de suas especulações”.
(Autor: Jean Guiraud - “Histoire Partiale, Histoire Vraie”)
SEGUNDA CLASSE: A NOBREZA
Nobreza: segunda classe da época medieval
A nobreza era a classe militar |
Formava por isso a segunda classe social. A primeira, obviamente, era o clero.
O senhor feudal devia garantir a segurança do território
Os plebeus não eram obrigados a combater na época de guerra, a não ser que o contrato com o senhor o exigisse.E ainda assim, apenas dentro de certos limites de tempo e espaço.
Desta maneira, não lutavam durante o tempo das colheitas, nem deviam deslocar-se além de uma certa distância do lugar onde moravam.
Porém podiam engajar-se como mercenários, ganhando dinheiro com a guerra e enriquecendo com os saques.
O nobre era obrigado a combater, tendo a pagar o imposto do sangue, muito penoso naquela época.
As condições existentes para o tratamento adequado dos traumatismos e mutilações recebidos em combate eram muito precárias no início da Idade Média.
E só foram melhorando nos últimos séculos medievais por obra do clero que criou os hospitais e desenvolveu a medicina.
Além disso, o senhor feudal era obrigado a exercer gratuitamente, em suas terras, as funções de prefeito, juiz e delegado de polícia.
E podia ser punido pelo Rei, caso tais funções não fossem bem executadas.
Outra obrigação sua era a caça às feras daninhas à agricultura, de que a Europa estava cheia, como javalis, ursos e raposas.
Nobre dirige os trabalhos no feudo |
E se a Europa ficou livre das feras foi porque os nobres cumpriram sua missão.
Todos julgavam muito razoável que não pagasse impostos quem arcava com despesas para a luta armada, o combate aos bandidos e feras, a manutenção de estradas, pontes, cadeias, funcionários de justiça e de administração, etc.
Por outro lado, havia duas espécies de impostos.
Um recaindo sobre as pessoas e as terras, que clérigos e nobres não pagavam.
Porém os impostos indiretos sobre as mercadorias, eram pagos por todos, inclusive os nobres.
Deveres da classe nobre feudal e participação no poder real
A classe nobre formou-se como uma participação subordinada no poder real.
Estava a cargo dela o bem comum de ordem privada, que era a conservação e o incremento da agricultura e da pecuária, das quais viviam tanto nobres quanto plebeus.
E também estava a cargo dela o bem comum de ordem pública – decorrente da representação do rei na zona – mais elevado, de natureza mais universal, e por isso intrinsecamente nobre.
Por fim, tinha a nobreza alguma participação no exercício do próprio poder central do monarca, pois os nobres de categoria mais elevada eram, em mais de um caso, conselheiros normais dos reis.
E nobres eram, na maior parte, os ministros de Estado, os embaixadores e os generais, cargos indispensáveis para o exercício do governo supremo do País.
Ou seja, o nexo entre as altas funções públicas e a condição nobiliárquica era tal que, mesmo quando ao bem comum convinha que pessoas da plebe fossem elevadas a essas funções, geralmente acabavam por receber do rei títulos nobiliárquicos que as alçavam, e muitas vezes também aos seus descendentes, à condição de nobres.
O proprietário, colocado pela força das circunstâncias em missão mais elevada do que a da mera produção fundiária, isto é, a de certa tutela da salus publica na guerra como na paz, assim se achava investido de poderes normalmente governamentais, de extensão local.
Desse modo, ascendia ele ipso facto a uma condição mais alta, na qual lhe cabia ser como que uma miniatura do rei.
A sua missão era, pois, intrinsecamente participativa da nobreza da própria missão régia.
A figura do proprietário-senhor nobre nascia assim da espontânea realidade dos factos.
Essa missão, a um tempo privada e nobre, comportou uma ampliação paulatina quando as circunstâncias – mais desafogadas de apreensões e perigos externos – iam permitindo à Europa cristã conhecer mais longos períodos de paz.
E por muito tempo não cessou de ampliar-se.
A nobreza podia ser adquirida, de preferência por méritos, ou perdida por deméritos
João II, rei da França, aduba cavaleiros, iluminura século XIV-XV, BNF |
Foi o que aconteceu em grande escala pelos fins do século XIII.
Numerosos tinham sido os nobres mortos ou arruinados nas grandes expedições, então muitos tornaram-se nobres, fato que deu origem a uma reação da nobreza.
A cavalaria enobrecia aquele a quem ela era conferida.
E com o correr dos tempos surgiram os títulos de nobreza, que na verdade foram distribuídos muito parcimoniosamente.
Podia-se adquirir a nobreza, mas também podia-se perdê-la por decadência, como decorrência de uma condenação infamante.
A vergonha de uma hora apaga bem quarenta anos de honra — dizia-se.
Ela se extinguia ainda pela derrogação, quando um nobre confessava ter exercido um ofício plebeu ou um tráfico qualquer.
Com efeito, era proibido sair do papel que lhe fora conferido. Ele não devia mais procurar se enriquecer, assumindo cargos que lhe poderiam fazer negligenciar aqueles aos quais dedicou sua vida.
Adubação de um cavaleiro, Roman de Troyes |
O tráfico marítimo era permitido aos nobres porque exige, além de capitais, um espírito de aventura, que não seria conveniente coibir.
No século XVIII Colbert alargará os campos de atividade econômica da nobreza, para dar mais impulso ao comércio e à indústria.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
O caráter familiar da sociedade e do relacionamento na estrutura da Igreja medievais
Casimiro III, o Grande, rei da Polônia. Uniu o país e amou seu povo como um pai ama seu filho. |
As relações do senhor com o vassalo, ou as relações entre o mestre (patrão) e o aprendiz nas corporações de ofícios, por exemplo, uma nota característica da sociedade medieval foi a existência dos imponderáveis próprios da vida familiar.
Compreendendo o caráter familiar da sociedade medieval é fácil o mais rico da vida de toda aquela época.
O mais pobre, primeiro e elementar dos observadores ou dos sociólogos reconhece que as relações familiares se compõem de relações entre esposo e esposa, de pais com filhos, de irmãos e irmãos. Não há outro conteúdo nas relações familiares.
Ora, na vida medieval, essas relações de esposo e esposa, pai e filho, irmão e irmão, na Idade Média eram também usadas correntemente para descrever o modo de viver de todas as relações medievais.
Isto é completamente diferente do modo que acontecia nas sociedades pagãs, anteriores, e do que acontece nas sociedades modernas.
Por exemplo, o bispo se dizia e agia como esposo de sua diocese, e a diocese era a esposa mística do bispo.
De onde muitos bispos antigos tinham a ideia de que não podiam ser transferidos de sua diocese.
O motivo era que uma vez que o esposo casa com a esposa, deve ser um marido fiel e não se compreende o divórcio.
Os medievais não compreendiam que ele abandonasse sua diocese e fosse transferido para outra.
Por causa dessa noção de desponsório místico do bispo com sua diocese, não vivia apenas como gerente de um patrimônio espiritual, que devia cuidar de fazer render, mas ele era verdadeiramente esposo até a morte.
Dom Jean Tissendier, bispo de Rieux. Musée des Augustins, Toulouse, França. |
Também encontramos muito frequentemente nos tratadistas medievais a noção de que o rei é o esposo do reino e que ele está para o reino como o esposo está para a esposa.
Isto tinha uma expressão simbólica numa das cerimônias mais tocantes da Idade Média – cerimônia que durou até a Revolução Francesa – que era o famoso desponsório do doge de Veneza com o mar.
Veneza era a rainha do Adriático e todos os anos o doge de Veneza celebrava essas núpcias com o mar por esta forma: constituía-se um cortejo brilhante de gôndolas, todas elas enfeitadas e floridas, no esplendor e colorido do mar de Veneza e iam até a entrada da laguna.
Aí o doge, com seus trajes luxuosíssimos, no meio do fausto da aristocracia veneziana, jogava no mar um anel finamente trabalhado que era para ser devorado pelas entranhas do mar.
O gesto simbolizava o casamento de Veneza com o mar, e o casamento do doge com Veneza. Tal vez com alguma reminiscência pagã, mas um gesto muito bonito e muito artístico.
O que há de diferente com um político ou um gerente de um país ou de uma grande empresa.
O gerente da grande empresa se é muito bom, cumpre seu contrato. Ele foi contratado para trabalhar tantas horas por dia, quando acaba, ele fecha seu escritório, toma a chave e vai embora. A ninguém lhe ocorre dizer que ele é esposo da empresa.
Fora das horas de trabalho, ele não pensa nela, não vive para ela, não é dela.
Por que um doge era esposo de Veneza?
É porque ele estava ligado inteiro: Veneza era para ele, ele era para Veneza, não era um funcionário, mas o esposo que dava tudo: a vida, o repouso, a saúde, por ela.
O contrário desse espírito de família é o de mercenário.
Réplica hodierna do 'Bucentauro', nave usada pelos doges de Veneza para o 'desposório' com o mar. |
Ele dirigia a coisa pública com dedicação e competência. No mais, ele tinha a sua vida particular, que era diferente e onde ele fazia o que bem entendia.
Não era esta a situação de um rei, ou de um nobre, medieval em relação ao seu povo.
Ele se considerava o pai de seus súditos, ele não era um mero funcionário para gerir os negócios dos súditos, mas era um homem que tinha feito a imolação de sua vida a favor deles, como um bom pai se imola pelos filhos.
Seu dever consistia em ser o homem que dirige para fazer bem, para se dedicar, para se sacrificar, não num certo limite, mas num limite que transpõe os limites comuns e chega até o ponto do pai. Não podemos imaginar um pai que não seja assim.
Uma boa empregada, por exemplo, pode chegar até a patroa e dizer:
– “Senhora, acabei meu serviço. O dia hoje é meu”.
A patroa pode dizer:
– “Mas a coitadinha está com dor de garganta”.
– “Isto é com a senhora, meu contrato está pronto”.
Ninguém a teria em conta de empregada infame, mas de mulher sagaz que sabe defender seus direitos.
Porém, uma mãe nunca diria: “meu filho está doente e sozinho em casa, já cumpri minha tabela de horas e eu não tenho por que ficar cuidando dele”.
Seria absurdo, porque a mãe é toda do filho. Não pertence a si mesma. Assim também o rei em relação ao seu reino. Um rei católico tem de ir até o fim, até a dedicação mais completa.
E o súbdito em relação ao rei tinha uma atitude filial, que é a recíproca da imolação paterna. Ele sendo filho, tem dedicação e confiança.
Na França, todo súdito francês estava certo da existência, em Paris, centro de gravidade do reino, de um homem que era pai de todo o mundo e que era o rei. O exemplo de São Luís IX é muito citado nesse sentido
O rei Carlos V da França abraça o imperador Carlos IV como se fossem irmãos. Grandes Chroniques de France. |
Quando a Revolução Francesa suprimiu a autoridade do rei o francês passou a se sentir como alguém sem pai. Tudo ficou abalado, nada teve mais estabilidade.
O resultado foi uma sensação de orfandade.
Alguns políticos e escritores atuais descreveram a França como um corpo que não tem cabeça, porque a Revolução cortou na guilhotina, e por isso os governos e as formas de República não se estabilizam e caem.
Uma coisa é positiva: nenhum homem moderno pode pensar no seu chefe de Estado e dizer: “Meu pai como ele é bom!”
Um funcionário pode ser ótimo funcionário, mas é um mercenário. O pai é qualquer coisa de completamente diferente.
Aqui está a índole familiar do governo. De onde, aquele adágio tantas vezes mencionado pelos historiadores da França:
“O pai é o rei de seus filhos e o rei é o pai de todos os pais”.
Isso era um resultado da instituição familiar penetrando todas as fibras de uma nação.
Os monarcas do tempo da Cristandade se tratavam de “irmãos”. Os reis de Portugal até tratavam de “meu primo” aos régulos africanos apenas conhecidos pelos navegadores.
Uma carta entre reis católicos começava: “Senhor meu irmão”, e depois o resto. Qual a razão disto?
Exatamente a atmosfera fraterna proveniente das relações de família e impregnando as relações de Estado a Estado.
Cada rei era um pai, todos os povos cristãos eram povos irmãos, os reis eram irmãos entre si.
Relações sociais marcadas pela paternalidade e pela bondade
Qualquer pessoa do povo tinha grande facilidade de acesso ao Rei |
Qualquer pessoa do povo tinha grande facilidade de acesso aos nobres e até mesmo ao Rei.
Este costumava receber os plebeus em audiência, para ouvir os pedidos que lhe faziam.
Assim, São Fernando III, Rei de Castela, quando estava de viagem e se hospedava em determinada cidade, sentava-se perto de uma janela que dava para a rua, podendo ser visto pelo povo e ao alcance de qualquer plebeu que desejasse falar com ele.
E São Luís IX, Rei de França, tinha por hábito sentar-se sob um enorme carvalho, em Vincennes, e ali atender o povo, ouvindo seus pedidos, suas queixas, julgando casos e pendências entre plebeus.
Até bem depois da Idade Média, na época de Luís XIV e seus sucessores, o povo, na França tinha livre acesso aos jardins do Palácio de Versailles, onde podia entrar em contato pessoal com os nobres e mesmo com os soberanos.
Quando terminava a cerimônia de coroação de um Rei de França, do lado de fora da Catedral de Reims, em cujo recinto realiza-se o ato, ficavam muitos escrofulosos, portadores de uma doença de pele repugnante.
Pois dizia-se que o Rei de França tinha o carisma de curar as escrófulas pelo toque.
Ao sair da Catedral, dirigia-se ele a cada escrofuloso e tocava a chaga dizendo: "O Rei te toca. Deus te cure". E muitos realmente ficavam curados.
Tal era a monarquia cristã, na sua paternalidade, na sua bondade. E este tratamento que o Rei mantinha com os plebeus repetia-se entre os diversos níveis da escala social.
Fonte: CATOLICISMO
Nobreza e cavalaria se confundiam
Combate de Roland contra o gigante Ferragut |
Assim, nem sempre o cavaleiro era nobre, mas muitos deles participavam dessa condição; nem todos os nobres eram cavaleiros, embora muitos o fossem.
Que característica do cavaleiro medieval o tornou célebre na História?
O traço marcante foi a Fé.
Daí a coragem que o cavaleiro revelava nas mais terríveis das lutas, as cruzadas, visando libertar o Santo Sepulcro de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Tais empreendimentos almejavam esse objetivo no Oriente, e, na Península Ibérica, aspiravam livrar, do jugo maometano, as populações espanhola e portuguesa.
Batalha de Pharsalos vista com olhos medievais |
Tal característica existiu no cavaleiro medieval em harmonia com outras notas, aparentemente contraditórias.
O cavaleiro era homem de Fé.
Contudo, dotado também de espírito prático, chegou a edificar grandes fortificações, esplêndidos castelos e, em alguns casos, imponentes catedrais, levando mais longe do que ninguém a arte de construir maravilhas.
Ele, corajoso na luta, requintou, pouco a pouco, as regras de boa educação e do convívio amável.
Altivo perante seus iguais, mas benevolente no trato com o sexo frágil, os velhos, os doentes e os feridos na guerra.
Então, parecia ele, por assim dizer, feito de açúcar.
Entretanto, era só o inimigo ousar qualquer coisa contra os interesses da Igreja que aquele homem tão doce transformava-se num leão.
Ele, um batalhador, não obstante favoreceu enormemente a cultura, revelando-se um propulsor das artes e elevando o tom de vida a um nível menos rústico do que o vigente no início da Idade Média.
Donde se explicam os bonitos móveis, as belas alfaias, a gastronomia refinada, os vinhos excelentes e os sinos harmoniosos surgidos naquela época histórica.
Foram traços estes que o cavaleiro, antes tão rude, paulatinamente imprimiu na vida de então, tornando-a cheia de afabilidade e beleza.
Em suma, colaborando para ser implantada a civilização católica.
Esse era o perfil do cavaleiro medieval.
(Autor: comentários do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em 18.12.1992, não revistos pelo autor.)
A nobreza e a ciência aliadas com a Fé
Reis e cavaleiros na catedral de York, Inglaterra |
A vida reta e a reta virtude da nobreza são os meios de salvação para os maus tempos: o bem e a paz da Igreja e da Monarquia, o império da justiça, dependem dela.
Duas coisas há - isso se diz na vida de Boucicaut, um dos mais puros representantes do ideal cavalheiresco da última Idade Média - postas no mundo como dois pilares pela vontade de Deus, para sustentar a ordem das leis divinas e humanas; sem elas, o mundo seria só confusão; tais coisas são a cavalaria e a ciência, “chevalerie et science, que moult bien conviennent ensemble”.
“Science, Foy et Chevalerie” são os três lírios do “Chapel des Fleurs de Lys” de Philippe de Vitri. Representam três estados.
A nobreza é chamada a proteger e amparar os outros dois.
Foulques V de Anjou (1091-1143) rei de Jerusalém. Estátua em Angers, França. |
Há nele a veneração de uma vontade e arrojo superiores, junto à de uma ciência e capacidade superiores.
Sente-se a necessidade de ver os homens elevados a uma potência superior, e trata-se de dar a esta necessidade a expressão de duas formas fixas e equivalentes de consagrar-se a uma tarefa vital superior.
Mas destas duas formas tinha o ideal cavalheiresco uma influência muito mais geral e poderosa, porque nele se uniam com o elemento ético tantos elementos estéticos que tornava-se compreensível para todo o espírito.
Seriedade e respeitabilidade até no pequeno
Retábulo de São Pedro. Bernardo Martorell (1400c.-1452). Museu diocesano de Girona, Espanha. |
Na Europa havia reinos grandes como a Inglaterra e lugarejos como o reino da Córsega ou da Sardenha que era um reino pequeníssimo numa ilha de proporção reduzida.
Pequenos e grandes, monarquias e repúblicas, todos constituíam a Europa da Idade Média.
E apesar da diferença de línguas, de trajes, de tudo, havia uma nota comum entre todos eles.
Alguma coisa dominava o ambiente da Idade Média e que era a alma ou o rosto da Idade Média.
É esse rosto da Idade Média que faz até hoje com que ela tenha admiradores e tenha, sobre tudo, pessoas que a odeiam.
São Luís de Anjou, bispo de Toulouse entrega a coroa de Nápoles, à qual tinha renunciado, a seu irmão Roberto de Anjou. Simone Martini (1284-1344). |
O que havia na psicologia não só de todos os homens, nações, instituições, obras de arte, enfim, em tudo que a era medieval fez?
O que era esse centro comum, essa alma? O que pensar a respeito dele?
A mentalidade medieval é a mentalidade da Igreja Católica, que é a própria mentalidade de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Esse centro comum a todas as coisas da Idade Média era ter muita grandeza!
Sem dúvida havia edifícios com grandeza material como a catedral de Colônia com a altura excepcional de suas torres.
Mas, o lado físico ‒ que, aliás, vem a propósito ‒, é secundário.
O principal é a impressão de majestade, respeitabilidade, venerabilidade que todo edifício eclesiástico medieval tinha.
Máxime as igrejas onde se realizava a missa, se guardava o Santíssimo, que é Nosso Senhor Jesus Cristo realmente presente, e se faziam os outros atos do culto católico.
Capelinha de Domremy, onde rezava Santa Joana d'Arc |
Mas, também a menor igrejinha medieval tinha uma grande venerabilidade e respeitabilidade.
Por exemplo, a capelinha de Domremy onde a camponesa Joana d'Arc rezava no período em que ela ouvia vozes e recebia sua missão.
Ser grande, profundamente respeitável e sério até no pequeno é uma das notas dominantes da Idade Média.
A última despedida, o luto e os gisantes medievais
Jazigo definitivo de Felipe Pot, senescal e governador da Borgonha em seu castelo de Châteauneuf-en-Auxois. O grupo original está no Louvre. |
O luto era caracterizado pela cor violeta, e mais raramente pelo preto.
Mas a viúva guardava-o habitualmente de branco, à imitação das Rainhas, às quais a etiqueta prescreve esta cor, o que explica às Rainhas-mães o titulo de 'reines-blanches'.
O caixão, recoberto de damasco dourado ou de tecido vermelho, era conduzido à igreja, não sobre os ombros de servidores ou aldeões, mas sobre os dos mais próximos parentes e dos principais vassalos.
Felipe Pot, senescal e governador da Borgonha, falecido em 1493. O monumento representa "pleurants" carregando um jacente do falecido. Museu do Louvre, Paris. |
Os nobres carregadores vestiam, para a ocasião, longas túnicas negras com capuz, e receberam a denominação de 'pleurants'.
Acontecia de o corpo ser seguido por um personagem, que, por seus trajes, maquilagem, modo de andar e atitudes, esforça-se por se assemelhar ao senhor defunto .
Estátua jacente (gisant) do Príncipe Negro, catedral de Cantuária, Inglaterra. |
Ou seja, a estátua do falecido, deitada sobre a laje funerária.
Estes túmulos permitiam reconhecer, num olhar, certos detalhes da existência do morto.
Se o cavaleiro pereceu em campo de batalha, o escultor o representa completamente armado, espada desembainhada na mão direita, escudo à esquerda e os pés apoiados sobre o flanco de um leão deitado.
Jacente real, basílica de Saint-Denis, Paris. |
Uma grade de ferro em torno da estátua, indicava que o senhor morreu no cativeiro.
Quanto às damas, sua efígie as mostra de vestido longo, mãos postas, os pés sobre o flanco de um cão, símbolo da fidelidade conjugal.
Só os muito altos senhores tinham o direito de se fazerem representar em mármore.
Este era ainda, na Idade Média, um material muito custoso e raro.
Basílica de Saint-Denis, França. |
Os burgueses não tinham direito senão à pedra.
Fonte: Alfred Carlier, "Sous les Voútes dos Cháteaux-Forts -- La Vie Féodale", Editions Desoer, Liège, pp. 147 a 150.
Classes sociais medievais: relacionamento justo e harmonioso
Julgou-se durante muito tempo que bastava, para explicar a sociedade medieval, recorrer à clássica divisão em três ordens: clero, nobreza e terceiro estado.
É a noção que dão ainda os manuais de História: três categorias de indivíduos, bem definidas, tendo cada uma as suas atribuições próprias e nitidamente separadas umas das outras. Nada está mais afastado da realidade histórica.
A divisão em três classes pode aplicar-se ao Antigo Regime, aos séculos XVII e XVIII, onde efetivamente as diferentes camadas da sociedade formaram ordens distintas, cujas prerrogativas e relações dão conta do mecanismo da vida.
No que concerne à Idade Média, tal divisão é superficial. Explica o agrupamento, a repartição e distribuição das forças, mas nada revela sobre a sua origem, sua jurisdição, a estrutura profunda da sociedade.
Tal como aparece nos textos jurídicos, literários e outros, esta divisão corresponde a uma hierarquia, comportando uma ordem determinada, mas uma ordem diferente do que se pensou, e desde já muito mais variada.
Nos atos notariais, vê-se correntemente o senhor de um condado, o cura de uma paróquia aparecerem como testemunhas em transações entre vilãos, e a mesnie (mesnada é o termo correspondente entre nós, mas de sentido diferente, englobando um companheirismo guerreiro) de um barão — quer dizer, o seu meio, os seus familiares — comporta tanto servos e frades como altas personagens.
As atribuições destas classes estão também estreitamente entrelaçadas.
A maior parte dos bispos são igualmente senhores, e muitos deles se originam do povo miúdo.
Um burguês que compra uma terra nobre torna-se também nobre em certas regiões. Logo que abandonamos os manuais para mergulhar nos textos, esta noção das “três classes da sociedade” se mostra fictícia e sumária.
Mais próxima da verdade, a divisão em privilegiados e não privilegiados se mostra também incompleta, porque houve na Idade Média privilegiados da mais alta à mais baixa escala social.
O menor aprendiz é um privilegiado em determinados níveis, pois participa dos privilégios do corpo de ofício; as isenções da universidade beneficiam os estudantes, e mesmo os seus criados, tanto como os mestres e os doutores.
Alguns grupos de servos rurais gozam de privilégios precisos, que o seu senhor é obrigado a respeitar.
Considerar como privilégios apenas os da nobreza e do clero, é uma noção completamente errônea da ordem social.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Nobreza feudal pagava um imposto de sangue: tinha que fazer a guerra
Durante toda a Idade Média a nobreza, sem esquecer a sua origem fundiária, dominial, teve um modo de viver sobretudo militar.
Efetivamente o seu dever de proteção comportava em primeiro lugar a função guerreira de defender o seu domínio contra as possíveis usurpações.
Embora se esforçassem por reduzir o direito de guerra privada, ele subsistia e a solidariedade familiar podia implicar a obrigação de vingar pelas armas as injúrias feitas a um dos seus.
Uma questão de ordem material se lhe acrescentava, pois detendo com exclusividade a posse da terra, que era a principal fonte de riqueza, senão a única, os senhores eram os únicos com a possibilidade de equipar um cavalo de guerra, armar escudeiros e sargentos.
E o serviço militar será portanto inseparável do serviço do feudo.
A fé prestada pelo vassalo nobre supõe o contributo das suas armas, sempre que “disso for mester”.
É o primeiro encargo da nobreza, e um dos mais onerosos, é essa obrigação de defender o domínio e os seus habitantes.
Assim se vê num poema de Carité, de Reclus de Molliens:
L'épée dit: C'est ma justice
Garder les clercs de Saint Église
Et ceux par qui viandes est guise.
A espada disse: é meu dever
Manter os clérigos da Santa Igreja
E aqueles por quem os alimentos são obtidos.
As praças-fortes mais antigas, que foram construídas nas épocas de perturbação e de invasões, mostram a marca visível dessa necessidade.
A aldeia, as casas dos servos e dos camponeses, estão ligadas às encostas da fortaleza, onde toda a população irá refugiar-se em caso de perigo, e onde encontrará ajuda e abastecimento em caso de cerco.
(Autor: Regine Pernoud, “Luz da Idade Média”. Ed. original: “Lumière du Moyen Âge”, Grasset, Paris, 1944)
O morgadio. Pesados deveres dos nobres
Das obrigações militares da nobreza decorre a maior parte dos seus hábitos.
O direito de morgadio vem em parte da necessidade de confiar ao mais forte a herança que ele deve garantir, muitas vezes pela espada.
A lei de herança por masculinidade explica-se também dessa forma, pois só o homem pode assegurar a defesa de um torreão.
Por isso também, quando um feudo “cai em roca” (quando uma mulher é a única herdeira), o suserano sobre o qual recai a responsabilidade desse feudo, que ficou assim em estado de inferioridade, sente-se no dever de casá-la.
Por isso a mulher não sucederá senão após os filhos mais novos, e estes após o mais velho.
Eles só receberão apanágios, daí os desastres que ocorreram no fim da Idade Média terem tido como origem os apanágios excessivamente importantes deixados aos filhos por João, o Bom.
O poder que receberam tornou-se para eles uma tentação perpétua, e para todos uma fonte de desordens durante a menoridade de Carlos VI.
Os nobres têm o dever de proporcionar a justiça aos seus vassalos de qualquer condição, e igualmente o de administrar o feudo.
Trata-se do exercício de um dever, e não de um direito.
Implica responsabilidades muito pesadas, já que cada senhor deve dar conta do seu domínio não só à sua linhagem, mas também ao seu suserano.
Étienne de Fougères descreve a vida do senhor de um grande domínio como cheia de preocupações e de fadigas:
Cà et là va, souvent se tourne,
Ne repose ni ne séjourne:
Château abord, château aourne,
Souvent haitié, plus souvent mourne.
Cà et là va, pas ne repose
Que sa marche ne soit déclose.
Anda de cá para lá, muitas vezes muda de direção,
Não repousa nem se detém:
Castelo dentro, castelo fora,
Muitas vezes alegre, mais vezes triste.
Anda de cá para lá, não repousa
Senão quando o seu caminho está aberto.
O seu poder, longe de ser ilimitado como de maneira geral se julgou, é bem menor que o de um chefe de indústria ou de qualquer proprietário nos nossos dias.
Nunca tem a propriedade absoluta dos seus domínios, depende sempre de um suserano, e no fim das contas os suseranos mais poderosos dependem do rei.
Nos nossos dias, de acordo com a concepção romana, o pagamento de uma terra confere pleno direito sobre ela.
Na Idade Média não é assim.
Em caso de má administração, o senhor sofre penalidades que podem ir até à confiscação dos seus bens.
Deste modo, ninguém governa com autoridade total nem escapa ao controle direto daquele de quem depende.
Esta repartição da propriedade e da autoridade é um dos traços mais característicos da sociedade medieval.
As obrigações que ligam o vassalo ao seu senhor implicam reciprocidade:
“Tanto o senhor deve fé e lealdade ao seu homem como o homem ao seu senhor”, diz Beaumanoir.
Esta noção de dever recíproco, de serviço mútuo, encontra-se muitas vezes, tanto nos textos literários como jurídicos.
Étienne de Fougères observa, no Livre des manières:
Graigneur fait a sire à son homme
Que l'homme à son seigneur et dome.
O senhor deve mais reconhecimento ao seu vassalo
Do que ele próprio deve ao senhor.
Apoiando esta constatação, Philippe de Novare nota:
“Aqueles que recebem serviço e nunca o recompensam bebem o suor dos seus servos, que é veneno mortal para o corpo e para a alma”.
Donde também a máxima: A bien servir convient eür avoir (Para bem servir, convém bom ter).
(Autor: Regine Pernoud, “Luz da Idade Média”. Ed. original: “Lumière du Moyen Âge”, Grasset, Paris, 1944)
O poder da nobreza era largamente partilhado
Reunião dos Estados Gerais (Assembleia dos representantes de todas as classes sociais) na França |
Pelo contrário, o rei estava em relação ao senhor feudal como um original está para a sua miniatura, mas uma miniatura viva, dotada de verdadeira iniciativa e poder efetivo próprio.
Um príncipe de Condé, por exemplo, era uma miniatura de rei da França.
Quer dizer, as autoridades locais eram, em ponto pequeno, reis locais com larguíssima dose de autonomia.
Como se fez isso?
Na França, por exemplo, o rei desmembrava o seu reino em feudos, e dava a cada senhor feudal uma parcela do poder real.
Desse modo o senhor feudal não era apenas uma miniatura do rei, mas participante do poder do rei.
Carlos Magno é beijado pelo seu filho Luis, o Piedoso |
Ela era, por assim dizer, uma extensão do rei. É miniatura no sentido de que é uma parcela, e não porque possua tamanho
menor e se lhe pareça.
Essa ligação que o senhor feudal tem com o rei faz dele uma espécie de desdobramento do próprio rei.
Os senhores feudais de categoria secundária têm um desdobramento do poder do primeiro senhor feudal. Assim, de participação em participação, chegamos às últimas escalas da hierarquia feudal.
Partimos de uma grande fonte de poder, que é o rei, e encontramos nas várias escalas da hierarquia feudal participações sucessivas, que se assemelham aos galhos de uma árvore.
O rei seria o tronco, e as várias categorias de nobreza seriam os galhos, sucessivamente menores e sucessivamente mais delgados, até constituir o cimo da copa da árvore.
E a árvore toda é alimentada por uma mesma seiva, que é o poder real, do qual tudo emana e para o qual tudo tende.
Entretanto não é absorvente. Pelo contrário, deita seus inúmeros galhos em todas as direções.
Eis aí configurada a ideia da participação do poder feudal, um dos aspectos originalíssimos do feudalismo.
Custa-nos compreender isso no nosso século onde tudo é planificado por governos que pairam sobre os cidadãos a anos-luz de distanciamento psicológico.
E onde parlamentos e organizações mundiais decidem sobre o destino do simples cidadão, sem interpretar bem o que ele quer, e sem que ele saiba o que se passa de fato nesses cenáculos, como também não entende o que acontece dentro de um OVNI, se é que existe.
Nobres e vassalos num relacionamento de pai para filho
O povo de Gante rende homenagem a Luis de Male |
Eles matavam os trabalhadores manuais ou os reduziam a escravos.
Então, os camponeses pediam aos patrões para recebê-los na casa deles. E os patrões de pena deles e achando que era justo protegê-los, pois eram católicos, começaram a construir em torno de suas casas recintos muito grandes com muralhas de pedra.
Em cima das muralhas, instalaram um passadiço por onde os guerreiros podiam ver de longe. Se viam chegar os invasores, eles batiam um sino e todos os homens vinham guarnecer a parte alta da muralha.
De cima, eles atiravam flechas ou esperavam que os atacantes subissem em escadas. Quando a escada estava cheia de atacantes, eles pegavam a ponta da escada apoiada na muralha e jogavam no chão. Eles jogavam também água fervendo.
Os patrões, aos poucos, construíram torres e portas fortificadas. A porta era especialmente preparada com toras de madeira ligadas por placas de metal.
No teto da porta eles punham frestas e em cima tachos com fogueiras que eles acendiam óleo ardente.
Quando os invasores entravam, dessas frestas caía óleo em ebulição, e com isso eles continham a invasão.
Eles fizeram também grades que desciam por máquinas. Limar as grades com óleo caindo o tempo inteiro junto era impraticável. Em última análise a casa do senhor ficava fortificada.
A casa do patrão deixou de ser exclusivamente dele para ser um enorme braço paterno segurando em torno de si toda a população local.
Para construir tudo isso era preciso ter cabeça. Os patrões naturalmente tinham, os empregados não tinham.
Quem dirigia a defesa era o patrão. Depois, o patrão era homem de combate, porque em época de paz quem matava as feras que haviam no mato para os camponeses trabalharem livremente eram os patrões.
Em época de paz, os patrões viviam em luta contra javalis e animais selvagens de toda ordem das florestas profundas da Europa. Os empregados não eram homens de guerra, eles eram homens de trabalho.
Os patrões no tempo de guerra comandavam porque sabiam como dirigir uma guerra e eles não sabiam. Então as relações entre patrões e empregados acabaram sendo relações de pais e filhos inteiramente.
Capela do castelo de Lourdes. A entrada é pela porta lateral |
Durante o ataque, os capelães não podiam combater, porque era missão deles não usar as armas, mas eles estavam junto aos defensores incitando: "Coragem, Deus o quer!"
Mostravam um crucifixo e iam para frente. "Vamos salvar a cruz"! Os homens do povo iam todos. O senhor feudal ia à frente, com espada, couraça, elmo, montando a cavalo.
Ele era o chefe e o pai daquele povo.
Como é que isso nasceu? Alguém fez um bonito plano? Não!
O castelo era a segunda casa dos populares, sua segurança e sede da igrejinha. Castelo de Hirschhorn |
Castelos com altas torres e muralhas, lindas portas.
No centro do castelo a torre de menagem, mais alta do que todas, e de onde eles podiam soltar pombos correio para avisar aos aliados: "Nós estamos sitiados venha nos ajudar."
Dessa torre partiam subterrâneos para lugares onde os donos e os empregados podiam fugir, caso estivessem perdendo a batalha em cima, porque os subterrâneos percorriam uma zona grande e iam abrir lá longe onde o adversário nem imaginava que abrisse. Essa defesa os empregados deviam aos patrões.
Isso criou uma mudança radical nas relações dos patrões com os empregados.
Antes das invasões havia apenas o patrão e o empregado.
Depois, o empregado ficou dependendo da direção do patrão para fazer uma guerra de defesa eficaz.
E o patrão ficou chefe militar, não apenas o chefe econômico.
Era portanto, muito mais admirado e respeitado do que um simples chefe civil.
Ele passou a ser uma espécie de reizinho do lugar: o senhor feudal do lugar.
É natural que o senhor feudal do lugar se traje melhor, tome uma melhor educação, coma melhor, enfim, se esplendorize e enriqueça.
Por essa razão eles passaram a ser os chefes respeitados, os nobres.
Enquanto o operário, o camponês e o trabalhador manual ficaram plebeus.
Não tinham os sinais externos esplendorosos, mas tampouco tinham as obrigações complicadas e dolorosas dos nobres.
A diferença entre as duas classes se fez normalmente.
O nobre foi produto de uma germinação local e que deu na linda nobreza europeia.
No Brasil, coisa análoga se deu nos tempos da evangelização e conquista do país para a civilização em torno das primeiras fazendas e engenhos.
Plinio Correa de Oliveira, sem revisão do autor.
Ceia real na Inglaterra no início da Guerra dos Cem Anos
No 25 de setembro de 1338, às cinco horas da tarde menos um quarto, o grande salão do Palácio de Westminster ainda não estava iluminado a não ser por quatro tochas mantidas por braços de ferro selados aos ângulos das paredes e das quais o luar incerto e trêmulo tinha grande dificuldade em dissipar a escuridão provocada pela diminuição dos dias, já tão sensível ao fim do verão e começo do outono.
Entretanto essa luz era suficiente para guiar nos preparativos da ceia a criadagem do castelo que se via, no meio do lusco-fusco, apressar-se em cobrir com iguarias e vinhos, os mais apreciados daquela época, uma longa mesa escalonada em três alturas diversas, a fim de que cada um dos convivas pudesse ai sentar-se no lugar que lhe designava seu nascimento ou seu rango.
Logo que os preparativos foram concluídos, o maître d’hotel entrou gravemente por uma porta lateral, fez com vagar o turno de inspeção dos serviços para certificar-se que cada coisa estava em seu lugar; depois, feita a revisão, parou diante de um lacaio que aguardava suas ordens cerca da grande porta, e disse-lhe com a dignidade de um homem que conhece a importância de suas funções: Tudo está bem; soai a água.
Denominava-se “soar a água” (corner l’eau) o ato de dar o sinal de inicio da ceia, porque os convivas lavavam as mãos antes de sentar-se à mesa.
O lacaio aproximou de seus lábios uma pequena trompa de marfim que levava suspensa a tiracolo, e tirou dela três toques prolongados; em seguida a porta se abriu, cinqüenta lacaios entraram uns detrás dos outros, levando tochas à mão, e, dividindo-se em duas fileiras que se estendiam por toda extensão do salão, dispuseram-se ao longo da parede; cinqüenta pajens os seguiram, levando jarras e bacias de prata e colocaram-se na mesma linha que os lacaios; por fim, detrás deles, dois arautos apareceram, abriram a tapeçaria bordada de brasões que servia como porta, e apostaram-se em cada lado da entrada bradando em alta voz: faça-se lugar ao Senhor nosso Rei e à Senhora nossa Rainha da Inglaterra!'
No mesmo instante, o Rei Eduardo III apareceu, dando a mão à Senhora Philippe de Hainaut, sua esposa.
Eles eram seguidos pelos cavaleiros e damas de maior renome na Corte da Inglaterra, que era naquela época uma das mais ricas do mundo em nobreza, valentia e beleza.
Sob o umbral do salão o Rei e a Rainha separaram-se, passando cada um para um lado da mesa e ganhando a extremidade mais elevada.
Foram seguidos nesta espécie de manobra por todos os convivas que, chegados ao lugar que lhes estava designado, voltaram-se cada um para o pajem a seu serviço; este vertia água da jarra na bacia e a apresentava para lavar as mãos dos cavaleiros e das damas.
Esta cerimônia preparatória concluída, os convivas passaram aos bancos que rodeavam a mesa; os pajens recolocaram a prataria sobre as magníficas credencias de onde haviam-na tomado e voltaram para esperar, de pé e imóveis, as ordens de seus senhores.
(Fonte : Alexandre Dumas, « La Comtesse de Salisbury », Calmann-Lévy, Editeur, Paris, 1878, T.I, pp. 1 ss.)
Torneio para comemorar a reedificação do castelo de Windsor
Foi preciso que autores de séculos posteriores tentassem reconstituir aquela vida animadíssima da era medieval.
Entre esses, esteve o escritor francês Alexandre Dumas. Romancista de fértil imaginação, ele quis descrever uma justa medieval com fidelidade histórica de pormenores. Para isso foi tirar da celebre crônica de Jean Froissard os dados históricos, como ele mesmo deixa claro em várias partes de sua obra.
Eis o resultado:
Enviou em consequência arautos à Escócia, França e Alemanha para proclamar que, amigo ou inimigo, cada um, contanto que fosse cavaleiro, podia vir, pela honra, quebrar lanças na justa de armas de Windsor.
Semelhante convite, da parte de um tão grande Príncipe, como se compreende bem, comoveu toda a Cavalaria. Assim, da Escócia, da França e da Alemanha viam-se chegar, como representação de toda a nobreza do mundo, os mais bravos campeões daquela época.
Alguns já se tinham encontrado nos campos de batalha e sabiam o conceito que deviam formar uns dos outros; mas a maior parte não se conhecia senão pela reputação, e ansiava por se conhecer.
De resto, o torneio devia durar três dias, tendo como 'defensores' (‘defensor’ era um dos anfitriões, que desafiava todos os que, em luta cortês ou luta real, quisessem terçar armas com ele), no primeiro dia o próprio Eduardo; no segundo, Gauthier de Mauny, que havia deixado a Bretanha para não perder uma tal festividade; e, no terceiro dia, Guillaume de Montaigu, a quem o Rei, de acordo com sua promessa, acabava de armar cavaleiro, e que devia quebrar lá sua primeira lança. Os três 'defensores' deviam aceitar o combate à lança, espada ou machado; só o punhal estava proibido.
Na véspera da festa de São Jorge (Padroeiro da Inglaterra e da Cavalaria), dia fixado para a abertura das comemorações, a cidade de Londres despertou com o ressoar das trombetas e dos clarins.
Em conseqüência, desde as oito horas da manhã, todas as ruas que conduziam do Castelo de Londres, ou seja da Praça Santa Catarina à estrada, estavam ornadas com tapeçarias e juncadas de folhas.
De ambos lados, a uns cinco ou seis pés de distância em relação às casas, cordas encobertas por guirlandas de flores, formavam espécies de calçadas nas quais devia circular o povo, enquanto que a parte mais elevada do pavimento permaneceria livre e aberta para os cavaleiros.
Ademais, não havia árvore que não tivesse frutas frescas, não havia janela que não fosse ocupada por pirâmides de cabeças, nenhum terraço que não oferecesse sua seara de espectadores apertados como espigas e ondulantes como elas ao menor ruído que parecia anunciar a aproximação do cortejo.
Ao meio-dia, vinte e quatro trombetas saíram tocando do castelo, no meio de aclamações da multidão, a quem anunciavam por fim o espetáculo tão impacientemente esperado por ela desde a manhã. As trombetas eram seguidas de sessenta corcéis equipados para a justa e montados por escudeiros de honra, portando gonfalões que mostravam os brasões de seus amos.
Depois dos escudeiros vinham o Rei e a Rainha, ornados com suas vestes reais, tendo na cabeça a coroa e o cetro à mão e entre ambos, sobre um belo corcel cujas crinas douradas pendiam até o chão, o jovem Príncipe de Gales, o futuro herói de Crécy e Poitiers, que iria fazer no torneio seu aprendizado de guerra.
Detrás deles cavalgavam, “pêle-mêle”, duzentos ou trezentos cavaleiros cobertos de armas brilhantes, com escudos desenhados com brasões ou divisas, de viseira erguida ou abaixada, caso quisessem ser reconhecidos ou guardar o incógnito.
Enfim, o desfile terminava com uma multidão incontável de pajens e lacaios, uns sustentando no punho falcões encapuzados, os outros conduzindo cães que no pescoço portavam bandeirolas com as armas de seus donos.
Esta magnífica assembléia atravessou toda a cidade ao passo e em boa ordem, para chegar ao Castelo de Windsor, situado a vinte milhas de Londres. Apesar desta distancia, uma parte da população a acompanhou, correndo através dos campos, enquanto o cortejo seguia a estrada.
Chegou-se a Windsor com noite fechada, mas o castelo estava tão bem iluminado que parecia um solar de fadas.
De seu lado, as tendas estavam dispostas como as casas de uma rua; somente entre elas ardiam tochas colossais que difundiam uma luminosidade comparável à do dia, enquanto nas cozinhas, dispostas de trecho em trecho, via-se um sem número de assadores e de serventes ocupados em detalhes que não eram desprovidos de encantos para paladares que tinham cavalgado desde o meio-dia.
Cada um procedeu à sua instalação, depois ao jantar. Até duas horas da madrugada a noite foi cheia de tumulto e de exclamações alegres.
Por volta daquela hora, o barulho diminuiu gradualmente nas tendas e no acampamento, enquanto as janelas do castelo apagavam-se umas após as outras.
E tudo entrou no repouso e na escuridão. Mas esta trégua nas alegrias não foi de longa duração.
Ao despontar do dia, cada um foi acordando e preparando o espírito; primeiro o povo, que não só devia ser o menos bem localizado, mas ainda receava não ter suficiente lugar.
Sem tomar tempo para desjejuar, cada um foi levando nos bolsos a provisão da jornada. Toda esta multidão escoou então pelas porteiras e espalhou-se como uma torrente no espaço raso que se lhe havia destinado entre a liça e as arquibancadas. Seus temores eram fundados.
Apenas a metade das pessoas que vieram de Londres puderam encontrar lugar; mas nem por isso renunciaram ao espetáculo. Tão logo se certificaram de que não havia mais meio de penetrar no cercado, e que as barreiras continham tudo que elas podiam contar, disseminaram-se pela campina, procurando todos os pontos elevados de onde era possível dominar o espetáculo.
Madame Philippe (a Rainha) tinha à direita Gauthier de Mauny e à esquerda Guillaume de Montaigu, que deveriam ser os heróis dos dias seguintes. A Condessa de Salisbury vinha logo atrás, conduzida pelo Duque de Lancaster e pelo Príncipe Jean de Hainaut.
A nobre sociedade tomou lugar nas galerias que para esse efeito estavam preparadas e que em um instante tornaram-se semelhantes a um tapete de veludo maravilhosamente bordado com pérolas e diamantes.
A liça era um grande retângulo, cercado por paliçadas; nos dois extremos abriam-se as porteiras que deviam dar passagem, uma aos campeães, a outra aos 'defensores'.
No extremo oriental, sobre uma plataforma bastante elevada para que dominasse a liça, havia-se montado a tenda de Eduardo, que era toda de veludo vermelho bordado de ouro. Em cima dela flutuava o pavilhão real, cujos quartéis primeiro e terceiro tinham os leopardos da Inglaterra e no segundo e quarto as flores de lys da França.
Por fim, de ambos lados da porta estavam suspensos o escudo da paz e a ‘targa de guerra’ (targa: parte da armadura usada sobre o peito. Nas liças foi convencionado que o cavaleiro que tocasse a targa de guerra do ‘defensor’ o desafiava para um combate real; enquanto que se tocasse o escudo, o desafiava para um combate de cortesia) do 'defensor'; e dependendo de se os campeães faziam tocar por seus escudeiros ou tocavam eles mesmos um ou outra, solicitavam com isso a simples justa ou desejavam o combate de morte.
* * *
Os marechais haviam longamente insistido para que sob nenhum pretexto os campeões pudessem usar outras armas que não as chamadas armas corteses. Visto que o Rei deveria ser um dos 'defensores', era de se temer que algum ódio pessoal ou alguma traição se esgueirasse na liça.
Eduardo havia então respondido que ele não era um cavaleiro de parada, mas um homem de guerra e que se ele tinha um inimigo, sentir-se-ia muito à vontade em lhe oferecer esta ocasião de chegar até ele.
As condições haviam sido portanto mantidas sem restrições e os espectadores, por momentos inquietos por seus prazeres, sentiram-se assegurados, porque ainda que raramente essas justas derivassem para um verdadeiro combate, a possibilidade de que isto acontecesse dava um novo interesse a cada passo.
Assim, quando a festa transformava-se em luta sangrenta, os espectadores, sem o confessar, não podiam impedir-se de testemunhar, por meio de seus aplausos mais ardentes e repetidos, a predileção que tinham por um espetáculo onde os atores desempenhavam um papel sempre perigoso e algumas vezes até mortal.
Quanto às outras condições do combate, elas não se afastavam em nada do regulamento ordinário.
Quando um cavaleiro era desmontado e jogado à terra, se ele não se podia levantar sem a ajuda de seus escudeiros, era declarado vencido; o mesmo acontecia quando, no combate à espada ou machado, um dos campeões recuava diante do outro a ponto que a garupa de seu cavalo tocasse a barreira.
Enfim, se o combate fosse com tal acirramento que ameaçasse tornar-se mortal, os marechais de campo podiam cruzar suas lanças entre os dois campeões e assim pôr-lhe término com sua própria autoridade.
* * *
Um arauto avançou na liça e leu em alta voz as condições da justa. Tão logo terminou a leitura, um grupo de músicos postados perto da tenda de Eduardo fez, em sinal de desafio, retinir o ar com o som das trombetas e dos clarins; em seguida, um outro grupo de músicos respondeu-lhe do extremo oposto.
As porteiras se abriram e um cavaleiro totalmente armado apareceu na liça.
Mas, ainda que tivesse a viseira abaixada, pelo brasão que era de ouro com listras prata e azul, foi logo reconhecido como o Conde de Derby, filho do Conde de Lancaster, do Pescoço Torto.
Ele avançou, fazendo graciosamente caracolar seu cavalo até o meio da liça; chegado lá, virou-se para a Rainha, a quem saudou inclinando o ferro de sua lança até a terra, no meio das aclamações da multidão.
Enquanto isso, seu escudeiro atravessava a arena e, subindo na plataforma, foi golpear com uma vara o escudo de paz de Eduardo.
O Rei saiu em seguida, todo armado, menos a targa, que fez afixar do pescoço por seus lacaios, saltou agilmente sobre o cavalo que se lhe tinha pronto e entrou na liça com tanta graça e segurança que as aclamações redobraram.
Ele estava coberto de uma armadura veneziana, toda incrustada de lâminas e fios de ouro formando desenhos curiosos nos quais se reconhecia o gosto oriental e, sobre seu escudo, em vez das armas reais, levava uma estrela velada por uma nuvem, com esta divisa: “Présente, mais cachée”.
Então entregou-se-lhe a lança que ele pegou e pôs em riste. Logo os juízes do campo, vendo que os campeões estavam prontos, bradaram em alta voz: “Deixai ir!”
No mesmo instante, os adversários, esporeando seus cavalos, precipitaram-se um contra o outro, e encontraram-se no meio da liça. Os dois haviam dirigido a ponta de sua lança para a viseira do elmo, os dois atingiram o alvo.
Mas a extremidade arredondada da lança não tendo podido penetrar no aço, ambos passaram além, sem dano. Retornaram por conseguinte cada um a sou ponto, e ao sinal dado, lançaram-se de novo um contra o outro.
Desta vez ambos golpearam-se de cheio em suas targas, ou seja, bem no meio do peito. Eram demasiado bons cavaleiros para serem desmontados; entretanto um dos pés do Conde de Derby saiu do estribo e a lança escapou-lhe das mãos.
Quanto a Eduardo, permaneceu firme em sua sela, mas, pela violência do golpe, sua lança partiu-se em três pedaços, dois dos quais voaram pelo ar e o terceiro ficou-lhe na mão. Um escudeiro do Conde de Derby recolheu sua lança e lha apresentou, enquanto traziam uma nova para Eduardo. Assim que os dois campeões se rearmaram, retornaram ao campo e voltaram à carga pela terceira vez .
Desta vez, o Conde de Derby apontou ainda sua lança contra a targa de seu adversário, enquanto Eduardo, voltando a seu primeiro objetivo, havia, como no início, tomado o elmo do Conde como ponto de mira.
Ambos, nesta circunstância, deram uma nova prova de sua destreza e força, porque pela violência do golpe que recebeu seu dono, o cavalo de Eduardo parou em seco e dobrou os joelhos traseiros, enquanto que a lança do Rei atingiu tão exatamente o meio do elmo que, rompendo as amarras que o seguravam ao pescoço, arrancou o capacete do Conde de Derby.
Os dois pelejaram como bravos e destros cavaleiros, mas quer fosse por fadiga quer por cortesia, o Conde não quis continuar a luta e, inclinando-se diante do Rei, reconheceu-se vencido e retirou-se no meio dos aplausos que ele partilhou com seu vencedor.
Eduardo entrou na sua tenda, e as trombetas retiniram de novo em sinal de desafio; o som teve como na primeira vez um eco na extremidade oposta; depois, assim que se extinguiu, viu-se entrar um segundo cavaleiro, a quem se reconheceu como Príncipe, pela coroa que encimava seu elmo. Com efeito, este novo campeão era o Conde Guillaume de Hainaut, cunhado do Rei.
Este passe, foi, como o outro, uma luta de honra e de cortesia mais do que uma verdadeira justa; de resto, talvez ele tenha-se tornado mais atraente aos olhos dos campeões experimentados, que eram não só os atores mas também os espectadores destas cenas, porque cada um fez maravilhas de destreza.
Porém, havia no fundo dos golpes desferidos uma intenção demasiado visível da parte dos adversários de entregar-se a um jogo e não a um combate, para que a impressão produzida não fosse a que se sentiria em nossos dias vendo representar uma comédia perfeitamente tramada quando se teria ido para ver uma tragédia bem dramática. Resultou daí que, por maior que fosse o prazer que desfrutara com este espetáculo, a multidão que o aplaudia, era visível, quando terminou, que ela esperava a seguir alguma coisa de mais sério.
Depois de ter quebrado cada um três lanças, o Conde Guillaume saiu da liça, declarando-se vencido como o fizera o Conde de Derby, enquanto Eduardo, descontente com essas vitórias fáceis, retirava-se à sua tenda, começando a lamentar-se de não se ter misturado sob um nome desconhecido entre a multidão dos campeões, antes que designar-se como um dos “defensores”, como o fizera.
Acabava ele de entrar, quando a música fez retinir sons provocadores aos quais pensou-se de inicio que ninguém responderia, pois alguns minutos de silêncio se lhes seguiram. Cada um já se inquietava por esta interrupção, quando de repente ouviu-se soar uma só trombeta. Tocava uma melodia francesa, o que indicava que um cavaleiro dessa nação apresentava-se para combater.
Todos os olhares logo voltaram-se para a barreira que se abriu, dando passagem a um cavaleiro de mediana estatura, mas parecendo, pelo modo com que portava sua lança e manobrava o cavalo, ser tão vigoroso quanto hábil.
Cada um fixou os olhos sobre seu escudo para ver se apresentava alguma divisa pela qual pudesse ser reconhecido; o escudo trazia suas armas, que eram três águias de ouro com as bocas abertas e o vôo preparado, distribuídas em dois e uma, com uma flor de lys da França costurada no ápice.
O Conde de Salisbury o reconheceu como sendo o jovem cavaleiro que, no dia seguinte do embate de Buironfosse, havia atravessado, sob as ordens do Rei da França, Philippe de Valois, o pântano que separava os dois exércitos e estivera, sem encontrar oposição, reconhecendo o bosque que cobria a encosta da montanha no cimo da qual, ele cravara sua lança.
Na sua partida, Philippe o armara cavaleiro com suas próprias mãos, e, quando retornou, contente com a coragem que dera prova, o havia autorizado a acrescentar a seu brasão uma flor de lys: isto em termos heráldicos denominava-se costurar no ápice.
O jovem cavaleiro, ao entrar na liça, despertara um movimento de curiosidade tanto mais vivo quanto ele se apresentava com armas de guerra.
Avançou com a cortesia que, desde essa época, fazia distinguir a nobreza da França. Detendo-se primeiro diante da Rainha, a quem saudou ao mesmo tempo com a lança e a cabeça, abaixando a ponta da lança até a terra e inclinando a cabeça até o pescoço de seu cavalo; depois, fazendo-o empinar, forçou-o a girar sobre si mesmo.
Então, sem pressa nem vagar, ele próprio avançou, para tributar sem dúvida uma maior honra a seu adversário, rumo à tenda onde estava retirado Eduardo e, com o ferro de sua lança, tocou audazmente a targa de guerra.
Logo desceu à liça, fazendo a sua montaria executar os exercícios mais difíceis de equitação.
De seu lado, o Rei saiu de sua tenda, e fez trazer um outro cavalo coberto de armadura completa.
Mas, por mais seguro que ele pudesse estar de seus escudeiros, examinou com uma atenção toda especial o modo pelo qual estava equipado o corcel; tirando a seguir sua espada, certificou-se de que a lâmina era tão boa quanto a empunhadura era bela; depois, fazendo prender do pescoço uma outra targa, subiu em sua montaria tão agilmente como o podia fazer um homem coberto de ferro.
A atenção dos espectadores era grande, pois, ainda que Messire Eustache de Ribeaumont tivesse colocado no seu desafio toda a cortesia possível, não era menos evidente que desta vez era uma verdadeira justa, e ainda que não fosse animada por nenhum ódio pessoal, a rivalidade das duas nações devia lhe dar um caráter de gravidade que não podiam ter os embates que a precederam.
Assim, Eduardo foi tomar seu lugar na liça no meio do mais profundo silencio.
Messire Eustache, vendo-o chegar, pôs sua lança em riste; Eduardo fez o mesmo; os juízes do campo bradaram com voz forte: “Deixai ir'', e os dois campões lançaram-se um contra o outro.
O cavaleiro tinha dirigido sua lança contra a viseira e o Rei a sua contra a targa, e os dois apontaram tão precisamente que o elmo de Eduardo lhe foi arrancado da cabeça, enquanto sua lança golpeara com tal força o cavaleiro que ela se quebrou a um pé do ferro, mais ou menos, e um pedaço ficou enfiado na armadura.
Por um instante pensou-se que Messire Eustache estava ferido; mas o ferro, atravessando a armadura tinha se detido na cota de malha; de sorte que, vendo pelo murmúrio que se elevara qual era o temor dos espectadores, ele próprio arrancou o ferro e saudou uma segunda vez a Rainha, como sinal de que não tinha nenhum mal.
O Rei retomou um outro elmo e outra lança e cada um tendo feito um giro e retornado a seu lugar, os marechais deram novamente o sinal. Desta vez, os campeões escolheram um alvo semelhante e golpearam-se em pleno peito.
O golpe foi tão violento que os dois cavalos levantaram as patas dianteiras mas seus donos permaneceram nas selas, semelhantes a pilares de bronze; quanto às duas lanças, romperam-se como vidro e os estilhaços saltaram até às arquibancadas onde estava o povo.
Os escudeiros aproximaram-se então com novas lanças; cada um armou-se da sua e, ganhando seu lugar, aprestou-se para uma terceira justa.
Por rápido que fosse o sinal, ele ainda se tinha feito esperar para o gosto de ambos adversários; pois, tão logo que foi dado, os cavalos se lançaram como se partilhassem os sentimentos de seus donos.
Esta vez, Messire Eustache conservou o mesmo alvo; mas Eduardo, tendo mudado o seu, sua lança atingiu tão exatamente a viseira que arrebatou o elmo do cavaleiro, enquanto a lança deste golpeava em pleno peito com uma tal rijeza que o cavalo do Rei sentou e, neste movimento, o cinto tendo-se rompido, a sela deslizou ao longo do dorso, de sorte que Eduardo se achou de pé, mas em terra.
Seu adversário saltou em seguida à terra, e encontrou Eduardo já desembaraçado de seus estribos. Tirou incontinenti sua espada, cobrindo a cabeça com seu escudo.
Mas Eduardo lhe fez sinal de que não continuaria o combate enquanto ele não tivesse recolocado um outro elmo. Messire Eustache obedeceu e o Rei, vendo-lhe a cabeça coberta, tirou por sua vez a espada.
Mas, antes de deixá-los recomeçar o combate, dois escudeiros conduziram os cavalos cada um por uma porteira, enquanto dois lacaios recolhiam as lanças que os combatentes deixaram cair. A liça assim desobstruiria, escudeiros e lacaios se retiraram, e os juízes do campo deram o sinal.
Eduardo era um dos mais vigorosos homens de armas de seu Reino; assim, Messire Eustache compreendeu nos primeiros golpes que ele tinha necessidade de utilizar toda sua força e destreza.
Mas ele mesmo, como se pode ver, e como afirmam as crônicas do tempo, era um dos mais valentes cavaleiros de sua época; de sorte que não se surpreendeu nem da violência nem da rapidez do ataque, e respondeu golpe por golpe com um vigor e um sangue frio que provaram a Eduardo aquilo que ele já sabia sem dúvidas que se encontrava em face de um adversário digno dele.
De resto, os espectadores nada haviam perdido por esperar, e o que se passava diante deles esta vez era bem um verdadeiro combate.
As duas espadas, nas quais se refletia o sol, pareciam dois gládios de fogo, e os golpes eram aparados e dados com uma tal rapidez, que não se percebia se eles haviam tocado o escudo, o elmo ou a couraça a não ser vendo jorrar as faíscas que deles saiam.
Os dois campeões atacavam sobretudo o elmo; e sob as tentativas redobradas que haviam recebido, o de messire Eustache viu cair seu panache de plumas e o de Eduardo perdeu sua coroa de pedrarias.
Por fim a espada dele abateu-se com uma tal força que, qualquer que fosse a têmpera do elmo de seu adversário, lhe teria sem dúvida fendido a cabeça se messire Eustache não a tivesse aparado com seu escudo.
A lâmina terrível cortou o escudo pela metade, como se fosse de couro, tão bem que tendo sido partida uma das agarradoiras pelo choque, messire Eustache jogou para longe de si a outra metade, que se tornara mais um embaraço que uma defesa e, tomando sua espada com as duas mãos, desferiu por sua vez um tão rude golpe sobre a cimeira do Rei que a lâmina voou em pedaços e que só a empunhadura lhe restou na mão.
O jovem cavaleiro deu então um passo atrás para pedir outra arma a seu escudeiro; mas Eduardo, levantando vivamente a viseira de seu elmo deu por sua vez um passo em frente e, tomando sua espada pela ponta apresentou a guarda a seu adversário.
‒ Messire, disse-lhe com aquela graça que ele sabia tão bem tomar nessas ocasiões, vos agradaria aceitar esta? Tenho, como Forragus, sete espadas a meu serviço e todas são de uma têmpera maravilhosa.
Seria deplorável que um braço tão hábil e vigoroso como o vosso não tivesse uma arma da qual se pudesse valer; tomai-a, pois, messire, e nós recomeçaremos o combate com mais eqüidade.
‒ Aceito, Monseigneur, respondeu Eustache de Ribeaumont, erguendo por sua vez a viseira de seu elmo, mas a Deus não compraza que eu ensaie o gume de uma tão bela arma contra aquele que m’a deu. Eu me reconheço, portanto, vencido, Sire, tanto por vossa coragem como por vossa cortesia, e esta espada me é tão preciosa que faço aqui o juramento sobre ela, e por ela, de jamais, nem em torneio nem em batalha, entregá-la a outro senão a vós.
O rei venceu a justa de aço, e Eustache de Ribeumont a justa da cortesia.
(Autor: Alexandre Dumas, « La Comtesse de Salisbury », Calmann-Lévy, Editeur, Paris, 1878, T.I, pp.247 a 261)
TERCEIRA CLASSE: O POVO
O povo ficava com a economia
Casa de rico burguês, Reims, França |
Frequentemente encontravam-se burgueses e comerciantes cuja fortuna era tal, que emprestavam dinheiro aos Reis.
Sem eles os monarcas não podiam fazer guerra.
Eram mais ricos que muitíssimos nobres.
O comerciante não ia para a guerra, não era ferido ou mutilado, levava uma vida calma.
A esta classe de produção econômica era cobrado imposto.
Casas de comerciantes, Obernai, Alsácia |
Naquele tempo, a primeira classe era a dos mais virtuosos,.
Isto é, o Clero, que se entregava ao serviço de Deus.
O plebeu mais rico tinha que se inclinar diante do clérigo mais pobre, o que é muito digno, muito razoável.
Se o Clero e a nobreza desfrutavam privilégios, isso decorria de suas funções mais elevadas e mais sacrificadas.
O que é natural, orgânico, justo.
Confrarias de mestres e operários de um mesmo ofício: autonomia, proteção social e fé
Na Europa, até hoje as antigas confrarias de ofícios e de bairros rememoram suas tradições. Foto em Florença, Itália. |
Figuravam em primeiro plano as pensões concedidas aos mestres idosos ou já enfermos e os socorros aos doentes, durante todo o tempo da doença e da convalescença.
Era um sistema de seguros em que cada caso podia ser conhecido e examinado em particular, o que permitia dar o remédio apropriado a cada situação e ainda evitar os abusos.
Se o filho de um mestre é pobre e quer aprender, os homens de bem devem lhe ensinar por 5 soldos (taxa corporativa) e por suas esmolas — diz o estatuto dos fabricantes de escudos.
A corporação ajudava ainda no caso de seus membros precisarem viajar ou por ocasião do desemprego.
Thomas Deloney conta-nos este episódio interessante: Tom Dsum, sapateiro inglês em viagem, encontra-se com um jovem senhor arruinado, e se dispõe a acompanhá-lo a Londres:
— Sou eu quem paga. Na próxima cidade nos divertiremos bastante.
Em Siena, Itália, as "contrade" ou bairros,
revivem em esplendorosa festa suas glórias seculares.
Os bairros estavam ligados a uma profissão manual.
— Como?! Pensava que você não tivesse mais que um soldo no bolso.
— Se você fosse sapateiro como eu, poderia viajar de um lado a outro da Inglaterra apenas com um penny (tostão) no bolso.
Em cada cidade acharia boa comida, boa cama e boa bebida, sem mesmo gastar seu penny.
Isto porque nenhum sapateiro deixará faltar alguma coisa a um dos seus.
Pelo nosso regulamento, se algum companheiro chegar a uma cidade sem dinheiro e sem pão, basta ele se dar a conhecer, não precisando se ocupar com outra coisa.
Os outros companheiros da cidade não somente o receberão bem, mas lhe fornecerão gratuitamente víveres e acomodações.
Se quiser trabalhar, sua corporação se encarregará de lhe arranjar um patrão, e ele não terá que procurá-lo”.
Esta curta passagem não necessita comentários.
Assim compreendidas, as corporações eram um centro muito vivo de ajuda mútua, honrando seu lema: “Todos por um, um por todos”.
Elas se glorificavam por suas obras de caridade. Os joalheiros obtiveram assim permissão para vender nas festas dos apóstolos, no domingo e nos feriados em geral.
Siena: autoridades dos bairros, 'contrade', julgavam as pendências trabalhistas |
Na maioria dos ofícios, os órfãos da corporação são educados às suas custas.
Tudo se passa numa atmosfera de concórdia e de alegria, da qual o trabalho moderno não pode dar uma idéia.
As corporações e confrarias tinham cada uma suas tradições, suas festas, seus ritos piedosos e cômicos, canções e insígnias.
Ainda segundo Thomas Deloney, para ser adotado como filho do “nobre ofício” um sapateiro deve saber “cantar, soar o corno, tocar flauta, martelar, combater com a espada e cantar seus instrumentos de trabalho em versos”.
Nas festas da cidade e nos cortejos solenes, as corporações expunham seus estandartes e ocupavam lugares de destaque. São pequenos mundos extraordinariamente vivos e ativos, que dão à cidade seu impulso e sua fisionomia original.
Em resumo, não se poderia melhor caracterizar a vida urbana na Idade Média do que citando o grande historiador das cidades medievais, Henri Pirenne:
“A economia urbana é digna da arquitetura gótica, da qual é contemporânea. Ela criou uma legislação social inteira, mais completa que a de qualquer outra época, inclusive a nossa.
O ofício dos falcoeiros era respeitado: trazia alimento pelo falcão
e limitava as espécies danosas pelos bons ofícios da ave.
“Suprimindo os intermediários entre vendedor e comprador, ela assegurou aos burgueses o benefício da vida barata.
“Impiedosamente perseguiu a fraude, protegeu o trabalhador contra a concorrência e a exploração, regulamentou seu trabalho e seu salário, velou por sua higiene, providenciou a aprendizagem, impediu o trabalho da mulher e da criança, ao mesmo tempo que conseguiu reservar para a cidade o monopólio de prover com produtos os campos circunvizinhos e encontrar ao longe escoadouros para o seu comércio”.
(Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Comércio, sindicatos e produção industrial na Idade Média, placidez e agitação
Nas águas plácidas deste canal da cidade belga de Gand, refletem-se há séculos as fachadas típicas de alguns prédios da Idade Média e da Renascença.
Prédios que dão uma singular impressão de equilíbrio arquitetônico, pelo contraste harmônico entre sua massa imponente, grave e sólida, e a decoração rica, variada e quase fantasiosa de suas fachadas.
Para que serviram primitivamente estes edifícios tão recolhidos e quase diríamos tão pensativos?
Residências patrícias? Centros de estudos? Não.
Eram ocupados por entidades de cunho corporativo: à extrema direita, a sede da corporação dos Barqueiros Livres; depois, a casa dos Medidores de Grãos, vizinha do pequeno edifício da Alfândega, onde os mercadores medievais vinham declarar suas mercadorias. Em seguida, o Celeiro, e por fim a Corporação dos Pedreiros.
Casas de trabalho e de negócios, pois. E nestas casas a história nos diz que se desenvolveu uma atividade das mais intensas e produtivas.
Mas a produção econômica ainda não estava envolvida pelas influências materialistas de hoje, e por isto ela se fazia num ambiente de calma, de pensamento e de fino gosto.
Não na atmosfera febricitante, trepidante, irrefletida e proletarizante que tantas vezes a marca em nossos dias.
Quem imaginaria para edifícios burgueses tanta nobreza, e para corporações de trabalho tanto bom gosto?
Mais do que um problema de arte, há aqui um problema de mentalidade.
Segundo uma concepção espiritualista, o melhor modo de agir humano se faz com a mente, e por isto a produção econômica dá o melhor de si mesma, como qualidade e até como quantidade, quando feita na calma sem ócio e no recolhimento meditativo.
Segundo uma concepção materialista, vale mais a quantidade que a qualidade, o agir do corpo que o da alma, o corre-corre do que a reflexão, e a superexcitação nervosa do que o pensamento autêntico. E daí a atmosfera vibrante de certas bolsas ou de certas grandes artérias modernas.
* * *
À superexcitação dos ambientes corresponde a dos homens, como o efeito à causa.
"Os síndicos dos mercadores de tecidos", Rembrandt |
Como é diferente, este tipo, dos burgueses plácidos, estáveis, dignos, prósperos, e de olhar inteligente, que o pincel de Rembrandt nos apresenta no admirável quadro "Os síndicos dos mercadores de tecidos".
Foram homens destes que, com meios de comunicação ainda incertos e lentos, deitaram para todas as direções a rede de suas atividades e lançaram as bases do comércio moderno.
Sua obra, entretanto, foi realizada na tranqüilidade e quase diríamos no recolhimento. Eles ainda espelham a atmosfera peculiar aos antigos prédios que analisamos.
Lição fecunda para nosso pobre mundo, cada vez mais devastado pelas nevroses.
Plinio Corrêa de Oliveira, CATOLICISMO, agosto de 1958
As corporações garantiam todas as formas de segurança social
“A confraria (ou corporação, o sindicato medieval), que era de origem religiosa e existia mais ou menos por toda parte, era um centro de ajuda mútua.
“Figuravam em primeiro plano as pensões concedidas aos mestres idosos ou já enfermos e os socorros aos doentes, durante todo o tempo da doença e da convalescença.
“Era um sistema de seguros em que cada caso podia ser conhecido e examinado em particular, o que permitia dar o remédio apropriado a cada situação e ainda evitar os abusos.
“Se o filho de um mestre é pobre e quer aprender, os homens de bem devem lhe ensinar por 5 soldos (taxa corporativa) e por suas esmolas — diz o estatuto dos fabricantes de escudos.
“A corporação ajudava ainda no caso de seus membros precisarem viajar ou por ocasião do desemprego.
“Thomas Deloney conta-nos este episódio interessante:
Tom Dsum, sapateiro inglês em viagem, encontra-se com um jovem senhor arruinado, e se dispõe a acompanhá-lo a Londres:
— Sou eu quem paga. Na próxima cidade nos divertiremos bastante.
— Como?! Pensava que você não tivesse mais que um soldo no bolso.
— Se você fosse sapateiro como eu, poderia viajar de um lado a outro da Inglaterra apenas com um penny (=tostão) no bolso.
Em cada cidade acharia boa comida, boa cama e boa bebida, sem mesmo gastar seu penny.
Isto porque nenhum sapateiro deixará faltar alguma coisa a um dos seus.
Pelo nosso regulamento, se algum companheiro chegar a uma cidade sem dinheiro e sem pão, basta ele se dar a conhecer, não precisando se ocupar com outra coisa.
Os outros companheiros da cidade não somente o receberão bem, mas lhe fornecerão gratuitamente víveres e acomodações.
Se quiser trabalhar, sua corporação se encarregará de lhe arranjar um patrão, e ele não terá que procurá-lo”.
“Esta curta passagem não necessita comentários. Assim compreendidas, as corporações eram um centro muito vivo de ajuda mútua, honrando seu lema: “Todos por um, um por todos”.
(Fonte: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Independência das corporações (sindicatos) medievais
O controle de qualidade e os julgamentos eram feitos por autoridades da própria corporação |
Nada mais contrário ao espírito das antigas corporações do que o aprovisionamento, a especulação ou os nossos modernos trusts.
Qualquer tentativa para tomar um mercado, qualquer esboço de entendimento entre alguns mestres em detrimento dos outros, qualquer manobra para monopolizar uma excessiva quantidade de matérias-primas, eram severamente reprimidas.
Era também implacavelmente punido o ato de desviar para seu proveito a clientela de um vizinho, o que nos nossos dias se chamaria abuso da publicidade.
A concorrência existia, mas restrita ao domínio das qualidades pessoais.
A única forma de atrair um cliente era fazer melhor, mais acabado e mais cuidado, por preço igual ao do vizinho.
Os regulamentos lá estavam, uma vez mais, para velar pela boa execução do ofício, detectar as fraudes e punir a má-fé.
Com este fim, o trabalho devia quanto possível ser feito no exterior da casa, ou pelo menos em plena luz.
Pobre do fabricante de panos que tivesse produzido um tecido de má qualidade nos recantos obscuros da sua loja!
Tudo deve ser mostrado à luz do dia, no alpendre onde o basbaque gosta de se demorar, onde “Mestre Patelin” (adulador) vem “enganar” o mercador ingênuo.
Os mestres-jurados ou “guardas de ofício” lá estão para fazer observar os regulamentos, e exercem um direito de visita severo.
Os falsários, fabricantes ilegais e fautores de atos que desabonavam o ofício eram severamente castigados pelo próprio sindicato |
Os seus companheiros são os primeiros a indigitá-los. É muito vivo o sentimento de honra do ofício.
Os que o mancham excitam o desprezo dos colegas, que se sentem atingidos pela vergonha que recai sobre todo o ofício.
São postos à margem da sociedade, olhados um pouco como cavaleiros perjuros que tivessem merecido a degradação.
O artesão medieval tem, de maneira geral, o culto do trabalho.
Encontramos o testemunho disso nos romances de ofício, como os de Thomas Deloney sobre os tecelões e os sapateiros de Londres.
Os sapateiros intitulam a sua arte “o ofício nobre”, e sentem-se orgulhosos do provérbio “todo filho de sapateiro nasceu príncipe”.
Um poema medieval, o Dit des fèvres (Ditos dos artesãos) detém-se complacentemente sobre os méritos destes:
É minha opinião que os artesãos
São a gente por quem mais se deve rezar.
Bem sabeis que os artesãos não vivem
Pachorrentamente, na verdade
Não é este um costume que eles tenham. [...]
Vivem os artesãos lealmente
Do seu labor, do seu trabalho,
E doam mais largamente
Do que têm, despendem mais
Que usurários que nada fazem,
Cônegos, priores ou monges.
São a gente por quem mais se deve rezar.
Bem sabeis que os artesãos não vivem
Pachorrentamente, na verdade
Não é este um costume que eles tenham. [...]
Vivem os artesãos lealmente
Do seu labor, do seu trabalho,
E doam mais largamente
Do que têm, despendem mais
Que usurários que nada fazem,
Cônegos, priores ou monges.
É uma característica especificamente medieval esse orgulho pelo seu estado, e não menos medieval o zelo com o qual cada corporação reivindica os seus privilégios.
Talvez um dos mais preciosos para a época é o de julgar por si própria os delitos do ofício, mas ela estima também como essencial a liberdade de se administrar através dos seus próprios representantes.
Para isso elege-se todos os anos um conselho de mestres, escolhidos pelo conjunto da corporação ou pelos outros mestres.
Os usos variam conforme os ofícios.
Os conselheiros prestam juramento, donde o nome de “jurados”.
Devem velar pela observação dos regulamentos, visitar e proteger os aprendizes, resolver os diferendos que podem surgir entre os mestres, inspecionar as lojas para policiar as fraudes.
É a eles que cabe também o encargo de administrar a caixa da corporação.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Corporação medieval: anos-luz à frente do sindicato atual
Tanoeiros fazendo pipas, vitral da catedral de Chartres |
A forma como foi compreendido na Idade Média, como se regulou o seu exercício e as suas condições, mereceu reter particularmente a atenção da nossa época, que vê no sistema corporativo uma solução possível para o problema do trabalho.
Mas o único tipo de corporação realmente interessante é a corporação medieval, tomada no sentido lato de confraria ou associação de ofício, logo alterada sob pressão da burguesia.
Os séculos seguintes não conheceram dela senão deformações ou caricaturas.
Não poderíamos definir melhor a corporação medieval do que vendo nela uma organização familiar aplicada ao ofício.
Ela é o agrupamento, num organismo único, de todos os elementos de um determinado ofício: patrões, operários e aprendizes estão reunidos, não sob uma autoridade dada, mas em virtude dessa solidariedade que nasce naturalmente do exercício de uma mesma indústria.
Como a família, ela é uma associação natural, não emana do Estado nem do rei.
Quando São Luís manda Étienne Boileau redigir o Livre des métiers (Livro dos ofícios), é apenas para colocar por escrito os usos já existentes, sobre os quais não intervém a sua autoridade.
O único papel do rei face à corporação, como de todas as instituições de direito privado, é controlar a aplicação leal dos costumes em vigor.
Como a família, como a universidade, a corporação medieval é um corpo livre, que não conhece outras leis senão as que ela própria forjou.
É esta a sua característica essencial, que conservará até ao fim do século XV.
Todos os membros de um mesmo ofício fazem obrigatoriamente parte da corporação, mas nem todos, bem entendido, desempenham aí o mesmo papel.
A hierarquia vai dos aprendizes aos mestres-jurados, que formam o conselho superior do ofício.
Habitualmente distinguimos aí três graus: aprendiz, companheiro ou servente de ofício e mestre.
Mas isto não pertence ao período medieval, durante o qual, até por meados do século XIV, na maior parte dos ofícios se pode passar a mestre logo que terminada a aprendizagem.
Os serventes de ofício só se tornarão numerosos no século XVIII, quando uma oligarquia de artesãos ricos procura cada vez mais reservar-se o acesso à mestria, o que esboça a formação de um proletariado industrial.
Durante toda a Idade Média, no entanto, as possibilidades iniciais são exatamente as mesmas para todos, e todo aprendiz, a menos que seja demasiado desajeitado ou preguiçoso, acaba por passar a mestre.
O aprendiz está ligado ao mestre por um contrato de aprendizagem — sempre esse laço pessoal caro à Idade Média — que comporta obrigações para as duas partes: para o mestre, a de formar o aluno no ofício e lhe assegurar a casa e o sustento, sendo proporcionado o pagamento pelos pais das despesas de aprendizagem; para o aprendiz, a obediência ao mestre e a aplicação ao trabalho.
Transposta para o artesanato, encontramos aí a dupla noção de “fidelidade-proteção”, que une o senhor ao vassalo ou ao rendeiro.
Mestres e aprendizes do ofício constituíam como que uma família |
Enquanto se manifesta toda a indulgência para as faltas, as leviandades, até mesmo as vadiagens do aprendiz, os deveres do mestre são severamente precisados: só pode receber um aprendiz de cada vez, para que o ensino seja frutuoso e para que não possa explorar os alunos descarregando sobre eles uma parte do trabalho.
O aprendiz só tem o direito de incumbir-se do trabalho depois de o ter praticado durante um ano, pelo menos, para que se possa avaliar as suas capacidades técnicas e morais.
Dizem os regulamentos:
“Ninguém deve receber um aprendiz, se não for tão sábio e tão rico que possa ensiná-lo, governá-lo e mantê-lo, [...] e isto deve ser sabido e feito pelos dois membros do conselho que defendam o ofício”.
Eles fixam expressamente aquilo que o mestre deve gastar diariamente para a alimentação e a manutenção do aluno.
Finalmente, os mestres estão submetidos a um direito de visita detido pelos jurados da corporação, que vêm ao domicílio examinar a forma como o aprendiz é alimentado, iniciado no ofício e tratado de maneira geral.
O mestre tem para com ele os deveres e os encargos de um pai e deve velar pela sua conduta e pelo seu comportamento moral, entre outras coisas.
Em contrapartida, o aprendiz lhe deve respeito e obediência, mas vai-se ao ponto de favorecer uma certa independência deste.
No caso de um aprendiz abandonar a casa do mestre, este deve esperar um ano até poder receber outro, e durante todo esse ano é obrigado a receber o fugitivo, se ele voltar.
Todas as garantias estão assim do lado mais fraco, não do mais forte.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
A corporação medieval no governo da cidade: genuína democracia
Autoridades da corporação dos comerciantes de Paris em 1611. O chefe desta corporação passou a ser prefeito da cidade |
Em algumas cidades, como Marselha, os delegados dos ofícios tomam parte efetiva na direção dos assuntos comunais.
Fazem parte compulsivamente do conselho geral, nenhuma decisão que toque os interesses da cidade pode ser tomada sem eles, escolhem semanalmente os “semaneiros” que assistem o reitor, e sem os quais não se pode tomar deliberação.
Repetindo a expressão do historiador da comuna de Marselha, M. Bourrilly, os chefes de ofício eram “o elemento motor” da vida municipal, e poder-se-ia dizer que Marselha teve no século XIII um governo de base corporativa.
A confraria, que existe um pouco por toda parte, tem origem religiosa.
Mesmo onde o ofício não está organizado em mestria ou confraria (jurande), é um centro de entreajuda.
Entre os encargos que pesam regularmente sobre a caixa da comunidade, figuram em primeiro lugar as pensões dadas aos mestres idosos ou enfermos, e durante o tempo de doença e de convalescença as ajudas aos membros doentes.
É um sistema de seguros no qual cada caso pode ser conhecido e examinado em particular, o que permite levar o remédio apropriado a cada situação e evitar também os abusos e as acumulações.
“Se ao filho de mestre acontece ser pobre, e quer aprender, os membros do conselho devem mandá-lo aprender com base nos 5 soldos (taxa corporativa) e com as suas esmolas” – diz o estatuto dos “armeiros” ou fabricantes de escudos.
A corporação ajuda os seus membros, se necessário, quando estão em viagem ou em caso de desemprego.
Thomas Deloney põe na boca de um colega do “nobre ofício” uma passagem muito significativa.
Tom Drum (é o seu nome) encontra no caminho um jovem senhor arruinado, e propõe-lhe que o acompanhe até Londres:
Sapateiro e seu cliente
“Sou eu quem paga. Se fosses sapateiro como eu, poderias viajar de uma ponta à outra da Inglaterra, sem um penny no bolso.
“No entanto, em todas as cidades encontrarias cama, boa mesa e o que beber, sem gastares nada.
“Os sapateiros querem que a nenhum deles falte nada.
“O nosso regulamento diz: ‘Se um companheiro chega a uma cidade, sem dinheiro e sem pão, tem apenas que se fazer conhecer, e não precisa se ocupar com outra coisa.
“Os outros companheiros da cidade não só o recebem bem, mas oferecem-lhe gratuitamente o sustento e a alimentação.
“Se quer trabalhar, a comissão encarrega-se de lhe encontrar um patrão, e não tem de se incomodar’.
Esta curta passagem diz o suficiente para dispensar comentários.
Assim compreendidas, as corporações eram um centro muito vivo de ajuda mútua, fazendo honra à divisa “todos por um, cada um por todos”.
Os ourives tinham fama pelas suas obras de caridade, e com base nisso obtêm a permissão de abrir a loja aos domingos e nas festas dos Apóstolos, geralmente feriados.
Tudo o que ganham nesse dia serve para oferecer no domingo de Páscoa uma refeição aos pobres de Paris:
“Quanto ganhar a oficina aberta, é posto na caixa da confraria dos ourives, [...]
“e com todo o dinheiro dessa caixa dá-se todos os anos no domingo de Páscoa um jantar aos pobres do Hôtel-Dieu de Paris”.
De igual modo, na maior parte dos ofícios, os órfãos da corporação são educados a expensas suas.
As corporações davam o tom da economia urbana medieval. |
As corporações e confrarias têm cada uma as suas tradições, sua festa, seus ritos piedosos ou burlescos, suas canções, suas insígnias.
Ainda segundo Thomas Deloney, para um sapateiro ser adotado como filho do “nobre ofício”, deve saber “cantar, tocar trompa, tocar flauta, manejar o pau ferrado, combater com a espada e enumerar em versos as suas ferramentas”.
Por ocasião das festas da cidade e nos cortejos solenes, as corporações desfraldam as suas bandeiras, e para quem aí se encontra haverá alguns títulos de precedência.
São pequenos mundos extraordinariamente vivos e ativos, que acabam por dar à cidade o seu impulso e a sua fisionomia original.
Globalmente, não saberíamos resumir a natureza da vida urbana na Idade Média melhor do que citando o grande historiador das cidades medievais, Henri Pirenne:
“A economia urbana é digna da arquitetura gótica da qual é contemporânea.
“Ela criou todas as peças de uma legislação social mais completa do que a de qualquer outra época, incluindo a nossa.
“Suprimindo os intermediários entre vendedor e comprador, assegurou aos burgueses o benefício da vida barata.
“Perseguiu impiedosamente a fraude, protegeu o trabalhador contra a concorrência e a exploração, regulamentou o seu trabalho e o seu salário, velou pela sua higiene, providenciou a aprendizagem, impediu o trabalho da mulher e da criança.
“Ao mesmo tempo conseguiu reservar para a cidade o monopólio de abastecer com os seus produtos os campos circundantes, e de encontrar lá longe saídas para o seu comércio”. (Les villes et les institutions urbaines au Moyen Âge, tomo I, p. 481)
Corporações: ufania do próprio ofício e projeção política no governo municipal
“O artesão medieval tem em geral grande amor e zelo pela própria profissão.
“Encontra-se um testemunho disso nos romances de profissão, como os de Thomas Deloney sobre os tecelões e sapateiros de Londres, no qual estes últimos intitulam seu trabalho como “a nobre profissão”, e têm orgulho do provérbio: “todo filho de sapateiro é príncipe nato”.
“É um traço especialmente medieval este orgulho do próprio estado e o zelo das corporações na reivindicação de seus privilégios.
“Um dos mais preciosos para a época era o de poder julgar os delitos cometidos por seus membros.
“Mas a corporação estima essencialmente a liberdade de administrar-se por seus próprios representantes. Para isso é eleito cada ano um conselho de mestres escolhido de mil maneiras, quer pelo conjunto da corporação, quer apenas pelos mestres. Os usos variam segundo os ofícios.
“Os conselheiros (da corporação) escolhidos prestam um juramento, de onde o nome de jurados.
“Além do que já vimos, cabia também a eles resolver as discórdias surgidas entre os mestres e administrar a caixa da corporação.
“Sua influência chega a ser tal, que eles desempenham papéis políticos na vida da cidade.
“Em várias, tomam parte efetiva na direção dos negócios da comuna, como em Marseille. Quase sempre fazem parte do Conselho Geral.
“Sem eles, nenhuma decisão que toque os interesses da cidade pode ser tomada.
“Em muitos lugares os artesãos escolhem semanalmente os semaniers que assistirão o recteur, e sem os quais não se pode tomar nenhuma deliberação.
“Segundo Bourrilly, eles eram o “elemento motor” da vida municipal. Pode-se dizer que Marseille teve no século XIII um governo de base corporativa”.
(Fonte: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Corporações: independência trabalhista e importância político-social
“Para melhor se defenderem, e por um costume caro à época, os comerciantes medievais tinham o hábito de se associarem.
“Há no princípio, para os navios, o que se chama a “conserva”: dois ou mais navios decidem fazer juntos sua viagem, e esta decisão é objeto de um contrato, que não se rompe sem se expor a sanções e a uma multa.
“De outro lado, os comerciantes de uma cidade, onde quer que eles se encontrem, formam uma associação e elegem um representante seu para os administrar, e, se for necessário, assumir a responsabilidade ou a defesa de seus interesses.
“As ferrarias mais importantes têm um cônsul permanente — ou pelo menos durante a grande “estação” comercial, que vai de São João (24 de junho) a Santo André, em novembro — fiscalizando os armazéns.
“Marseille nos oferece o exemplo dessa instituição dos cônsules, comum nas cidades do Mediterrâneo, cujas decisões só podiam ser suprimidas pelo reitor da comuna e tinham até força da lei. Havia também cônsules na maior parte das cidades da Síria e do Norte da África, em Acre, Ceuta, Bougie, Túnis e nas Baleares.
“Juntamente com o comércio, o elemento essencial da vida urbana é o artesanato. A maneira como esse foi compreendido na Idade Média, como se regularam o seu exercício e as suas condições, mereceu atrair particularmente a atenção de nossa época, que vê no sistema corporativo uma solução possível para o problema do trabalho.
“Mas o único tipo de corporação realmente interessante é a corporação medieval, tomada no sentido lato de confraria ou associação de ofício, e além disso alterada em boa hora sob a pressão da burguesia. Os séculos seguintes só conheceram as suas deformações ou caricaturas.
“Não se poderia melhor definir a corporação medieval do que vendo nela a organização familiar aplicada ao trabalho. Ela é o agrupamento, num organismo único, de todos os elementos de um ofício determinado.
“Patrões, operários e aprendizes estão reunidos, não sob uma autoridade qualquer, mas em virtude dessa solidariedade que nasce naturalmente do exercício de uma mesma indústria.
“Como a família, ela é uma associação natural, não emana do Estado nem do rei.
”Quando São Luís manda a Etienne Boileau redigir o “Livro dos ofícios”, é somente para registrar os usos já existentes, sobre os quais sua autoridade não intervém.
“O único papel do rei frente à corporação, como em todas as instituições de direito privado, é de controlar a aplicação legal dos costumes em vigor.
“Como a família e a universidade, a corporação medieval é um corpo livre, não conhecendo outras leis que as formuladas por ela. Eis o seu caráter essencial, que será conservado até o fim do século XV”.
(Fonte: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
As corporações de mestres (patrões) e aprendizes ditavam suas próprias leis trabalhistas
Padaria, venda de pães. Vitral dos Apóstolos, catedral de Chartres, França |
“O exercício de cada profissão era objeto de uma minuciosa regulamentação, que existia principalmente para manter o equilíbrio entre os membros da corporação.
“Toda tentativa para embaraçar um mercado, todo esboço de entendimento entre alguns mestres em detrimento de outros, toda apropriação de quantidades excessivamente grandes de matérias-primas, eram severamente punidas.
“Nada mais contrário ao espírito das antigas corporações do que os grandes estoques, a especulação ou os “trusts”.
“Era também punido o desvio da clientela dos vizinhos pelo abuso da propaganda.
Entretanto a concorrência existia sempre, mas restrita ao domínio das qualidades pessoais.
“O único modo de atrair os fregueses era fazer pelo mesmo preço um determinado produto mais bem acabado e mais perfeito que o dos vizinhos.
Aprendiz auxilia o mestre tintureiro, enquanto aprende o ofício. Catedral de Chartres, vitral dos Apóstolos |
“Com este objetivo o trabalho deveria, o quanto possível, ser feito ao ar livre, ou ao menos de modo bem visível.
“Tudo devia ser mostrado à luz do dia, na qual o malandro não gosta de permanecer, e onde “maître Patelin” (espertalhão) não consegue enganar o comerciante ingênuo.
“Os mestres-jurados ou guardas de ofício cuidavam também da fiel observância dos regulamentos.
“Exerciam severamente o direito de visita.
“Os fraudadores eram colocados no pelourinho e expostos juntamente com sua má mercadoria durante certo tempo.
“Seus companheiros eram os primeiros em apontá-los, fazendo-os sentir o desprezo de seus confrades, ofendidos pela vergonha que jorrava sobre todo o ofício.
“Eram colocados à margem da sociedade.
“Por isso os falsificadores eram olhados mais ou menos como os cavaleiros perjuros, que teriam merecido a degradação.”
Fonte: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Relações entre patrões e empregados nas corporações de ofício
Mestre açougueiro e aprendiz |
Durante toda a Idade Média, no início as oportunidades são as mesmas para todos, e o aprendiz só não se torna mestre por falta de jeito ou indolência.
O aprendiz liga-se a seu mestre por um contrato de aprendizagem — sempre esse laço pessoal, caro à Idade Média — comportando obrigações a ambas as partes: para o mestre, a de formar seu aluno no ofício, e seu sustento durante esse tempo; para o aprendiz, obediência a seu mestre e dedicação ao trabalho.
Transpôs-se assim ao artesanato a dupla noção de “fidelidade-proteção”, que une o senhor a seu vassalo.
Mas como aqui uma das partes contratantes é uma criança de 12 a 14 anos, todos os cuidados são tendentes a reforçar sua proteção.
Deste modo, por um lado manifesta-se maior indulgência para com suas faltas, estorvamentos e até vagabundagens; por outro, delimitam-se severamente os deveres do mestre: ele não pode ter mais que um aprendiz por vez, para que seu ensino seja frutuoso; não pode explorar seus alunos, descarregando sobre eles uma parte de seu trabalho.
Mestre padeiro e aprendiz |
“Ninguém deve ter aprendiz se não for tão sábio e tão rico que o possa ensinar, governar e sustentar, e isso deve ser conhecido pelos homens que protegem o ofício” — dizem os regulamentos.
Eles fixam também quanto o mestre deve despender diariamente com a alimentação e manutenção do aluno.
Os mestres são ainda submetidos a um direito de visita, exercido pelos jurados da corporação, que vem a domicílio examinar como o aprendiz é alimentado, ensinado e tratado.
O mestre tem para com ele os deveres e obrigações de um pai. Entre outras coisas, deve velar por sua conduta moral.
O aprendiz lhe deve respeito e obediência, apesar de conservar uma certa independência.
No caso de ele abandonar a casa de seu mestre, este deve esperar um ano antes de tomar outro, e durante esse período é obrigado a recebê-lo, se voltar.
Todas as garantias do lado mais fraco, e não do mais forte.
O tempo do aprendizado varia segundo as profissões. Em geral é de 3 a 5 anos.
No final o aluno põe à prova suas habilidades perante os jurados de sua corporação.
Essa é a origem da obra-prima, cujas condições se irão complicando com o correr dos séculos.
Armeiros |
Em alguns ofícios em que o comerciante deve provar sua solvabilidade, exige-se uma caução.
Foram estas as condições da maestria na Idade Média.
A partir do século XIV elas haviam sido independentes, mas a partir de então começam a se ligar ao poder central.
O acesso à maestria vai sendo dificultado pouco a pouco.
Por exemplo, tornou-se então obrigatório em quase todas as corporações um estágio intermediário de 3 anos, como companheiro; o postulante devia desembolsar o que se chamou “compra do ofício”, variando de 5 a 20 soldos.
(Fonte: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
As sociedades de comércio e as corporações de ofício: triunfos da autonomia operária e burguesa
Orvieto, parada na festa de Corpus Christi: bandeiras das corporações de sapateiros e açougueiros |
Para melhor se defenderem, e por um costume caro à época, os comerciantes têm o hábito de se associarem.
Há no princípio, para os navios, o que se chama a “conserva”: dois ou mais navios decidem fazer juntos sua viagem, e esta decisão é objeto de um contrato, que não se rompe sem se expor a sanções e a uma multa.
De outro lado, os comerciantes de uma cidade, onde quer que eles se encontrem, formam uma associação e elegem um representante seu para os administrar, e, se for necessário, assumir a responsabilidade ou a defesa de seus interesses.
As ferrarias mais importantes têm um cônsul permanente — ou pelo menos durante a grande “estação” comercial, que vai de São João (24 de junho) a Santo André, em novembro — fiscalizando os armazéns.
Marseille nos oferece o exemplo dessa instituição dos cônsules, comum nas cidades do Mediterrâneo, cujas decisões só podiam ser suprimidas pelo reitor da comuna e tinham até força da lei.
Havia também cônsules na maior parte das cidades da Síria e do Norte da África, em Acre, Ceuta, Bougie, Túnis e nas Baleares.
Juntamente com o comércio, o elemento essencial da vida urbana é o artesanato.
A maneira como esse foi compreendido na Idade Média, como se regularam o seu exercício e as suas condições, mereceu atrair particularmente a atenção de nossa época, que vê no sistema corporativo uma solução possível para o problema do trabalho.
Pisa: cidade marinheira livre |
Os séculos seguintes só conheceram as suas deformações ou caricaturas.
Não se poderia melhor definir a corporação medieval do que vendo nela a organização familiar aplicada ao trabalho.
Castello dei Conti: cidades orgulhosas de sua desigualdade |
Patrões, operários e aprendizes estão reunidos, não sob uma autoridade qualquer, mas em virtude dessa solidariedade que nasce naturalmente do exercício de uma mesma indústria.
Como a família, ela é uma associação natural, não emana do Estado nem do rei.
Quando São Luís manda a Etienne Boileau redigir o “Livro dos ofícios”, é somente para registrar os usos já existentes, sobre os quais sua autoridade não intervém.
O único papel do rei frente à corporação, como em todas as instituições de direito privado, é de controlar a aplicação legal dos costumes em vigor.
Fieschi (Itália): nenhuma cidade era igual a outra, mas todas estavam impregnadas do espírito de família |
Todos os membros de um mesmo ofício fazem parte da mesma corporação, mas nela não desempenham o mesmo papel.
A hierarquia vai dos aprendizes aos mestres-jurados, formando o conselho superior da corporação.
(Fonte: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
De escravos antigos a servos da gleba: transição para o homem livre
Um ponto que serve para mostrar o tipo de tratamento reinante entre os diversos graus da hierarquia social é a comparação entre os escravos da Antiguidade e os servos da gleba na época medieval.
Na Antiguidade pagã o escravo não tinha qualquer direito, nem mesmo o da vida.
Podia ser morto por seu dono, que tinha direito de vida e de morte sobre ele.
Não tinha direito a constituir família.
Se alguma escrava tinha um filho, este podia ser vendido e mandado para longe da mãe, como um animal.
Ao final do Império Romano, quando este já se havia tornado cristão, foi reconhecido aos escravos o direito ao matrimônio.
Este processo fazia parte daquilo que se chamou de humanização do Direito Romano, atribuída à influência cristã.
Tal direito ao matrimônio, porém, não impedia que o casal pudesse ser separado, vendido, etc.
Não era ainda o direito ao matrimônio do homem livre.
Foi somente com a instauração da Cristandade medieval na Europa que se conheceu, pela primeira vez na História, um continente inteiro sem a escravidão.
O servo da gleba era um servidor que não tinha o direito de sair do lugar onde trabalhava.
Era ligado à gleba, não sendo, portanto, um homem livre em toda a força do termo.
Porém, apesar de não ser totalmente livre, desfrutava de muitos direitos.
Inerente à sua própria condição, tinha o direito de permanecer na terra onde trabalhava, não podendo ser expulso dela pelo seu senhor.
Exercia também uma espécie de direito de propriedade sobre a casa onde morava e sobre uma parte das terras que cultivava.
Seu tempo era dividido entre o trabalho nas terras do senhor e em suas próprias terras, de cujos frutos ele vivia.
Algumas vezes beneficiava-se ainda de uma porcentagem do que produzia nas terras do senhor.
Seu contrato de trabalho era hereditário e intocável.
Tinha direito a constituir família e só podia ser castigado fisicamente em caso de comprovado mau comportamento.
Se o senhor vendia as terras que possuía, estas eram alienadas junto com o servo, que não podia ser mandado embora.
A servidão da gleba era um estado intermediário entre a escravidão e a liberdade.
Quando terminou a Idade Média quase não havia mais servos da gleba na Europa.
Na Idade Média, sob a influência da Igreja, constituiu-se uma classe dos homens livres, classe esta muito menos numerosa na Antiguidade, época histórica em que uma parcela considerável da população era constituída por escravos.
A expressão servo da gleba continuou em uso até a Revolução Francesa.
Mas então os que se denominavam servos eram os descendentes dos antigos servos da gleba, sendo proprietários das terras que cultivavam, pagando aos nobres um pequeno imposto pelo fato de, outrora, tais terras terem pertencido à nobreza.
A origem histórica dos servos da gleba remonta à época das invasões dos bárbaros, nos séculos IV e V, quando o Império Romano do Ocidente se desagregou.
Os proprietários de terras, que possuíam certos recursos, começaram a construir fortificações para se abrigar contra os invasores.
Então muitos homens, que não tinham condições para se defender dos ataques dos bárbaros, pediam licença para se refugiar nas fortificações daqueles proprietários, as quais constituíam a forma primitiva do que foi mais tarde o castelo medieval.
Os proprietários geralmente impunham como condição aos abrigados, que estes cultivassem as terras no tempo de paz e os ajudassem na luta contra os invasores, em época de guerra.
Formou-se assim um contrato do servo com o proprietário.
Na época em que foi instituída, a servidão da gleba foi aceita como algo natural, fruto das circunstâncias.
Porque um senhor, diante das grandes hordas que se deslocavam, precisava ter certeza de que sua propriedade teria um número suficiente de homens para defendê-la.
Era-lhe vantajoso estabelecer um contrato vitalício, e mesmo hereditário.
Do mesmo modo, era vantajoso para os servos, os quais, muitas vezes não eram homens livres, mas antigos escravos romanos.
Sua situação foi suavizada, pela influência da Igreja, mediante a condição de servos da gleba, antes de ser totalmente abolida a escravidão.
Fonte: CATOLICISMO, março 1998
A placidez operosa do copista
Um medieval está copiando certo livro. Deveria ser desses copistas profissionais, dos quais alguns eram artistas verdadeiros.
Sentado numa mesa junto à janela, ele está vestido com uma roupa que podemos imaginar de cor entre marrom e preto, ampla, na qual se percebe que ele se movia completamente à vontade, e que o agasalhava bem.
À sua direita, uma janela com vidros de fundo de garrafa, tal vez de cor verde, um pouco dado ao claro, fechada de tal maneira que a luz penetrava da direita para a esquerda, portanto iluminando o trabalho como deveria fazê-lo.
Ele, sentado com rosto plácido, escreve com uma pena de pato grande.
E o copista faz tranquilamente seu trabalho; um trabalho belo, para o qual — percebe-se — ele tem habilidade.
Sem pressa, sem angústia, sem cansaço. Vê-se que está ali sumamente entretido. Ganhando a vida e entretido.
Mas entretido com o quê? Com aquele ambiente que exprimia determinados valores morais.
Por exemplo, o seguinte valor: placidez operosa. A placidez em si é uma qualidade moral.
Uma placidez operativa reúne duas perfeições opostas — porque aparentemente a placidez é o contrário da ação — mas harmônicas.
Não tem noção de que o dia se passou extraordinariamente bem. Para ele foi um dia normal.
Essa normalidade não foi deliciosa, foi apenas deleitável.
A diversão e o prazer são uma exceção na vida. O normal é essa deleitabilidade de cada dia.
É o verdadeiro entretenimento da normalidade, da tranquilidade, da placidez.
(Fonte: “A inocência primeva e a contemplação sacral do universo no pensamento de Plinio Corrêa de Oliveira”, Instituto Plinio Corrêa de Oliveira, São Paulo, 2008, p. 50.)
Dignificação do trabalho manual
Disseminou-se que as escolas socialistas do século XIX recuperaram a dignidade do trabalho manual.
Nada mais falso.
No paganismo, os bárbaros viviam da caça e do saque; o trabalho braçal era próprio dos escravos.
Quando o Império Romano ruiu, tornaram-se indispensáveis atividades de sobrevivência, sempre menosprezadas.
E eis que os monges aparecem, ante as multidões miseráveis, como semi-deuses que habitam em admiráveis abadias devotadas ao esplendor do culto.
Após um simples bater do sino descem aos pântanos, desertos ou florestas para abrir roças com seus braços!
Quando os monges deixavam suas celas para cavar valetas e arar campos, "o efeito era mágico. Os homens voltavam para uma nobre porém desprezada tarefa".
São Gregório Magno (590-604) refere-se ao abade Equitius, do século VI, famoso pela sua eloqüência.
Um enviado papal foi procurá-lo e se apresentou no scriptorium onde imaginava encontrá-lo entre os copistas.
Os calígrafos simplesmente disseram: "Ele está lá embaixo no vale, cortando a cerca".
Hierarquia e dignidade na cozinha medieval
Tribunal de Poitiers, salle des pas perdus |
Na mão tem uma grande colher de pau “que lhe serve para duas finalidades: a primeira, experimentar as sopas e os molhos; a segunda, empurrar os serventes da cozinha para as suas obrigações e, se for necessário, bater neles mais de uma vez”.
Em raras ocasiões ‒ quando chegam as primeiras trufas ou o primeiro arenque novo ‒ apresenta-se o cozinheiro para servir pessoalmente, nesse caso levando a tocha na mão.
Para o grave cortesão que no-las descreve (La Marche) todas estas coisas são sacros mistérios, dos quais fala com respeito e com uma espécie de discurso escolástico.
“Quando eu era pajem ‒ diz La Marche ‒ era ainda demasiado jovem para entender questões de precedência e cerimonial”.
La Marche propõe a seus leitores importantes questões de hierarquia e etiqueta, para ter o gosto de resolvê-las com maduro tato:
‒ “Por que assiste o cozinheiro, e não o servente de cozinha à refeição do senhor? De que modo deve ser nomeado o cozinheiro? Quem deve representá-lo em caso de ausência: o 'hatcur' (encarregado dos assados) ou o 'potagier' (encarregado da sopa)?
‒ “A isto respondo: ‒ diz o sábio La Marche
Padeiro e auxiliar. Bodleian Library, Oxford. |
‒ Por que os “panetiers” ( título honorífico que recebiam os que guardavam e serviam o pão ao rei) e os “escanções” (aquele que punha o vinho na copa e o apresentava ao rei; equivaleria ao copeiro de hoje em dia) ocupam respectivamente o primeiro e segundo lugares, antes que os trinchadores e os cozinheiros?
‒ Porque seus cargos referem-se ao pão e ao vinho, coisas santas, glorificadas pela dignidade do Sacramento”.
(Autor: Johan Huizinga, “El Otoño de la Edad Media”, Revista de Occidente, Madrid, 1965, 6ª. Edición.)
O encanto medieval dos mercadinhos de Natal
Feira de Natal, Frankfurt |
A tradição, embora deformada, pervive até hoje.
Trata-se das feiras de Natal que ainda dominam em cidades alemãs, austríacas, alsacianas, etc., na Europa.
Elas constituem um eco saudoso, requintado em épocas posteriores, do Natal medieval.
Cheiro de ervas, amêndoas torradas, vinho, cravo, canela, incenso e resina de pinheiro.
Enfeites natalinos que falam não ao corpo mas à alma nos fazem reviver as profundas alegrias da infância.
Bremen |
Luz de vela, utensílios de madeira: tudo relembra o aspecto material rude da Gruta de Belém.
Ao mesmo tempo, parece ecoar a insondável luz sobrenatural da graça, do cântico dos anjos, da alegria ingênua e enlevada dos pastores, do maravilhamento entusiasmado dos Reis do Oriente diante do Menino Deus.
As feiras de Natal da Alemanha começam no Advento, período litúrgico tradicional das quatro semanas antes do Natal.
Dresde erige uma “pirâmide” de Natal de 14 metros de altura que não é outra coisa senão um bolo de frutas típico (Christstollen), pesando quatro toneladas.
Nuremberg |
A de Colônia, muito famosa, na realidade é só de 1820.
Mas como que querendo estabelecer uma ligação com o imponderável da Idade Média a cidade tem seis feiras natalinas, uma delas ao lado de sua catedral gótica, a maior da Alemanha.
Em Augsburgo, a especialidade é o pão de mel. Lá, o imenso pinheiro de Natal fica pequenino ao lado das torres da igreja, que medem 150 metros.
Em dezembro, cerca de dois milhões de pessoas passam pela feira natalina a respirar uma pontinha do charme medieval que nelas paira impalpavelmente.
Passau |
E se alguém perguntar, a resposta é uma só: o Sr., a Sra. está em um mercado de Natal medieval.
Iluminados por fogueiras acessas no chão ao invés da chata moderna lâmpada, o cheiro de madeira queimada domina o local.
Mergulhadas num ambiente que fala de fé e lógica, as pessoas compram artigos forjados no fogo, como facas e utensílios de cozinha.
Em Siegburg, um grupo de saltimbancos-trovadores anuncia o fim da feira todos os dias, com um show de fogo e instrumentos medievais.
As classes modestas modelavam as classes mais altas
Numa sociedade harmônica com desigualdades proporcionadas, as classes mais modestas têm uma forma de modelar as classes mais altas
Salvo em nações muito pequenas que têm uma classe só, como Andorra, por exemplo, que é uma república de vaqueiros, em todas as sociedades deve haver classes.
Mas, numa sociedade bem ordenada como a medieval, a classe mais alta é o produto característico de toda sociedade.
A sociedade se mirava na sua classe mais alta como o artista se mira na sua obra de arte.
Isto é assim porque as classes mais modestas têm uma forma de modelar as classes mais altas que é verdadeiramente interessante.
Por exemplo, um concerto. Na sala está o músico dando o concerto. A gente dirá quanto esse músico modela o espírito artístico do povo.
É verdade, mas uma análise mais profunda mostra que existe uma reciprocidade: quanto o público modela o artista.
Porque instintivamente o artista procura aplauso, e se o povo aplaude nos lugares certos, o artista insiste nesses lugares.
Isso é sobretudo verdadeiro no teatro. No teatro se o artista é aplaudido bem em certas horas por um público inteligente, toda a nível cultural ligado ao teatro nesse povo sobe. Se ele é aplaudido nos lugares errados, aquilo tudo baixa de nível.
Uma vez na Europa eu fui a uma peça de Verdi chamada “Aida”. Eu não gosto da “Aida” e não gosto de Verdi, mas de qualquer maneira fui ver.
Eu olhava em torno de mim, todo o mundo com o sério do sono, e não com o sério de quem presta atenção na música, etc.
Em certo momento entra um carro egípcio puxado por bois.
Nesse povo há muitos criadores de gado, e na hora que entraram os bois estourou o entusiasmo da platéia: “Ah, muito bem!” Batiam com os pés no chão, “viva!”
Eu pensei: esse público deforma o artista porque isso não é a hora de fazer esse bulício todo. Na hora em que entra o boi, entra o grande aplauso, o povo deforma.
Se, pelo contrário, o público tivesse senso da ópera e do teatro e aplaudisse no momento certo, aí ele modelava bem os artistas.
Num outro país eu vi “Edipo rei”. Num certo momento, chegava a hora em que o Edipo ia cegar-se a si próprio para aplacar a cólera dos deuses.
E então, ele fazia um monólogo em cena, como quem está pensando alto.
É uma cena trágica, até que diz “tout est clair!” Mas o ator dizia o “tout est clair” com o jeito de quem encontrou a verdade, mas a verdade é acabrunhadora e vai exigir dele o sacrifício inominável de cegar-se a si próprio, de desistir dos bens que tinha, expatriar-se e caminhar como um cego pelas estradas da Grécia pedindo esmola.
Então ele para e diz: “Tout est clair! oh! tout est clair!”, e faz um gesto trágico na hora de penetrar na obscuridade definitiva...
Os empresários do teatro tiveram o bom-senso de não exigir que ele arranque os próprios olhos no palco com o pano alto.
Essa cena pungente arrancou do público desse teatro mais aplausos do que os bois provocaram nesse outro país.
Assim o público modela os artistas.
E esse fenômeno natural dá-se também nas sociedades com classes harmônicas e proporcionadas: as classes modestas modelam as classes altas que as dirigem.
Assim também na São Paulo antiga. Quando havia grandes festas particulares, os automóveis iam deixando os convidados que iam, todos em traje de gala ‒ hoje não há mais gala nem grandes festas, mas ante era assim ‒.
O povinho ficava de pé nas calçadas olhando as pessoas.
E eu tive a impressão de que o povinho formava uma opinião a respeito das pessoas que passavam e que comentava.
Quem estava dentro dos automóveis fingia que não percebia, mas percebia.
Assim o povinho sem querer, em certo sentido naturalmente, modelava o pessoal que passava.
Uma vez que houve uma grande festa, eu resolvi não ir à festa para me meter no meio do povinho para ver como é que reagia.
Era isso mesmo: “olha aquela! olha aquele outro, olha aqui, depois isso, depois aquilo; não, não é”, não entravam de acordo, etc., etc.
O automóvel passava com as pessoas hieraticamente sentadas, em geral sem conversarem, prova de que estavam prestando atenção no que se dizia deles.
Eles modelavam o povo e o povo modelava a eles. Uma espécie de reciprocidade.
Tomem a pessoa mais rica ou mais poderosa, vamos dizer um grande escritor. Dois garis comentam: “olha lá vai fulano”.
Um deles diz: “eu não gosto dele, já li muitos romances dele, acho cacetes”. O outro diz: “não, eu achei até, pelo contrário, muito vivos.”
É fatal, o literato ainda que seja Prêmio Nobel começa a andar mais devagar para ouvir o que é que os dois lixeiros estão conversando. É fatal.
Também os alunos modelam até certo ponto o professor. Naturalmente, o professor modela o aluno muito mais. Mas o aluno modela o professor. É uma modelagem recíproca.
(Fonte: Plinio Corrêa de Oliveira, 1/4/92. Sem revisão do autor.)
Fonte das informações do vídeo: The Book of Curtesye (1477)
As belezas da pobreza bem levada refulgiam na plebe medieval. O exemplo de Domremy.
Casa da família de Santa Joana d'Arc, Domremy, França |
Ouvindo nossos elogios inclusive as formas de vida das classes populares na Idade Média, alguém poderia objetar:
A resposta me salta aos lábios, o presépio de Belém.
O Menino Jesus foi com certeza um menino de uma beleza inimaginável, além do mais um menino nobre. São José era da Casa de David, está na Escritura.
Quer dizer, ele é descendente do Rei David.
A família de David tinha sido posta fora do trono mas tinha o direito a reinar sobre Israel. São José era o chefe da Casa de David.
Ele tinha sobre Israel um direito como o príncipe imperial D. Luiz de Orleans e Bragança bisneto da Princesa Isabel tem sobre a coroa do Brasil.
O Menino Jesus era, portanto, Filho de Rei.
Agora, O imaginem não no presépio de Belém com as vaquinhas e os boizinhos dando bafo em cima d’Ele, etc., mas no mais belo palácio da terra.
Não é verdade que isso seria menos bonito do que no presépio?
E que muita coisa na plebe foi posta feia e pobre para que se realçassem valores que nela aparecem e florescem?
E é preciso saber entender e compreender isto.
Todos se lembram da figura histórica de Santa Joana d'Arc.
Heroína virginal que quando a França feudal, a França do heroísmo e da cavalheirosidade estava no chão, debaixo do pé conquistador da Inglaterra, foi suscitada numa aldeiazinha muito humilde, com um nome que soa como um toque de sininho: Domremy.
E que quando ela ia apascentar as ovelhas da família, as vozes de duas santas ‒ Santa Margarida e Santa Catarina ‒ falavam com ela.
E explicavam-lhe que ela tinha que ir para a França, para salvar o reino, e como é que seria, etc., etc.
Aquela virgem encantadora, em determinado momento partiu. Apresentou-se ao Rei.
E disse que ela era mandada por Deus, etc., etc.
Afinal de contas, o Rei aceitou e a pôs, a ela fraca e débil, à frente de um exército que era um dos mais fortes da Europa.
Ela, na sua debilidade virginal e encantadora, comandou e foi empurrando os ingleses quase completamente para fora da França.
Era uma pastora chamada a brilhar na corte de um rei.
Era uma virgem chamada a viver num campo militar onde, infelizmente, tantas e tantas vezes a linguagem é impura, a presença das mulheres perdidas se faz notar, etc., etc.
E, entretanto, ela ali reluzia como um círio de cera puríssima em plena noite.
Bem, não é mais bonito que ela tenha sido uma pastorinha do que ela tivesse sido filha de um príncipe?
Cada cidade possuía, num grau difícil de imaginar nos nossos dias, a sua personalidade própria, não somente exterior, mas também interior, em todos os detalhes da sua administração, em todas as modalidades da sua existência.
São geralmente, pelo menos no Midi, dirigidas por meirinhos, cujo número varia: dois, seis, por vezes doze; ou ainda um único reitor reúne o conjunto dos cargos, assistido por um preboste que representa o senhor, quando a cidade não tem a plenitude das liberdades políticas.
Muitas vezes ainda, nas cidades mediterrânicas faz-se apelo a um poderoso (podestà), instituição muito curiosa.
O poderoso é sempre um estrangeiro (os de Marselha são sempre italianos), ao qual se confia o governo da cidade por um período de um ano ou dois.
Em toda parte onde foi empregado, este regime deu inteira satisfação.
Em todo caso, a administração da cidade compreende um conselho eleito pelos habitantes, geralmente por sufrágio restrito ou com vários graus, e assembléias plenárias que reúnem o conjunto da população, mas cujo papel é sobretudo consultivo.
Os representantes dos ofícios têm sempre um lugar importante, e sabemos qual foi a parte ocupada pelo preboste dos comerciantes em Paris nos movimentos populares do século XIV.
A grande dificuldade com que as comunas se debatem são os embaraços financeiros.
Quase todas se mostram incapazes de assegurar uma boa gestão de recursos.
O poder é, aliás, rapidamente absorvido por uma oligarquia burguesa, que se mostra mais dura para com o povo miúdo do que tinham sido os senhores, daí a rápida decadência das comunas.
São muitas vezes agitadas por perturbações populares, e periclitam a partir do século XIV; um tanto ajudadas, é preciso dizê-lo, pelas guerras da época e pelo mal-estar geral do reino.
Nos séculos XII e XIII o comércio toma uma extensão prodigiosa, já que uma causa exterior, as cruzadas, vem dar-lhe um novo impulso.
As relações com o Oriente, que nunca tinham sido completamente interrompidas nas épocas precedentes, conhecem então um vigor novo.
As expedições ultramarinas favorecem o estabelecimento dos nossos mercados na Síria, Palestina, África do Norte, e mesmo nas margens do mar Negro.
Italianos, provençais e languedócios fazem entre si uma severa concorrência, e se estabelece uma corrente de trocas cujo centro é o Mediterrâneo.
Ela vai seguindo a estrada secular do vale do Reno, do Saône e do Sena até ao norte da França, países flamengos e Inglaterra.
Essa estrada já era seguida pelas caravanas que, antes da fundação de Marselha no século VI a.C., transportavam o estanho das ilhas Cassitérides — isto é, da Grã-Bretanha — até aos portos freqüentados pelos comerciantes fenícios.
É a época das grandes feiras de Champagne, Brie e Ilha de França — Provins, Lagny, Londit, San Denis, Bar, Troyes — aonde chegam as sedas, os veludos e os brocados, o alúmen, a canela e o cravo-da-Índia, os perfumes e as especiarias vindos do centro da Ásia, e que em Damasco ou em Jaffa eram trocados pelos tecidos de Douai ou de Cambrai, as lãs da Inglaterra e as peles da Escandinávia.
As casas de comércio de Gênova ou de Florença tinham nos nossos mercados as suas sucursais permanentes.
Os banqueiros lombardos ou de Cahors negociavam aí com os representantes das hansas do Norte e entregavam letras de câmbio válidas até nos distantes portos do mar Negro.
As nossas estradas conheciam assim uma extraordinária animação. A importância do mercado oriental é capital na civilização medieval.
Já a Alta Idade Média tinha conhecido o Oriente através de Bizâncio: a igreja de Paris recitava em grego uma parte dos seus ofícios; foram os marfins bizantinos que verdadeiramente reensinaram ao Ocidente a arte esquecida de esculpir a madeira e a pedra; e a decoração dos manuscritos irlandeses inspira-se nas miniaturas persas.
Mais tarde os árabes conduzem as suas conquistas com a brutalidade que sabemos, e cortam por algum tempo as pontes entre as duas civilizações.
Mas vêm as cruzadas, e o mercado oriental — ao qual corresponde, aliás, um mercado “franco” na Ásia Menor, que trabalhos recentes manifestaram — banha toda a Europa e a faz conhecer a vertigem do tráfego, o deslumbramento dos frutos estranhos, dos tecidos preciosos, dos perfumes violentos, dos costumes suntuosos, e inunda com a sua luz essa época apaixonada pela cor e pela claridade.
Sobretudo multiplica esse gosto pelo risco, essa sede de movimento, que na Idade Média coexiste de forma tão tocante com a ligação à terra.
O espírito católico que permeou a Idade Média, segundo o célebre ensinamento do papa Leão XIII suscitou uma admirável expansão do espírito de cada povo, região, cidade e aldeia.
O resultado no urbanismo foi o aparecimento de cidades com estilos fabulosamente diversos.
Nada havia das cidades monótonas modernas que se repetem a si próprias um pouco por todo mundo.
Cada conjunto humano gestava sem planificação, segundo suas propensões naturais de alma, a cidade que bem entendia.
Essa plenitude de liberdade pode nos parecer caótica pelas sua fabulosa riqueza e diversidade.
No clip abaixo temos três exemplos que “hurlent de se trouver ensemble” (“berram pelo simples fato de estarem juntos”).
No início a cidade de Jerez de La Fontera, na Andaluzia (Espanha) onde é palpável a influência moura.
Logo a seguir, Bruges, a riquíssima cidade da Bélgica, espécie de capital dos panos, das artes e do comércio no tempo de esplendor medieval.
Por fim, a encantadora Rothenburg ob der Tauber, na Alemanha, na sua inacreditável originalidade e harmonia das formas e cores de seus prédios que parecem surgidos de um conto de fadas.
Esses são apenas alguns exemplos da infindável variedade de estilos nascidos livremente sob a proteção benfazeja da Igreja.
É inegável também a unidade de fundo entre essas cidades que vem do fato de terem sido, ou ainda serem, católicas.
A Igreja Católica, na Civilização Medieval, manteve o regime das classes sociais diferentes, reconhecendo a existência de um clero, uma nobreza e um povo.
Mas ao mesmo tempo que manteve essa diferença, alterou fundamentalmente alguns aspectos dessa diferença.
Antes de tudo, a primeira das classes sociais, que era o clero, era uma classe completamente aberta a todas as pessoas que tivessem vocação para nela ingressar.
A Igreja nunca exigiu que a pessoa pertencesse a determinada classe social para chegar a entrar no clero.
Pelo contrário, foi muito frequente o exemplo de pessoas pertencentes às camadas mais modestas da sociedade e que ascendiam a mais alta categoria da hierarquia eclesiástica.
De outro lado, tínhamos a nobreza. A nobreza era uma classe hereditária, mas havia aí também uma grande diferença.
Em primeiro lugar, um nobre podia ser destituído de sua nobreza, se ele praticasse determinados atos infamantes.
De outro lado, um plebeu poderia ser promovido a nobre se ele praticasse atos de relevância.
De maneira que a condição de nobre não era uma condição fechada, na qual ninguém pudesse entrar e ninguém pudesse sair.
Era, pelo contrário, uma condição que passava por uma renovação lenta.
Aos poucos os elementos deficientes eram eliminados e os elementos novos que iam aparecendo, eram aproveitados. Esta classe era uma classe que tinha alguma fixidez, mas era uma classe aberta.
Ao lado disto, tínhamos a burguesia e depois a plebe.
Mas o ponto mais importante é saber o seguinte: clero, burguesia, nas suas imensas variedades, mercadores, industriais, homens de estudo, proprietários, pequenos lavradores, trabalhadores manuais, nobres, clérigos, em que medida todos eles participavam, ou em que medida deviam participar da direção do Estado.
Dentro do comum das organizações políticas modernas, o problema foi resolvido numa base puramente numérica.
Entende-se que o Estado é indiferente em questão de classes sociais e que por causa disto, cada um tem o direito a um voto.
E quando se chega na hora de votar, cada um dando um voto o resultado se aprecia numericamente. Tantos brasileiros tiveram tal orientação, se essa orientação é da maioria, ela prepondera.
Na aparência, dizia o Papa Pio XII num de seus recentes discursos, na aparência, a solução é das melhores.
Porque uma vez que confia a direção da coisa pública a maioria dos cidadãos é naturalmente interessada em que as coisas do Estado vão bem.
Colocar a direção do Estado nas mãos dos principais interessados é, certamente, a melhor das soluções.
Mas na realidade, verificamos que no plano das competências, no plano das especializações, esta solução pode ser muitas vezes defeituosa.
E por quê? É porque necessariamente, as classes mais numerosas ficam com a voz dirigente.
Pois se tudo se apura em termos de número, é claro que a categoria mais numerosa acaba tendo uma força que pesa com o elemento que resolve.
De outro lado, o elemento menos numeroso, o elemento que resolve poderia representar precisamente o fator pensamento, o fator orientação, o fator elite, esse elemento fica excluído porque é menos numeroso e é necessariamente derrotado.
Esse mecanismo, muito simples e claro à primeira vista, acaba produzindo freqüentemente uma seleção, às vezes. Pode ser que produza uma verdadeira seleção, mas frequentemente acaba produzindo uma seleção às avessas.
Então, nasce o problema para o qual o Papa Pio XII pedia a atenção dos homens cultos e dos homens de Estado de nosso tempo, de saber como dentro de um país, se devem distribuir as parcelas de influência na direção do Estado, de maneira que o Estado seja judiciosamente orientado e governado.
A esta questão, a Idade Média pode nos dar algumas sugestões para uma solução.
O que prevalecia na Idade Média era antes de tudo a seguinte idéia de que todos os homens foram criados por Deus, iguais. Iguais por natureza. Todos os homens, enquanto homens, são iguais. Por causa disto, têm todos eles, em face do Estado, os direitos inerentes à natureza humana, inteiramente iguais.
A natureza humana deu ao homem, ou por outra, o homem tem por natureza, direito à vida, direito à propriedade, certo direito à liberdade individual, direito à dignidade pessoal, à saúde, etc..
Como estes direitos decorrem da natureza humana, e todos os homens são igualmente homens, é natural que o Estado deve assegurar esses direitos igualmente a todos os homens.
Mas acontece que os homens, ao lado desses direitos essenciais que são inerentes a todos, têm também determinados direitos que são acidentais. São direitos que provém de acidentes existentes em sua própria natureza.
O homem mais inteligente, o homem mais capaz, o mais trabalhador, o mais virtuoso, pelo fato de ter determinadas qualidades que estão acima do nível comum, acaba adquirindo direitos maiores.
Então, a verdadeira justiça dentro da sociedade, não consiste em ser absolutamente igual para todos, mas consiste em tratar a todos de tal maneira que lhes assegure os direitos essenciais da pessoa humana.
E que além disso, distribua maiores vantagens e maiores honrarias para aqueles que aguentam mais pesadamente o fardo dos interesses coletivos.
Dentro dessa ordem de ideias, na Idade Média prevalecia o conceito de que duas classes sociais deveriam sobretudo viver para o bem público, e que essas duas classes sociais mereceriam a participação maior na direção dos negócios públicos: o clero e a nobreza.
Estudando a história, poder-se-ia achar que a vida na Idade Média era muito mais movimentada do que a de nossos dias. De fato parece ser.
A movimentação era, entretanto, num outro campo e por razões diferentes das movimentações de hoje.
A atividade dos corpos talvez fosse menor. Certos homens viajavam muito, mas era apenas uma certa categoria de homens: os mercadores, os estudantes, os nobres.
Mas a maior parte das populações ficava fixa nas cidades. E o geral dos homens viajava muito menos que os de hoje.
Agora, acontece que enquanto a vida física de um homem era menos trepidante, sua vida espiritual, intelectual e moral era muito mais sujeita a flutuações e muito mais cheia de vais-e-vens.
Isso determinava uma diferença de “colorido” na vida medieval.
Ao contrário, o homem de hoje em dia é habitualmente fixo na sua mentalidade.
Podemos olhar em torno de nós e veremos que são poucas as pessoas que mudaram de mentalidade.
A maior parte das pessoas não muda de mentalidade. A mentalidade que têm consiste em:
– não ter mentalidade, pelo menos explícita,
– ser adoradores desse século,
– levar uma vida agradável,
– procurar, sobretudo, viver como se entende,
– não se impressionar com princípios, nem se deixar guiar por nenhuma espécie de doutrina.
Esse tipo de mentalidade é tão arraigado que podemos contar pelos dedos os pecadores que se arrependeram, ou se converteram, e passaram a ser pessoas de virtude. No homem contemporâneo há uma espécie de regra de fixidez.
Há uma certa categoria de gente que sabemos que é “boa” e que vai naquele passo manso até o fim da vida... E há uma outra categoria que a gente sabe que não presta, e que também vai no passo de louco até o fim da vida.
As categorias são mais ou menos definidas e delimitadas.
Na Idade Média não era assim. Vemos, às vezes com espanto, regiões inteiras profundamente católicas que mudam, de repente, e caminham até os extremos da heresia mais declarada.
Vemos também regiões heréticas que se convertem real e profundamente. E homens ímpios que se convertem de um momento para outro.
Mas vemos histórias pavorosas de apostasias de padres que fogem dos conventos e fazem coisas medonhas. Pessoas que eram boas e viviam na vida de família mas que apostataram.
Esta ‘movimentação” se deve a alguns fatos:
Em primeiro lugar, a vitalidade do homem medieval era muito mais exuberante.
Em segundo lugar, o homem medieval tinha mentalidade e idéias. Quando se tem mentalidade e idéias é possível mudar-se de uma para outra.
O homem medieval exibia uma ‘movimentação” intelectual e religiosa que se devia a alguns fatos:
Em primeiro lugar, a vitalidade do homem medieval era muito mais exuberante.
Em segundo lugar, o homem medieval tinha mentalidade e ideias. Quando se tem mentalidade e ideias é possível mudar-se de uma para outra.
Hoje, pelo contrário, há exatamente uma carência de idéias.
Sobretudo o que há é que o homem contemporâneo é de uma dureza de coração, especialmente no que diz respeito ao bem. Ele absolutamente não muda. As manifestações de virtude mais palpáveis não o comovem.
Podemos ter o exemplo disto em torno de nós.
Por vezes, pessoas que não fazem mal a ninguém e que dão a todos o exemplo da virtude, bons filhos, bons irmãos, procedem bem em todas as coisas mas não obtêm a simpatia de ninguém.
Qual a razão disto? Endurecimento... O espetáculo da virtude não comove, não impressiona; a virtude não é simpática, não atrai nenhuma espécie de simpatia.
Isto se prende também ao mito do “cidadão maior”, investido em todos os seus direitos civis. A primeira coisa que este cidadão pseudo-livre precisa ter é que ninguém mexa em sua cabeça. Ele é inteiramente independente. Ele tem uma idéia e não muda; toma uma atitude e não liga para ninguém.
Agora, por que ele é independente senão para ser burro sozinho, para ser um celerado sozinho? Ele tem sua independência, ele a mantém.
Resultado: a voz da graça lhe fala e encontra fechadas as portas de seu coração! Ele absolutamente não se comove.
As Cruzadas foram um exemplo de ressonância da voz da graça e da voz do passado, na Idade Média.
Pelo contrário, na Idade Média encontramos a possibilidade de ressonância da voz da Igreja, como também da voz do passado, de um modo prodigioso.
É curioso ver como os bons exemplos, como certas situações, como certas crises sociais, impressionavam. E não era só o bom exemplo do rei. Era o bom exemplo dado por qualquer um.
– As Cruzadas, em grande parte, foram determinadas pelo contágio de alguns bons exemplos.
– São Bernardo, quando entrou para o convento de Cister, levou consigo, de uma vez, cerca de vinte ou trinta cavaleiros.
Por toda parte notamos que um, tomando uma posição, uma porção de outros se impressionam e seguem, porque ir atrás de um outro não era uma vergonha, sobre tudo quando exibia objetivos, ideias, doutrinas e projetos santos.
Foi preciso chegarmos ao século XX para se decretar que ir atrás de um homem como São Bernardo é uma vergonha.
Denomino “europeização” a compreensão do que a Europa tem de bonito e a adoção do estado de espírito do europeu.
Não seria uma pura valorização do que há na Europa, mas a aquisição de um modo de ser inspirado no europeu.
Os europeus procuram organizar a vida de modo belo, com valores positivos.
Em suas casas, por exemplo: se há uma janela disponível, eles colocam um vaso com gerânios; se há um jardinzinho, plantam flores com desenhos lindos.
Tendo um belo panorama, aparecem artistas para ver, pintar, fotografar; comentam o panorama e extasiam-se com ele; expõem quadros com as pinturas.
Tudo aquilo vai entrando na cultura do povo.
Os brasileiros modernos, entretanto, ao contrário dessa impostação de alma, geralmente não incorporam as coisas com aquele estado de espírito medieval, mesmo tendo nós panoramas realmente bonitos.
Se adquirissem esse estado espírito, ficariam com apetência desse tipo de prazer intelectual.
Bem diferente da apetência pela politicagem, pela sensualidade, pela torcida desenfreada no esporte…
São defeitos contra os quais se deve remar.
Há nisso um sentido religioso?
Há, evidentemente, pois as coisas magníficas da natureza nos foram dadas pela Providência para nos elevarmos a Deus.
São imagens da sublimidade d’Ele.
É evidente que a posição de fechamento, de não se ter a alma aberta em relação ao sublime, leva as pessoas para o que é prosaico.
Portanto, representa um fechamento para a imagem que Deus colocou nas coisas criadas por Ele.
Tal fechamento para os aspectos sublimes das coisas representa, substancialmente, algo de antirreligioso.
Uma forma característica de remanso é o aconchego da cidade cercada de muros, com portas que se fecham durante a noite, guardas, sentinelas, etc.
Enquanto do lado de fora tem o inimigo, a proximidade do assalto noturno e outros perigos.
Outra forma é o remanso do castelo, num grande campo, junto ao qual as cabanas dos agricultores se reúnem como filhas medrosas em torno da mãe.
O castelo enorme tem encostada uma aldeiazinha a seu lado.
Essa proximidade permite aos aldeões irem correndo para dentro do castelo se houver ataque.
De maneira que todos dormem ao seu lado. O castelo é o grande remanso.
Mas não era moleza. Durante o dia todos trabalham.
Acresce que a guerra era frequente na Idade Média.
Também, os medievais empreendiam viagens enormes, romarias a cidades longínquas que podiam durar meses ou anos, Cruzadas e aventuras da toda ordem.
É o contraste.
A gente deve imaginar assim cidades como a de Bruges tão encantadora com seus canais.
Hoje, ela ficou meio parada.
Considerando esse conjunto, o remanso fica delicioso.
É um remanso cheio de calor humano, cheio de aconchego, e que não é um remanso para a vida inteira, mas uma alternativa para a luta, o trabalho e a aventura.
São ocasiões em que toda a sensação de perigo se afasta, e o homem se distende inteiro.
E, nessa distensão, as coisas retornam à sua verdadeira hierarquia.
Porque, na atividade febricitante perde-se o senso da boa ordem, mas nessa distensão as coisas retomam sua verdadeira hierarquia. Isso é propriamente o remanso.
Imaginemos, por exemplo, o comerciante que passou o dia inteiro posto na sua loja.
Ele chega a noite em casa, as atividades comerciais estão encerradas, e ele entra num ambiente tão diferente de sua atividade comercial, que fica como que forçado a não pensar mais nela.
Então aí o comércio fica de lado e a hierarquia de valores se restabelece.
Restabelecendo-se, ele é capaz de “distância psíquica”.
Tudo isto é bonito e atraente.
Há nisto um equilíbrio, uma ordem, uma afinidade com a natureza humana, que torna isso belo.
O recolhimento não é o contrário da ação.
O recolhimento é a fonte da ação.
As grandes ações do homem se resolvem nas horas de recolhimento.
Então, o recolhimento assim vivido não é um convite à preguiça.
Ele restaura as forças para continuar a ação, e por causa disto ele é belo.
Na vida medieval não existia antagonismo entre o campo e a cidade. A cidade estava integrada na vida rural como uma cereja no chantilly.
No século XIII São Tomás de Aquino ensinava que a cidade tem um limite a partir do qual ele fica grande demais.
Qual é?
No momento que desde algum local da cidade não se enxergasse a natureza, a cidade tinha atingido o seu tamanho máximo.
Por isso havia uma proporcionalidade e uma integração notável entre o campo e a cidade.
Com toda naturalidade, uma pessoa passeando pela cidade acabava chegando ao campo e prolongando o passeio pela natureza vizinha.
Da mesma maneira o camponês entrava e saia da cidade para suas necessidades.
Na cena acima temos uma cena da vida pastoral. É o tempo da colheita. Homens e mulheres estão engajados, pois há muito para colher.
No fundo vê-se a cidade tão bonitinha que se diria de conto de fadas. As construções são sólidas em pedra e as agulhas sobem muito alto. O sino marca as horas e ouve-se à distância.
No alto do morro há um moinho que aproveita o vento para gerar trabalho, pelo geral moer o trigo para fazer a farinha, ou bombear água.
Com que amor pelas coisas do campo o desenhista representou a natureza! Essas árvores quase que se diriam árvores do Paraíso!
A vegetação evidentemente está estilizada; os cordeirinhos estão postos para enfeitar.
Os camponeses mais uma vez aparecem como gente gorda, forte.
É assim que incontáveis desenhos do tempo apresentam os camponeses, em livros muitas vezes destinados para bibliotecas municipais e serem folheados e vistos pela plebe.
Eles eram desenhados por gente da plebe, porque os autores de iluminuras em geral eram plebeus.
Muitas vezes eram filhos desses camponeses, ou tinham sido camponeses eles próprios.
Em tudo vê-se a alegria, a inocência, a satisfação, a despreocupação da vida campestre medieval.
A cena seguinte é de mais um almoço popular.
Pelo traje vê-se que são plebeus. Estão sentados numa espécie de taverna ao ar livre.
No fundo um sujeito enche os canecos com cerveja ou vinho que o garçom leva para os consumidores nas mesas.
Na cena da taverna aparecem dois andares.
Em cima estão o andar dos fregueses, ao que parece catando os vinhos. Embaixo está a adega.
O fornecedor também tem um guiché ao lado por onde passa para os servidores os líquidos que vão ser servidos em cima.
Os plebeus estão vestidos com abundância de panos.
Era preciso realmente que o pano não fosse caro nessa época para eles terem tanto tecido para gastar.
Eles bebem de bom grado, que jeito de pessoas satisfeitas da vida eles dão!
É cena tipicamente plebeia.
Não espanta que os clientes sejam gordos, mas não são só eles, até o servidor é gordo e está satisfeitão.
A imagem representa uma excursão de camponeses mais abastados.
Serão, tal vez, proprietários pequenos ou médios de propriedades rurais.
Eles se divertem num passeio em bote pelo canal.
O homem está tocando uma flauta, um moça está tocando um bandolim, um homem atrás rema.
Eles estão andando num canal que vai ao longo de um castelo.
O castelo tem beleza arquitetônica. A harmonia das linhas, o belo reflexo sobre as águas, os cisnes nadam num grande sossego.
Bem em frente do castelo há uma casa de plebeus.
Entre o castelo e casa dos campônios se estabelece naturalmente uma comparação muito bonita de duas classes sociais: o castelo é mais nobre, rico e belo, mas em frente dele reina a fartura e a comodidade.
A poesia, a quietude, a tranquilidade caracteriza essas habitações camponesas, feitas por populares cuja manifestação de bom gosto é menos acentuada do que nos nobres.
A casa tem um aconchego e uma beleza insuspeitados para os dias de hoje, mas essas eram construções normais para a Idade Média.
A vida dos senhores no castelo é severa, grave, cheia de solenidade.
Na casa popular vive-se sem as preocupações que tem o nobre, vida folgada, bem alimentada, agradável, aconchegante, cheia dos atrativos da despreocupação.
Fartura plebeia e esplendor aristocrático vivem face a face em perfeita harmonia.
Entre as duas residências há um valo, onde passeiam as figuras principais. Qual é a razão de ser desse valo?
A razão de ser desse valo é defender o castelo.
Quando os adversários atacarem o castelo, deita-se uma ponte que vai do castelo até a margem e as famílias de camponeses refugiam com seus haveres, seu gado, às vezes com seus móveis dentro do castelo.
O castelo não é mera residência do senhor feudal. Ele é uma fortaleza aonde o senhor feudal reside.
Mas, é bastante grande para conter a população da aldeia plebéia que mora junto, dos trabalhadores manuais esparsos pela propriedade, todos eles se defendem dentro do castelo.
E é por isso que tantas vezes, na Idade Média, encontra-se duas ou três aldeias próximas dos castelos.
Porque eles estando próximos da fortaleza do senhor, em caso de necessidade, ali eles se refugiam e defendem.
No momento a ponte não figura. É um recurso do artista para deixar ver a água que é muito bonita.
Mas dizer que o castelo era só a residência do senhor feudal é tão estúpido como dizer hoje que um quartel é só residência do comandante.
Porque o castelo era o quartel e a garantia de segurança da Idade Média.
O povo medieval legislava elaborando as leis consuetudinárias.
Consuetudo é uma palavra latina que significa costume. A lei consuetudinária não era feita por legisladores encerrados num Parlamento.
A lei consuetudinária registrava no papel os costumes criados por todas as categorias sociais na vida de todos os dias. Essas leis eram guardadas na mente dos populares. Os anciões eram seus guardiões mais zelosos.
Quando a necessidade impunha, essas leis orais eram escritas em pergaminhos. Estes eram guardados como tesouros.
As leis consuetudinárias eram verdadeiros compêndios de sabedoria popular.
Nem o rei, nem o nobre, nem os eclesiásticos podiam ir contra o costume, desde que não violasse a Lei de Deus e os demais costumes já existentes. O resultado era que o povo medieval tinha um grau de autonomia insuspeitado.
Pouco antes da Revolução Francesa, quer dizer, já bem depois da Idade Média, ainda a metade do país era regido por códigos de leis consuetudinárias orais, não escritas. A outra metade, por códigos escritos de leis também consuetudinárias mescladas com leis nacionais editadas pelos reis absolutos pós-medievais. Acresce que em certas regiões havia superposição de códigos escritos e leis orais.
Pode parecer confusão, mas na prática era uma fonte de liberdade e aconchego legal insuspeitável que contribuiu muito à "doucer de vivre" francesa: a "doçura de viver", a vida fácil e larga sem muitos constrangimentos legais ou burocráticos.
Entre as primeiras coisas que fez a Revolução Francesa foi abolir esses sistemas consuetudinários.
Tudo ficou sendo decidido por legisladores "iluminados" na capital, desconectados da vida real local. Foi Napoleão que impôs seu Côdigo de leis a todo o país: a vontade omnímoda central do imperador-soberano passou por cima de tudo.
Muitos países "democráticos" passaram a imitar o Código de Napoleão. Brasil entre eles.
Mas, voltando às leis consuteudinárias medievais, o que acontecia era que na vida quotidiana de povos que aspiravam à perfeição, o bom costume aceito pelo conjunto virava lei.
Violar essa lei, ainda no periodo que não estava transcrita, soava como gesto de insensato.
Grande parte das leis existentes na Idade Média era fruto de costumes repetidos que se transformaram em norma.
Esta variava de feudo para feudo, como por exemplo, o modo de passar recibo, de legar herança, como também as leis de compra e venda de mercadorias, etc.; porque tudo nascia dos costumes do povo.
As leis sobre comércio, indústria e trabalho nasciam das relações de trabalho.
Dessa maneira, a lei estava adatada à realidade e todos se sentiam a vontade praticando-a até de modo exemplar.
O povo então amava a lei e até se regozijava com ela ponderando sua cordura, moderação e seus infinitos jeitinhos.
Os Reis apenas ordenavam que fossem escritas, reviam e corrigiam o que fosse injusto ou contrário à doutrina e à lei da Igreja.
Era uma participação efetiva no direito de legislar, de que gozava o povo na Idade Média.
A lei consuetudinária começou a ser desrespeitada pelo absolutismo real que apareceu durante a decadência da era medieval. O menosprezo aumentou com os déspotas esclarecidos inspirados pelo Iluminismo revolucionário após a Idade Média.
A Revolução Francesa consagrou o sistema de legisladores e teorizadores democráticos que legislam longe da realidade. Então a lei escrita foi se descolando da vida concreta.
Sob certos aspectos, virou para muitos uma espécie de flagelo do qual até os cidadãos honestos não querem apanhar e tentam fugir.
Tal é o caso da escalada devoradora dos impostos e as impenetráveis Babéis da burocracia moderna.
O tribunal mais antigo da Terra, cujas sentenças são reconhecidas pelo Judiciário de seu país, tem sede na cidade de Valencia, na Espanha, segundo informou a agência AFP.
Mas ele age segundo usos e costumes da Idade Média, época em que foi fundado. O atendimento é imediato, bastando os querelantes se apresentarem.
O julgamento é oral, sem burocracia nem custos, a sentença é pronunciada na hora, não tem apelo e é acatada sem discussão, pois a respeitabilidade do tribunal beira o sagrado.
Trata-se do Tribunal das Águas, fundado em Valencia no século X e que já comemorou mais de um milênio em atividade.
Sua autoridade se estende sobre os conflitos relativos à irrigação na fértil planície situada junto à terceira cidade da Espanha, uma região de laranjais e hortas.
O tribunal está constituído por oito anciãos, escolhidos pelas oito comarcas irrigadas. E se reúne na Porta dos Apóstolos da catedral gótica da cidade, em espaço delimitado especialmente para as suas sessões.
O horário de atendimento é todas as quintas-feiras, quando os sinos da torre Micalet da catedral batem meio-dia.
Os oito juízes em simples toga preta de outros séculos assumem suas poltronas de inspiração medieval, e um oficial de justiça começa a chamar os eventuais querelantes, enunciando o nome das respectivas comunidades.
Os reclamantes então ingressam na área reservada ao tribunal, acompanhados ou não de seus advogados, e eventualmente de algum policial que foi testemunha dos fatos.
Ouvidas as posições das partes, os juízes trocam opiniões sobre o caso, e o chefe do tribunal emite a sentença, prontamente obedecida.
Uma pequena multidão acompanha o julgamento que, por sinal, se faz em dialeto valenciano, parecido com a língua espanhola.
“A mais antiga instituição de justiça existente na Europa” está inscrita no patrimônio cultural imaterial da UNESCO.
Sua existência remonta pelo menos ao século X, quando a região fazia parte do califado de Córdoba, e no lugar da atual catedral gótica – a cuja sombra se reúne – havia uma mesquita.
Os casos julgados pelo tribunal tem uma realidade muito tangível e versam sempre sobre o uso das águas, incluindo cortes abusivos, desvios mal feitos, ou questões análogas.
Os litígios são mais numerosos nas épocas de seca, existindo uma vasta jurisprudência acumulada nas mentes e nas almas dos veneráveis juízes.
Os usos e costumes estão também consignados num código específico, explica o historiador Daniel Sala, grande conhecedor da instituição.
Um caso recente típico envolveu um agricultor com trinta anos de atividade que viu a água chegar poluída por resíduos de cimento e de tinta jogados no canal por um vizinho que reformava sua casa.
Tendo ouvido os argumentos das partes, após breve debate o presidente pronunciou a fórmula consagrada, condenando o vizinho poluidor. Este aceitou a sentença com o protocolar “correto”, e pagou logo a multa de 2.000 euros.
O tribunal exerce sua jurisdição sobre dez mil agricultores que dependem da irrigação, os quais escolhem o representante de cada comunidade.
As sentenças são reconhecidas pela Justiça Civil espanhola e o tribunal “foi respeitado pelos reis, pelos presidentes das Repúblicas, pelas ditaduras, em poucas palavras, por todo o mundo”, sublinhou o historiador Daniel Sala.
Todos os anos surgem centenas de causas. Porém, pouquíssimas delas – entre 20 e 25 – chegam a este tribunal. Há certos dias em que ninguém se apresenta perante os juízes reunidos.
O motivo é admirável: é tanta a respeitabilidade do tribunal que os querelantes acabam se reconciliando na própria praça, antes mesmo de serem convocados.
“Para um agricultor é quase uma ofensa vir aqui”, explica José Antonio Monzó, que supervisiona o respeito das regras na comunidade de Quart.
Enrique Aguilar, representante da comunidade de Rascanya e vice-presidente do tribunal, calcula que 90% dos casos se resolvem pela conciliação, às vezes poucos minutos antes de comparecer diante dos juízes sentados.
“Nós tentamos agir de maneira que ninguém chegue a ter que ser julgado aqui”, explica Aguilar diante da Porta dos Apóstolos.
“Durante a ocorrência, o acusado pode esbravejar e declarar-se não culpado. Mas quando chega aqui, ele pede a conciliação e finalmente paga a sanção imposta”, conta Manuel Ruiz, presidente do tribunal e representante da comunidade de Favara.
O Tribunal das Águas de Valencia é um último vestígio da justiça medieval em matérias trabalhistas.
Nessas causas, os julgamentos normalmente eram feitos por tribunais específicos das corporações de ofícios, onde todos se conheciam entre si e as respectivas famílias, sabiam o que cada um fazia ou o que seus antepassados fizeram, viviam o problema na vida quotidiana, ouviram as gerações velhas dirimindo as querelas, tudo num ambiente de sensatez, respeito mútuo, tradição e sabedoria cristã.
Esse poder de julgamento das corporações populares é um dos aspectos mais simpáticos da era medieval e dos menos conhecidos hoje.
E talvez dos mais necessitados. No Brasil, por exemplo, foram abertas em 2016 mais de três milhões de causas trabalhistas – é o nº 1 do mundo –, muitas delas introduzidas por advogados especializados em criá-las onde talvez não existam.
Quantos milhões de páginas foram redigidos para alimentar esses processos? Quantos milhões ou bilhões de reais foram gastos pela formidável máquina administrativa que exige o atendimento dessa avalanche de causas?
Quanto tempo de trabalho foi empregado por advogados, juízes, litigantes e funcionários da Justiça para elucidar esses milhões de pendências anuais? Quanto tempo tiveram os lesados de esperar até ouvirem a sentença? Quantos apelos.... quantos ... etc., etc.
Talvez nunca ninguém tenha tentado fazer uma estatística. E, se o fez, deve ter colhido números de desmaiar.
Não é de espantar que a imagem da Justiça, malgrado o esforço colossal de juízes e funcionários, esteja continuamente se degradando.
Que diferença com a Justiça impregnada de espírito familiar e de velhas e sábias tradições da Idade Média!
Pode-se dizer da sociedade atual que ela se fundamenta sobre o salariado. No plano econômico, as relações de homem para homem reduzem-se às relações do capital e do trabalho.
Executar um trabalho determinado, receber em troca uma certa soma, tal é o esquema das relações sociais.
O dinheiro é o nervo essencial delas, pois com raras exceções uma atividade determinada se transforma de início em numerário, antes de se transformar novamente em objeto necessário à vida.
Para compreender a Idade Média, é preciso se afigurar uma sociedade vivendo de modo totalmente diverso, em que a noção de trabalho assalariado, e em parte até mesmo a do dinheiro, são ausentes ou secundárias.
O fundamento das relações de homem a homem é a dupla noção de fidelidade e proteção. Assegura-se a alguém seu devotamento, e em troca espera-se dele segurança.
Não se contrata sua atividade, tendo em vista um trabalho determinado com remuneração fixa, mas sua pessoa, ou antes sua fidelidade. Em retribuição, se oferece subsistência e proteção, no pleno sentido da palavra. Tal é a essência do liame feudal.
Durante toda a Idade Média, sem esquecer sua origem territorial, senhorial, esta nobreza teve uma conduta sobretudo militar.
É que, de fato, seu dever de proteção comportava de início uma função guerreira: defender seu domínio contra as invasões possíveis.
Apesar dos esforços em reduzir o direito de guerra privada — tais guerras foram mitigadas pela ação da Igreja, mediante a trégua de Deus e a quarentena — ele ainda subsistia, e a solidariedade familiar podia implicar a obrigação de vingar pelas armas as injúrias feitas a um dos seus.
Acrescenta-se ainda uma questão de ordem material. Detendo a principal, senão a única fonte de riqueza, que era a terra, apenas os senhores tinham a possibilidade de equipar um cavalo de guerra e de armar escudeiros e oficiais.
O serviço militar será pois inseparável do serviço de um feudo, e a fidelidade prestada pelo vassalo nobre supõe auxílio de suas armas, todas as vezes que for necessário. Este é o primeiro encargo da nobreza e um dos mais onerosos: a obrigação de defender o domínio e seus habitantes.
A espada diz: “É minha justiça e encargo guardar os clérigos da Santa Igreja e aqueles que produzem o alimento”.
Os mais antigos castelos, aqueles que foram construídos nas épocas de turbulência e invasões, trazem a marca visível dessa necessidade.
A aldeia e as habitações dos camponeses estão nos arredores da fortaleza, em cujo recinto toda a população irá se refugiar por ocasião de perigo, e onde ela encontrará auxílio e mantimentos em caso de sítio.
Das obrigações militares da nobreza decorre a maior parte dos seus costumes.
O direito de primogenitura vem, em parte, da necessidade de confiar ao mais forte a herança que ele deve garantir, muitas vezes pela espada.
A lei sálica se explica também por isso, pois só um homem pode assegurar a defesa de um castelo (donjon).
Assim pois, quando uma mulher se torna a única herdeira de um feudo, o suserano tem o dever de casá-la.
Eis por que a mulher apenas sucederá após seus filhos mais jovens, e estes após o primogênito.
Estes só receberão apanágios, e ainda assim muitos desastres ocorridos pelo fim da Idade Média tiveram por origem os demasiados apanágios deixados a seus filhos por João, o Bom. O poder foi para eles uma tentação perpétua, e para todos uma fonte de desordem durante a minoridade de Carlos VI.
Os nobres têm igualmente o dever de fazer justiça a seus vassalos de todas as condições e de administrar o feudo.
Trata-se precisamente do exercício de um dever, e não de um direito, implicando em responsabilidades bastante pesadas, pois cada senhor deve dar contas de seu domínio, não somente à sua linhagem, mas também a seu suserano.
Etienne de Fougères descreve a vida do senhor de um grande domínio como cheia de preocupações e de cansaços:
Longe de ser ilimitado, como geralmente se acreditou, seu poder é bem menor do que o de um industrial ou qualquer proprietário de nossos dias, porque ele jamais tinha a propriedade absoluta de seu domínio.
Dependia sempre de um suserano, e os suseranos, mesmo os mais poderosos, dependiam do rei. Em nossos dias, segundo a concepção romana, o pagamento de uma terra dá pleno direito sobre ela.
Na Idade Média não era assim. No caso de má administração, o senhor incorria em penas que podiam chegar ao confisco de seus bens.
Assim, ninguém governa com autoridade completa e não escapa ao controle direto daquele de quem ele depende. Essa repartição da propriedade e da autoridade é um dos traços mais característicos da sociedade medieval.
Valerão como um hino à glória do camponês as miniaturas das Très riches heures du Duc de Berry ou o Livre des prouffictz champestres, iluminado pelo bastardo Antoine de Bourgogne, ou ainda os pequenos quadros dos meses na fachada de Notre-Dame e em tantos outros edifícios.
Notemos que em todas estas obras de arte, executadas pela multidão ou pelo amador nobre, o camponês aparece na sua vida autêntica: removendo o solo, manejando a enxada, podando a vinha, matando o porco.
Haverá uma outra época, uma só, que possa apresentar da vida rural tantos quadros exatos, vivos, realistas?
Que individualmente determinados nobres ou determinados burgueses tenham manifestado desdém pelos camponeses, é possível e mesmo certo.
Mas isso não existiu em todas as épocas?
A mentalidade geral, contando com hábitos sarcásticos da época, tem muito nitidamente consciência da igualdade fundiária dos homens no meio das desigualdades de condição.
O jurista Philippe de Novare distingue três tipos de humanidade:
as “gentes francas”, isto é, “todos aqueles que tiverem franco coração; [...] e aquele que tiver coração franco, donde quer que tenha vindo, deve ser chamado franco e gentil, porque se é de um mau lugar e é bom, tanto mais honrado deve ser”.
As “pessoas de ofício” e os “vilões”, isto é, aqueles que não prestam serviço senão constrangidos pela força, “todos aqueles que o fazem são justamente vilões, quer fossem servos ou jornaleiros. [...] Fidalguia e valor de antepassados não faz senão prejudicar um mau herdeiro desonrado”.
Poderíamos citar grande número dessas proclamações de igualdade.
Será possível dizer, de modo mais geral, que uma pessoa que ocupou um lugar de primeiro plano nas manifestações artísticas e literárias de uma nação tenha podido ser por ela desprezado?
Sobre este ponto, como sobre tantos outros, confundiram-se as épocas.
Aquilo que é verdade para a Idade Média não o é para tudo aquilo a que chamamos o Antigo Regime.
A partir do fim do século XV produz-se uma cisão entre os nobres, os letrados e o povo.
Futuramente as duas classes viverão uma vida paralela, mas penetrar-se-ão e compreender-se-ão cada vez menos.
Como é natural, a alta sociedade drenará para si a vida intelectual e artística, e o camponês será banido da cultura como da atividade política do país.
Desaparece da pintura — salvo raras exceções, mas em todo caso da pintura em voga — da literatura, como das preocupações dos grandes.
O século XVIII já não conhecerá senão uma cópia completamente artificial da vida rural.
Que do século XVI até nossos dias o camponês tenha sido desprezado, pelo menos desdenhado e mal conhecido, não resta qualquer dúvida.
Mas também está fora de questão que na Idade Média ele teve um lugar de primeira ordem na vida do nosso país.
Na cena ao lado o ambiente é dos mais elevados.
Estamos na presença de um festim de gente rica e nobre.
Percebe-se a diferença.
A figura vestida de vermelho é o personagem de mais realce e está colocado num plano mais alto.
Ele está olhando para um outro que lhe está fazendo uma saudação pomposa.
Nas mesas do banquete há comerciantes ricos.
Na segunda imagem vemos uma reunião de banqueiros.
Um está ouvindo notícias de seus negócios; outro já fez o bom negócio e está guardando dentro da bolsa e anotando entradas e saídas.
Os bancos estavam naquele tempo apenas se organizando.
Outro banqueiro está contando dinheiro em cima da mesa e discute com o banqueiro de azul.
À direita um outro ainda vem fazer o pagamento.
O banqueiro está vestido com um tecido magnífico.
O banqueiro era sempre um plebeu; era um típico burguês, quer dizer habitante do burgo ou cidade.
Todos eles estão contentes.
O que está pagando eu não diria que está muito satisfeito, mesmo porque a função de pagar é menos alegre do que a de receber, mas positivamente não é nem um faminto nem um maltrapilho.
Cabe-nos o direito de aceitar sem contestação a lenda do camponês miserável, inculto (esta é uma outra história) e desprezado, que se impõe ainda em grande número dos nossos manuais de História?
Veremos que o seu regime geral de vida e de alimentação não oferecia nada que deva suscitar piedade.
O camponês não sofreu mais na Idade Média do que sofreu o homem em geral, em todas as épocas da história da humanidade.
Sofreu sim a repercussão das guerras, mas terão elas poupado os seus descendentes dos séculos XIX e XX?
Além disso, o servo medieval estava livre de qualquer obrigação militar, como a maior parte dos plebeus.
E o castelo senhorial era para ele um refúgio na desventura, a paz de Deus uma garantia contra as brutalidades dos homens de armas.
Sofreu a fome nas épocas de más colheitas, como da mesma forma sofreu o mundo inteiro, até que as facilidades de transportes permitiram levar ajuda às regiões ameaçadas.
Mesmo a partir dessa altura... Mas o camponês tinha a possibilidade de recorrer ao celeiro do senhor.
A única época realmente dura para o camponês na Idade Média — que também o foi para todas as classes da sociedade indistintamente — foi a dos desastres produzidos pelas guerras que marcaram o declínio da época.
Período lamentável de perturbações e de desordens, engendradas por uma luta fratricida durante a qual a França conheceu uma miséria que só se pode comparar à das guerras de religião, da Revolução Francesa ou do nosso tempo.
Bandos de plebeus devastando o país, fomes provocando revoltas e insurreições camponesas, e para cúmulo essa terrível epidemia de peste negra, que despovoou a Europa.
Mas isso faz parte do ciclo de misérias próprias da humanidade, e das quais nenhum povo foi isento. A nossa própria experiência basta largamente para nos informar sobre isso.
Terá o camponês sido o mais desprezado?
Talvez nunca o tenha sido menos, de fato, do que na Idade Média.
Não deve iludir-nos determinada literatura, em que o vilão muitas vezes está envolvido.
Não passa de testemunho do rancor, velho como o mundo, que sente o charlatão, o vagabundo, pela situação do camponês no domínio, cuja morada é estável, cujo espírito por vezes é lento, e cuja bolsa muitas vezes demora a abrir-se.
A isto se acrescenta o gosto, bem medieval, de zombar de tudo, inclusive daquilo que parece mais respeitável.
Na realidade, nunca foram mais estreitos os contatos entre o povo e as classes ditas dirigentes — neste caso, os nobres.
Contatos estes facilitados pela noção de laço pessoal, essencial para a sociedade medieval, e multiplicados pelas cerimônias locais, festas religiosas e outras, nas quais o senhor encontra o rendeiro, aprende a conhecê-lo e partilha a sua existência, muito mais estreitamente do que, nos nossos dias, os pequenos burgueses partilham a dos seus criados.
A administração do feudo obriga o nobre a ter em conta todos os detalhes da vida dos servos.
Nascimentos, casamentos, mortes nas famílias de servos entram em linha de conta para o nobre, como interessando diretamente o domínio.
O senhor tem encargos judiciários, donde para ele a obrigação de assistir os camponeses, resolver os seus litígios, arbitrar os seus diferendos.
Tem portanto em relação a eles uma responsabilidade moral, do mesmo modo que suporta a responsabilidade material do feudo em relação ao suserano.
Nos nossos dias o patrão de fábrica está liberto de qualquer obrigação material e moral relativamente aos operários, a partir do momento em que “passaram pelo caixa para receber o salário”.
Não o vemos abrir as portas da sua casa para lhes oferecer um banquete, por exemplo, na ocasião do casamento de um dos filhos.
No conjunto, uma concepção totalmente diferente da que prevaleceu na Idade Média.
Como disse Jean Guiraud, o camponês ocupa a ponta da mesa, mas é a mesa do senhor.
Poderíamos facilmente dar-nos conta disso examinando o patrimônio artístico que essa época nos legou, e constatando o lugar que o camponês nela ocupa.
Na Idade Média ele está em toda parte: nos quadros, nas tapeçarias, nas esculturas das catedrais, nas iluminuras dos manuscritos.
Em toda parte o encontramos como o mais corrente tema de inspiração.
É oportuno notar-se que o nobre está submetido às mesmas obrigações que o servo, porque também em caso algum pode ele alienar o seu domínio, ou separar-se dele de qualquer forma que seja.
Nas duas extremidades da hierarquia encontramos essa mesma necessidade de estabilidade e fixação, inerente à alma medieval, que produziu a França e, de uma maneira geral, a Europa ocidental.
Não é um paradoxo dizer que o camponês atual deve a sua prosperidade à servidão dos seus antepassados, pois nenhuma instituição contribuiu mais para o destino do campesinato francês.
Mantido durante séculos sobre o mesmo solo, sem responsabilidades civis, sem obrigações militares, o camponês tornou-se o verdadeiro senhor da terra.
Só a servidão poderia realizar uma ligação tão íntima do homem à gleba, fazendo do antigo servo o proprietário do solo.
Se permaneceu tão miserável a condição do camponês na Europa oriental — na Polônia e em outros lugares — é porque não houve esse laço protetor da servidão.
Nas épocas de perturbação, o pequeno proprietário responsável pela sua terra, entregue a si próprio, conheceu as mais terríveis angústias, que facilitaram a formação de domínios imensos.
Daí um flagrante desequilíbrio social, contrastando a riqueza exagerada dos grandes proprietários com a condição lamentável dos seus rendeiros.
Se o camponês francês pôde desfrutar até aos últimos tempos uma existência fácil, comparada à do camponês da Europa oriental, não o deve apenas à riqueza do solo, mas também e sobretudo à sabedoria das nossas antigas instituições.
Essas fixaram a sua sorte no momento em que tinha mais necessidade de segurança, e o subtraíram às obrigações militares, as quais pesaram depois mais duramente sobre as famílias camponesas.
As restrições impostas à liberdade do servo decorrem todas dessa ligação ao solo.
O senhor tem sobre ele direito de séquito, isto é, pode levá-lo à força para o seu domínio em caso de abandono, porque, por definição, o servo não pode deixar a terra.
Só é feita exceção para aqueles que partem em peregrinação.
O direito de formariage inclui a interdição de se casar fora do domínio senhorial quem se encontrar adscrito ou, como se dizia, “abreviado”.
Mas a Igreja não deixará de protestar contra esse direito que atentava contra as liberdades familiares, e que se atenuou de fato a partir do século X.
Estabelece-se então o costume de reclamar somente uma indenização pecuniária ao servo que deixava um feudo para se casar num outro.
Aí se encontra a origem desse famoso “direito senhorial” sobre o qual foram ditos tantos disparates, e que não significava nada além do seu direito de autorizar o casamento dos servos.
Na Idade Média tudo se traduz por símbolos, e o direito senhorial deu lugar a gestos simbólicos cujo alcance se exagerou.
Por exemplo, colocar a mão ou a perna no leito conjugal, donde o termo “direito de pernada”, por vezes empregado, que suscitou tantas interpretações deploráveis, além de perfeitamente erradas.
A obrigação sem dúvida mais penosa para o servo era a mão-morta: todos os bens por ele adquiridos durante a vida deviam depois da morte regressar para o senhor.
Por isso também essa obrigação foi reduzida desde muito cedo, e o servo ficou com o direito de dispor dos seus bens móveis por testamento (porque a sua propriedade passava de qualquer modo para os filhos).
Além disso, o sistema de comunidades silenciosas permitiu ao servo escapar à mão-morta, conforme o costume do lugar, já que ele podia formar com a família uma espécie de sociedade, como o plebeu, agrupando todos aqueles que pertenciam a um mesmo “pão e pote”.
Como a morte do seu chefe temporário não interrompia a vida da comunidade, continuava esta a desfrutar os bens de que dispunha.
Finalmente, o servo podia ser franqueado.
As franquias multiplicaram-se mesmo a partir do século XIII, já que o servo devia comprar a sua liberdade, quer em dinheiro, quer comprometendo-se a pagar um censo anual como o rendeiro livre.
Temos um exemplo na franquia dos servos de Villeneuve-Saint-Georges, dependente de Saint-Germain-des-Prés, por uma soma global de 1400 libras.
Esta obrigação do resgate explica sem dúvida por que razão as franquias foram muitas vezes aceitas de muito mau grado pelos seus beneficiários.
A ordenação de Luís X, o hutin, que em 1315 franqueou todos os servos do domínio real, deparou em muitos lugares com a má vontade dos “servos recalcitrantes”.
Quando foram redigidos os costumes no século XIV, a servidão só é mencionada nos de Bourgogne, Auvergne, Bourbonnais e Nivernais, e nos costumes locais de Chaumont, Troyes e Vitry. Em todos os demais havia desaparecido.
Algumas ilhotas de servidão muito moderada, que subsistiram aqui e ali, Luís XVI aboliu definitivamente no domínio real em 1779, dez anos antes do gesto teatral que foi a demasiado famosa noite de 4 de Agosto.
Ele convidou os senhores a que o imitassem, pois se tratava de uma matéria de direito privado sobre a qual o poder central não tinha o direito de legislar.
As atas mostram-nos, aliás, que os servos não tinham em relação aos senhores essa atitude de cães espancados, que demasiadas vezes se supôs.
Vemo-los discutir, afirmar o seu direito, exigir o respeito por antigas convenções e reclamar sem rodeios o que lhes era devido.
Pelo fim da Idade Média, a partir do século XII ou XIII, quando as guerras entre os feudos decaem, a Europa começa a conhecer uma relativa paz.
A ação dos cavaleiros andantes, no extermínio dos bandidos, acabou de desinfestar as estradas e o comércio começou a circular.
Ao mesmo tempo em que o comércio circula, as barreiras desses pequenos mundos se modificam.
E, concomitantemente, vão começando a formar-se aqui, lá e acolá, grandes cidades.
Vai surgindo nos vários reinos uma capital, o rei; e a figura do monarca se destaca.
Ele constitui uma corte, tudo caminha para a centralização.
E essa centralização vai do século XIII, numa marcha ascensional, até o século XVII e começo do XVIII, com Luís XIV na França.
E com reis que participaram um pouco do protótipo de Luís XIV, antes ou depois dele — como, por exemplo, o rei Felipe II, na Espanha, ou Pedro o grande e Catarina a grande, na Rússia etc. O que sucede então é que essa centralização transforma completamente o jogo das influências.
A corte de Luís XIV é paradigmática. Ela já não é a corte medieval.
O rei é o rei sol. Ele se considera o rei como se deve ser rei, o modelo perfeito e acabado do rei.
Uma nobreza, ao lado dele, que se considera e é tida por toda a Europa como modelo perfeito e acabado da aristocracia de salão.
Um conjunto de estadistas que a Europa reputa modelos perfeitos e acabados de estadistas do tempo.
Um conjunto de grandes damas que são o protótipo da elegância, da graça e da beleza feminina do século.
Até a cátedra sagrada entra nesse movimento, e aparece o grande orador sacro, como Bossuet.
E assim forma-se um centro, que é o centro modelar no qual se espelha toda a França, mas espelha-se também toda a Europa, em proporção maior ou menor.
Verifica-se então o fenômeno do afrancesamento da Europa.
Por toda parte vão ruindo as influências locais, os fatores característicos vão desaparecendo.
E aparece um centro dotado dos melhores técnicos, dos melhores especialistas em tudo, desde a arte de conversar até a arte de dirigir finanças, ou de dirigir exércitos, ou de ocupar a tribuna sagrada.
E este centro, imitado por todos, transforma a situação.
A vida, a propulsão social não vem mais da base para cima, mas vem do alto para baixo. É uma inversão da ordem medieval que pressagia maiores desastres.
A imposição de certos estilos e modos de ser de fora para dentro como sucede em shows atuais, vai transformando uma sociedade orgânica em massa
E essa orientação centralizadora, ao contrário do que parece, não cessa com a Revolução Francesa.
O Comité de Salut Publique teve uma influência centralizadora e uma soma de poderes muito maior que a de Luís XIV. Mas Napoleão teve uma soma de poderes maior que a do Comité de Salut Publique.
E em geral os historiadores e os juristas franceses estão de acordo em afirmar que um chefe de Estado francês de nossos dias tem, no fundo — é verdade que circunscrito pela lei — uma influência, uma capacidade de dirigir o corpo social muito maior que a de Luís XIV, no auge de sua glória.
Mudou o jogo de influências, passou-se da monarquia mais ou menos aristocrática para a democracia; nessa democracia, evidentemente, o rei passou a ser o povo.
E então, no mesmo centro dirigente, se passam as coisas de um modo um pouco diverso.
Em outros termos, há um conjunto de técnicos, há um conjunto de especialistas que disputam entre si a escolha da solução a ser dada aos problemas.
Eles são apoiados por sistemas de propaganda, têm a seu serviço a imprensa, o rádio, a televisão, o cinema, enfim, todos os meios comuns de propaganda. E, com isso, influenciam o eleitorado.
O eleitorado-rei decide a favor de uns ou a favor de outros, mas o impulso principal continua a vir da capital, de técnicos que afluíram para a capital, que se dissociaram dos respectivos centros de vida, que vivem da vida artificial da capital, que a partir da capital comandam a propaganda e obtêm, através das eleições, o mando necessário para realizar aquilo que desejam.
De maneira que, em última análise, a capital, com os seus valores cívicos, dirige de fora para dentro a sociedade; e os elementos regionais e locais vão cada vez mais perdendo a sua influência, perdendo a sua capacidade de movimentação.
O resultado dessa nova situação é a depauperação do homem contemporâneo. Cada um de nós tem a sensação de viver como um grão de areia isolado dentro da multidão.
Nós de tal maneira nos habituamos aos meios de propaganda — de tal maneira nos acostumamos a estímulos de fora de nosso espírito, de nossa mente, que nos oferecem material para pensarmos, para refletirmos etc. — que já se chegou à seguinte situação (para mim, a última palavra nessa matéria!): torcedores, em estádio de futebol, assistem à partida com o rádio ao ouvido, porque sem o auxílio de alguém que lhes diga o que está acontecendo (e que eles também estão vendo) não conseguem tomar uma atitude individual e própria em face do fato que se apresentou".
O Papa Pio XII estabeleceu magistralmente a diferença entre povo e massa na famosa radiomensagem de Natal de 1944:
As obrigações que ligam o vassalo a seu senhor levam à reciprocidade:
“O senhor deve tanta fidelidade e lealdade a seu homem como o homem a seu senhor” — diz Beaumanoir. Esta noção de dever recíproco, de serviço mútuo, se encontra muitas vezes em textos, tanto literários como jurídicos.
“O senhor deve mais reconhecimento a seu vassalo do que este a seu senhor” — observa Etienne de Fougères no seu “Livre des Manières”.
Philippe de Novare comenta em apoio dessa constatação: “Aqueles que recebem serviços e jamais o recompensam bebem de seus servos o suor, que lhes é veneno mortal ao corpo e à alma”.
De onde vem a máxima: “Ao bem servir convém recompensar”.
Exige-se da nobreza mais compostura e retidão moral que dos outros membros da sociedade.
Por uma mesma falta, a pena aplicada a um nobre será muito superior à de um plebeu. Beaumanoir cita um delito pelo qual a pena de um camponês é de 60 soldos, e a de um nobre de 60 libras, numa desproporção de 1 para 20.
Segundo os Établissements de Saint Louis, a falta pela qual um homem costumeiro — isto é, um plebeu — pagava 50 soldos de multa acarretava para um nobre o confisco de todos os seus bens móveis. Isto se encontra também nos estatutos de diversas cidades.
Os de Pamier fixam assim a tarifa de multas em caso de roubos: vinte libras para o barão, dez para o cavaleiro, cem soldos para o burguês, vinte soldos para o vilão.
A nobreza é hereditária, mas pode também ser adquirida, seja como retribuição de serviços, seja pela aquisição de um feudo nobre. Foi o que aconteceu em grande escala pelos fins do século XIII.
Numerosos tinham sido os nobres mortos ou arruinados nas grandes expedições, então muitos tornaram-se nobres, fato que deu origem a uma reação da nobreza.
A cavalaria enobrecia aquele a quem ela era conferida. E com o correr dos tempos surgiram os títulos de nobreza, que na verdade foram distribuídos muito parcimoniosamente.
Podia-se adquirir a nobreza, mas também podia-se perdê-la por decadência, como decorrência de uma condenação infamante.
A vergonha de uma hora apaga bem quarenta anos de honra — dizia-se. Ela se extinguia ainda pela derrogação, quando um nobre confessava ter exercido um ofício plebeu ou um tráfico qualquer.
Com efeito, era proibido sair do papel que lhe fora conferido. Ele não devia mais procurar se enriquecer, assumindo cargos que lhe poderiam fazer negligenciar aqueles aos quais dedicou sua vida.
Entretanto, excetuavam-se dos ofícios plebeus aqueles que, necessitando de recursos importantes, só podiam ser executados pelos nobres. Por exemplo, a vidraria ou a administração de forjas.
O tráfico marítimo era permitido aos nobres porque exige, além de capitais, um espírito de aventura, que não seria conveniente coibir.
No século XVIII Colbert alargará os campos de atividade econômica da nobreza, para dar mais impulso ao comércio e à indústria.
A nobreza é uma classe privilegiada. Seus privilégios são, antes de mais nada, honoríficos: direitos de precedência, etc. Alguns decorrem de encargos que a nobreza possui.
Assim, apenas o nobre tem direito à espora, ao cinturão e ao estandarte, o que lembra que originalmente só os nobres tinham possibilidade de equipar um cavalo de guerra.
Ao lado disso ele goza de exceções, que no princípio eram comuns a todos os homens livres. Tal é a exceção da “taille” (imposto sobre o vinho) e de certos impostos indiretos, cuja importância, nula na Idade Média, não cessou de crescer no século XVI, e sobretudo no século XVIII.
A nobreza possui direitos precisos e substanciais, que são todos aqueles decorrentes do direito de propriedade: direito de arrecadar as rendas, direito de caça e outros.
Os tributos e as rendas pagos pelos camponeses são apenas o aluguel da terra sobre a qual tiveram a permissão de se instalar, ou que seus ancestrais julgaram bom abandonar a um proprietário mais poderoso que eles mesmos.
Arrecadando suas rendas, os nobres estavam exatamente na condição de um proprietário de imóveis recebendo seus aluguéis.
A longínqua origem desse direito de propriedade se apagou pouco a pouco, e na época da Revolução Francesa o camponês se julgou o legítimo proprietário de uma terra da qual era locatário desde muitos séculos.
O mesmo aconteceu com relação a esse famoso direito de caça, que comumente é apontado como sendo um dos abusos mais berrantes de uma época de terror e de tirania.
O que de mais legítimo para um homem que aluga um terreno a um outro, do que reservar para si o direito de aí caçar?
Proprietário e arrendatários, ambos sabem a que ponto devem se ater, no momento em que estipulam obrigações recíprocas, e este é um aspecto essencial.
O senhor não deixa de estar sobre sua terra, quando caça perto da habitação de um camponês.
Que alguns deles tenham abusado desse direito e “esmigalhado com o casco de seus cavalos colheitas douradas dos camponeses” — para exprimir-nos como os manuais de ensino primário — é coisa possível, ainda que impossível de confirmar.
Mas não se pode conceber que eles o tenham feito sistematicamente, pois boa parte das suas rendas eram resultantes de quotas nas colheitas, e portanto o senhor era diretamente interessado em que as colheitas fossem abundantes.
A questão é idêntica com relação às “banalidades”. O forno ou a prensa senhorial são, em sua origem, comodidades oferecidas aos camponeses, em troca das quais era normal receber-se uma retribuição.
Tudo como atualmente se faz em certas comunas, ao alugar-se ao camponês uma debulhadeira ou outros instrumentos agrícolas.
Dir-se-ia um rei. Assim parece indicar a touca na cabeça, o manto de arminho, o fato de ele estar sentado num trono, usando um traje azul pomposo e um homem se inclina diante dele e este também.
Entretanto, não é um rei.
O internauta sabe quem é esse aí?
É um juiz trabalhista!
Patrões e operários reuniam-se em associações profissionais para resolver seus problemas. Essas associações tinham o nome de corporações de ofício, ou guildas.
Naquela época não havia lei trabalhista como nós a conhecemos hoje: cada profissão reunida na respectiva corporação ditava as normas e regras que guiavam o trabalho deles.
Mas não era no sistema de deputados que se reúnem numa Assembléia ou Câmara e ditam leis que ficam valendo para todo o mundo, por exemplo, para todo o Brasil.
Essas leis feitas lá longe muitas vezes são recebidas como mais uma forma de interferência do Estado na vida dos cidadãos, ou como modelos de desconhecimento da vida real e dos problemas da categoria.
O verdadeiramente determinante era o costume: quer dizer os fabricantes de móveis, ou de salsichas tinham certos costumes para trabalhar, produzir, vender, então, pronto!
Esse costume ‒ se não era imoral, quer dizer, se não ia contra a Lei de Deus e contra o Direito Natural ‒ virava lei efetiva.
O conjunto legal assim definido é conhecido como Direito Consuetudinário.
Por vezes, o costume era transcrito no papel. Outras vezes ficava na tradição oral.
Obviamente, podiam aparecer litígios. Então as corporações de ofício escolhiam seus juízes que julgavam segundo esses códigos profissionais.
Havia assim tribunais diretamente ligados à categoria para resolver as questões trabalhistas com profundo conhecimento de causa.
Sempre eleito juiz um membro da corporação. E, para julgar as questões trabalhistas ele vestia, neste lugar, nesta cidade, com esta roupa e sentava nesse trono.
Vagamente os juízes ainda conservam certas aparências nessa linha como a toga e por vezes sentam numa poltrona mais elevada.
Na iluminura a discussão versa sobre o método de trabalho empregado pelos querelantes: o juiz esta vendo eles agirem para depois emitir sentença.
O juiz presta atenção num e depois no outro. Os dois são operários também.
Veja-se com que esplendor se vestia um juiz plebeu, um juiz de profissão trabalhista, e a respeitabilidade com que ele era considerado e respeitado.
Isso é um elemento indispensável para ter garantia de uma Justiça bem feita, neste vale de lágrimas.
Comparar é um dos melhores meios de analisar.
Se queremos, pois analisar nossa época, é legítimo que a comparemos.
E com o que? Com o futuro, ainda incógnito, é impossível, pois objetos desconhecidos não podem servir de termo de comparação.
Logo, a comparação só pode ser com o passado.
Uma das mais notáveis utilidades da História consiste precisamente nisto: apresentar-nos uma fiel imagem do passado, a fim de que melhor conheçamos o presente.
E fazer tal comparação não é ser saudosista. É ser claro, prático, direto no nobre exercício de espírito que é a análise.
As habitações populares atuais, parecidas com as que existem em tantas e tantas cidades modernas, no mundo inteiro, constituem um grupo de 3.500 residências de concreto, com cinco quartos cada.
Que tesouros de técnica e ciência em tudo isto!
O concreto é um material de construção resultante de uma longa evolução prática e científica.
Em cada uma destas vivendas, a ciência tornou possíveis as vantagens da água corrente, da luz elétrica, do gás, o passatempo do rádio e da televisão, o conforto do telefone.
Deste ponto de vista, que imensa transformação em confronto com as casas antigas de Warwick, as deficiências higiênicas, as dificuldades de vida, e sob alguns pontos de vista o desconforto físico que nelas sentiria por certo qualquer habitante de cidade contemporânea!
Entretanto, de outro lado, que desconforto psíquico nestas moradias modernas, com sua estandardização desumana, a monotonia e a severidade de suas massas retangulares e sombrias, que fazem de cada vivenda uma carranca, que desabrigo atrás das paredes destas casas, abertas a todos os olhos, a todos os ruídos, quiçá a todos os ventos!
Compare-se a esta frieza de linhas e de substância – nada mais “frio” que o cimento – o recolhimento, o aconchego, a harmonia das casas velhas de Warwick.
Ali, cada uma das casas parece considerar o transeunte com um plácido sorriso impregnado de bonomia familiar, e conter em si o calor de uma vida doméstica animada e rica em valores morais.
Casas simples, despretensiosas, e agradáveis de se ver, imagem da própria existência quotidiana de seus habitantes.
Casas obedecendo a um mesmo estilo, mas tendo cada uma sua nota de originalidade, discreta e vivaz.
Aproximados os termos da comparação, a conclusão é lógica.
Quanto ao conforto do corpo, podemos estar mais bem servidos com as residências do tipo moderno – pelo menos quando têm cinco bons quartos como estas.
Mas do ponto de vista do conforto da alma, quanto perdemos!
Seria possível harmonizar num estilo novo ambos os confortos, da alma e do corpo?
O estilo é muito menos produto de um homem, ou de uma equipe de homens, do que de uma sociedade, uma época, uma civilização.
Não cremos que este estilo apareça sem que previamente o mundo de hoje se tenha recristianizado.
E é para preparar este mundo novo fundamentalmente católico, que olhamos com amor estas lembranças do passado cristão de nossa civilização.
Uma coisa magnífica na Idade Média é o contraste entre, de um lado, os remansos e de outro lado a atividade, a luta e até a aventura.
Nunca houve tanta atividade, tanta luta, tanta aventura como quando houve remanso.
As ruas das cidades da Idade Média viviam repletas, borbulhando de atividade.
Todos os andares térreos com comércios, anúncios, gente gritando para vender mercadorias, falando alto, brigaria.
As ruas eram movimentadíssimas.
Mas nas casas que bordejavam as ruas, de um lado e de outro, logo na primeira sala se estava psicologicamente a mil léguas da rua.
Não eram como as casas de hoje que têm um janelão que dá para a rua e a pessoa no quarto de dormir se sente na rua.
Mas eram aquelas casas de paredes grossas ‒ parede grossa tem um efeito psicológico tremendo ‒ com umas janelas com onde o peitoril é larguíssimo, com banquinho de um lado e de outro para colocar almofada.
Podemos imaginar uma família sentada de um e outro lado da janela para aproveitar a luz que entra, e lendo um livrão.
E um jarrozinho de flor ainda no peitoril da janela.
Umas tulipas, uma coisa qualquer iluminada pela luz que entra, e a rua psicologicamente a léguas.
Os vidros das janelas eram tipo fundo de garrafa, de maneira que o ambiente da casa já ressumia intimidade a poucos centímetros da rua onde está havendo toda aquela barulheira.
Depois, noites calmas e muito recolhidas.
Os bandidos prestavam este serviço: todo mundo tinha medo de sair por falta de iluminação e por causa deles.
Então, fora ruge o perigo, mas dentro, as casas têm portas com dobradiças de metal e trancas aferrolhadas.
De maneira que a pessoa ouve lá fora os bandidos e o guarda que vai correndo atrás deles, se sentido inteiramente seguro em casa.
Dentro, cada um se sente aconchegado, com um carapução e bebendo um chá de losna, com pantufas, junto á lareira que está acesa, enquanto um qualquer vai lendo a história dos antepassados, mesmo nas famílias plebeias. Ou lendo o Evangelho e a vida dos Santos.
Tem-se aquela sensação de tranquilidade...
No silêncio da noite, o guarda passa cantando canções religiosas para avisar todo mundo que ele está por perto...
Eu aprendi em menino uma canção em alemão que dizia:
Tudo isto, ouvido no isolamento da casa onde mora muita gente, e gente intimamente imbricada pela solidariedade familiar, dá uma atmosfera de aconchego, de calor, de placidez, que é propriamente o remanso dentro da vida familiar.
É um remanso gerado pela reta vida estática, e não é uma paradera de morte.
Todos os acontecimentos que atingem a família real, ou apenas a família senhorial do local — nascimentos, casamentos, etc. — são ocasião para distrações e festividades.
Também as feiras comportam a sua dose de diversões.
É nessas ocasiões que os jograis exibem os seus talentos, desde os que recitam fragmentos de canções de gesta ao som do alaúde ou da viola, até aos simples lutadores, que com as suas carantonhas, acrobacias e malabarismos atraem um círculo de pacóvios.
Por vezes, tais antepassados de Tabarin efetuam pantominas, mostram animais inteligentes ou fazem equilíbrio sobre uma corda esticada a alturas impressionantes.
Depois do espetáculo, seja de que gênero for, a distração preferida na Idade Média é a dança. Não há banquete que não seja seguido por um baile.
Danças dos donzéis nos castelos, carolas aldeãs, rondas em torno da árvore de maio. Nenhum passatempo é mais apreciado, sobretudo pela juventude, e os romances e poemas fazem-lhe frequentes alusões.
Aprecia-se a mistura de cantos e de danças, e certos refrães servem de pretexto para bailar e cantarolar, tal como as fogueiras de São João para saltar e fazer rondas.
Também as competições desportivas possuem os seus adeptos: lutas, corridas, saltos em altura e em comprimento, tiro ao arco, são objeto de concursos nas aldeias, entre os burgos e também entre os pajens e escudeiros que compõem a corte de um senhor.
A caça, ocasião de festins e de regozijo, permanece o desporto favorito. Bem entendido, justas e torneios são as principais atrações dos dias de festa ou de grandes recepções.
As crianças, como em todas as sociedades do mundo, imitam nos seus jogos os dos adultos, ou fazem intermináveis jogos de escondidas e de malha.
Os divertimentos de interior não faltam, sobretudo o xadrez.
Durante as cruzadas era jogado com fervor, tanto no exército cruzado como no sarraceno, e são numerosos sobre ele os tratados manuscritos existentes nas nossas bibliotecas.
É sabido que o Velho da Montanha, terrível senhor dos Assassinos, presenteou São Luís com um magnífico tabuleiro de marfim e ouro.
Menos sábios os jogos de mesas, como damas ou gamão, que tinham também os seus adeptos.
Eram sobretudo os dados que faziam furor. Vadios e jograis arruinavam-se com eles.
Rutebeuf fez mais de uma vez essa amarga experiência, e conta em termos patéticos as esperanças incessantemente iludidas e o despertar angustioso dos infelizes jogadores arruinados.
Joga-se com os dados também na casa real.
Como é frequente o uso de imprecações nesta espécie de jogos, as autoridades tomam medidas contra os blasfemos.
Em Marselha, aqueles que tinham esse mau hábito eram mergulhados por três vezes num fosso lodoso, próximo do Vieux-Port.
Puniam-se igualmente os que utilizavam dados viciados ou faziam batota de qualquer outro modo.
As crianças jogavam com os ossinhos.
Mais distintos e praticados na sociedade cortês eram os diversos jogos de espírito: adivinhas, anagramas, pedaços rimados.
Christine de Pisan deixou-nos Jogos para vender, pequenas peças improvisadas plenas de encanto e de poesia ligeira, no gênero de Vendo-vos o meu cestinho.
A organização dos lazeres é de base religiosa. Todo feriado é dia de festa, e toda festa começa pelas cerimônias do culto, frequentemente longas e sempre solenes.
Prolongam-se em espetáculos que, dados primitivamente na própria igreja, não tardaram a ser deslocados para o adro.
São as cenas da vida de Cristo, das quais a principal, a Paixão, suscita obras-primas redescobertas pela nossa época.
A Virgem e os santos inspiram também o teatro, e toda a gente conhece o Miracle de Théophile [Milagre de Teófilo], que teve uma voga extraordinária.
São espetáculos essencialmente populares, com o povo por atores e por auditório.
E o auditório é ativo, vibrando a um pequeno pormenor dessas cenas que evocam sentimentos e emoções de uma qualidade muito diferente das do teatro atual, uma vez que não apenas o intelecto ou a sentimentalidade entram em jogo, mas também crenças profundas, capazes de transportar esse mesmo povo até às costas da Ásia Menor, por apelo de um Papa.
Como sempre, é parte integrante a nota paródica, levada muito longe.
Vai-se ao ponto de subir ao púlpito para debitar gracejos apimentados, com ditos dos mais picantes por altura dos “sermões alegres”.
Nos nossos dias essas excentricidades fariam escândalo, mas os clérigos não veem mal nenhum, e galhardamente tomam parte nelas.
Não existe apenas o teatro propriamente religioso, e sobre as bancadas levantadas na praça representam-se frequentemente farsas e sotias, ou ainda peças de assuntos romanescos ou históricos.
Quase todas as cidades possuem a sua companhia teatral, dentre as quais ficou célebre a dos clérigos da Basoche, em Paris.
Os festejos públicos têm também o seu lugar ao lado das festas da Igreja.
São por vezes magníficos cortejos, que desfilam pelas ruas por ocasião das assembleias e cortes gerais convocadas pelos reis, e se realizam numa ou noutra das suas residências — em Paris, Orleans — fazendo lembrar os campos de março e campos de maio, para os quais Carlos Magno convocara a nobreza do país em Poissy ou Aix-la-Chapelle.
Nessas ocasiões a corte de França, tão simples em geral, compraz-se numa certa ostentação.
Para as entradas de reis ou de grandes vassalos nas cidades, estas são decoradas com todo o fausto imaginável: tapeçarias estendidas ao longo das paredes, casas ornadas de folhagens e de verdura, ruas juncadas de flores.
Assim acontece nomeadamente por ocasião da coroação de um rei.
As cidades por onde ele passa após as cerimônias de Reims apressam-se a prestar-lhe uma recepção solene, e essa recepção nada tem de rígido nem de pomposo.
É acompanhada de cortejos grotescos, nos quais saltimbancos e folgazões de profissão, misturados com o público, fazem mil números que pareceriam incompatíveis com a majestade real.
Só se decidiu suprimir essas festas e “palhaçadas do tempo de antanho” por ocasião da entrada de Henrique II em Paris.
Eram ocasião de munificências por vezes inauditas, como fontes jorrando vinho, sobretudo sob o reino dos Valois.
Preparavam-se para elas cozinhas ambulantes, sobre as quais as carnes se amontoavam em enormes espetos.
Foi na mesma época que se tomou gosto pelas mascaradas ou bailes de máscaras, um dos quais ficou tragicamente na memória sob o nome de Bal des ardents (Baile dos ardentes).
O jovem rei Carlos VI usava com mais quatro companheiros um disfarce de selvagem, feito de estopa besuntada com pez e coberto de penas.
Tendo o grupo se aproximado imprudentemente de uma tocha, o fogo ateou-se ao seu traje, e ele teria morrido se não fosse a presença de espírito da duquesa de Berry, que o envolveu nas pregas do seu manto, abafando assim as chamas.
O perigo do qual acabava de escapar não deixou de influir sobre o cérebro já fraco do infortunado monarca, e sobre a enfermidade que o iria atingir.
O ritmo da jornada de trabalho varia muito na Idade Média, segundo as estações.
É o sino da paróquia ou do mosteiro vizinho que chama o artesão à oficina e o camponês aos campos, e as horas das trindades mudam com a duração do dia solar.
Em princípio, as pessoas deitam-se e levantam-se ao mesmo tempo que o Sol.
No Inverno o trabalho começa por volta das oito ou nove horas, para terminar às cinco ou seis.
No verão a jornada começa a partir das cinco ou seis da manhã, para só terminar às sete ou oito da noite.
Com as duas interrupções para as refeições, delimitam-se jornadas de trabalho que variam de oito a nove horas no inverno, e no verão até doze ou treze, por vezes quinze horas.
É este ainda o regime habitual das famílias camponesas.
Mas isto não se verifica todos os dias.
Em primeiro lugar, pratica-se aquilo a que se chama a semana inglesa.
Todos os sábados, e nas vésperas dos feriados, o trabalho cessa à uma hora da tarde em certos ofícios; e para todas as pessoas nas vésperas, quer dizer, o mais tardar por volta das quatro horas.
Aplica-se o mesmo regime às festas que não são feriados, isto é, uma trintena de dias por ano, tais como o dia de Cinzas, das Implorações, dos Santos Inocentes, etc.
Repousa-se igualmente na festa do padroeiro da confraria e da paróquia, além de feriado completo no domingo e nos dias de festas obrigatórias.
As festas são muito numerosas na Idade Média: de trinta a trinta e três por ano, segundo as províncias.
Às quatro festas que conhecemos hoje em dia em França acrescentavam-se não só o dia de Finados, a Epifania, as segundas-feiras de Páscoa e de Pentecostes, e três dias na oitava do Natal.
Numerosas outras festas passam mais ou menos desapercebidas atualmente, tais como Purificação, Invenção e Exaltação da Santa Cruz, Anunciação, São João, São Martinho, São Nicolau, etc.
O calendário litúrgico regula assim todo o ano, introduzindo grande variedade, tanto mais que se dá a estas festas muito mais importância do que nos nossos dias.
É pelas datas das festas que se mede o tempo, e não pelos dias do mês. Fala-se do “Santo André”, e não de 30 de novembro, e diz-se três dias depois do São Marcos, de preferência a 28 de abril.
Em sua honra são igualmente preteridas exigências de ordem social, tais como as da justiça, por exemplo.
Os devedores insolúveis, aos quais é designada uma residência forçada — regime que faz lembrar a prisão por dívidas, embora sob uma forma mais doce — podem abandonar a prisão e ir e vir livremente da Quinta-feira Santa até a terça-feira de Páscoa, do sábado à terça-feira de Pentecostes, da véspera de Natal até a Circuncisão.
Estas são noções que nos é difícil hoje em dia compreender perfeitamente.
No total, havia cerca de noventa dias por ano de feriados completos, com setenta dias e mais de feriados parciais, ou seja, cerca de três meses de férias repartidas ao longo do ano, o que garantia uma variedade inesgotável na cadência do trabalho.
Em geral as pessoas queixavam-se mesmo, como o sapateiro de La Fontaine, de ter demasiados dias feriados.
Os instrumentos de trabalho são sensivelmente os mesmos de que nos servimos até ao século XIX, antes do desenvolvimento do maquinismo e da motorização da agricultura.
É necessário contudo mencionar que o carro de mão, cuja invenção uma tradição bem estabelecida atribui a Pascal, já existia na Idade Média, em tudo semelhante àquele de que nos servimos atualmente.
É possível ver manuscritos do século XIV cujas iluminuras mostram trabalhadores transportando pedras ou tijolos em carros de mão, dos quais sustentam um dos braços por meio de uma corda passada sobre o ombro, para poderem transportar mais facilmente a carga. O processo ainda é usado pelos nossos operários.
Devem-se várias invenções à Idade Média, e a sua importância tornou-se demasiado grande com o andar dos tempos, não admitindo que sejam passadas em silêncio: a albarda (jugo) dos cavalos, por exemplo.
Até então a atrelagem concentrava todo o esforço sobre o peito do animal, de tal modo que uma carga um pouco mais importante produzia o risco de sufocação.
Foi no decurso do século X que apareceu a engenhosa ideia de atrelar os animais de carga de modo a que fosse o corpo inteiro a suportar o peso e esforço requeridos.
Esta inovação deveria introduzir uma profunda renovação dos costumes, pois a tração humana havia sido até então superior à animal (Cf. Lefèbvre des Noettes, L'attelage à travers les âges, Paris, 1931).
Ao inverter a ordem das coisas, tornava-se fácil e possível na prática a supressão da escravatura, necessidade econômica da Antiguidade.
A Igreja tinha lutado para que o escravo fosse considerado como um homem e para que os direitos da pessoa humana lhe fossem reconhecidos, e isso constituía já uma revolução social nos costumes.
Essa revolução foi definitiva a partir do dia em que cavalos e burros se encarregaram de uma parte do trabalho humano.
O mesmo se deu com a invenção do moinho hidráulico, depois o moinho de vento, que deveria proporcionar um passo considerável à humanidade, suprimindo a imagem clássica do escravo atrelado à mó.
De alcance menos profundo, mas de incontestável comodidade, o processo que permite a uma viatura girar facilmente sobre si própria, graças ao dispositivo que torna as duas rodas da frente independentes das rodas de trás, não deveria contribuir menos para o progresso e o conforto.
Basta pensar no espaço que devia ser necessário para virar os grandes carros carregados de cereais ou de forragem, e nos atropelos daí resultantes.
É mais que certo que estas invenções tiveram mais efeito do que outras sobre o bem-estar da arraia-miúda, contribuindo sem sobressaltos nem despesas para melhorar eficazmente a sua sorte.
A estas invenções, que deviam modificar radicalmente as condições do trabalho humano, é preciso acrescentar as da bússola e da barra do leme, não menos importantes na história do mundo.
Os progressos da navegação foram por elas decuplicados, o que em parte explica essa intensa circulação a que se assiste no século XIII.
O que surpreende nos trajes da Idade Média é a cor. O mundo medieval é colorido, e o espetáculo da rua devia ser então um encantamento para os olhos.
Perante um cenário de fachadas pintadas e de tabuletas rutilantes, o movimento desses homens e mulheres vestidos de tons vivos, contrastando com a túnica negra dos clérigos, o burel castanho dos irmãos mendigantes e a brancura extrema de uma coifa.
Não é possível no mundo moderno imaginar uma tal festa de cores, a não ser nos conhecidos desfiles na Inglaterra por ocasião do casamento de um príncipe e a coroação de um rei.
Ou então em certas cerimônias eclesiásticas, como as que se desenrolam no Vaticano.
Não se trata apenas de indumentárias de luxo, pois os simples camponeses vestem-se com cores claras, vermelhas, ocres, azuis.
A Idade Média parece ter tido horror dos tons sombrios, e tudo o que nos legou — frescos, miniaturas, tapeçarias, vitrais — testemunha essa riqueza de colorido tão característica da época.
Não se deve contudo exagerar o pitoresco ou a excentricidade do traje medieval.
Alguns pormenores, que associamos inevitavelmente aos quadros do tempo, só excepcionalmente fizeram parte da indumentária.
Os sapatos de ponta revirada, por exemplo, estiveram na moda durante meio século, não mais, no decorrer do século XV, que assistiu a não poucos exageros vestimentares.
Charles d'Orléans critica os “gorgias” — jovens elegantes que usam mangas recortadas, com fenda lateral, que exibem dobras impressionantes.
Do mesmo modo, a coifa longa e pontiaguda, irresistivelmente evocada pela palavra “castelã”, foi muito menos usada do que a coifa quadrada ou arredondada, que enquadra o rosto e é muitas vezes acompanhada de uma fita sob o queixo, moda corrente no século XIV.
De modo geral, as mulheres da Idade Média usam roupas que seguem a linha do corpo, com um busto muito justo e amplas saias de curvas graciosas.
O corpete abre-se frequentemente sobre a chainse ou camisa de tecido, e as mangas são por vezes duplas, detendo-se as primeiras (as da sobreveste ou traje de cima) nos cotovelos, e as de baixo, de tecido mais ligeiro, indo até aos pulsos.
O pescoço é sempre bem destacado, enquanto as saias arrastam pelo chão, presas por um cinto onde por vezes sobressai uma fivela de joalheria.
O traje masculino quase não se distingue do feminino, pelo menos nos primeiros séculos da Idade Média, mas é mais curto. O calção deixa ver as meias, e por vezes as bragas ou calções.
No decurso do século XII, sob a influência das cruzadas, adotam-se roupas compridas e flutuantes, moda vivamente censurada pela Igreja como sendo efeminada.
Os camponeses usam uma espécie de romeira com capuz, e os burgueses cobrem a cabeça com um carapuço de feltro ou de tecido pregueado.
São muito apreciadas as peles, desde o arminho reservado aos reis e príncipes de sangue, a marta ou o esquilo, até às simples raposas e carneiros, dos quais os aldeões confeccionam sapatos, gorros e casacos compridos.
No século XV, grandes senhores como o duque de Berry gastarão fortunas para comprar peles preciosas, e é também nessa época que o traje se complica, os calções se tornam estreitos e justos, a vasquinha exageradamente curta e franzida na cintura, e os seus ombros acolchoados.
A roupa de baixo existe desde o início da Idade Média, e o exame das miniaturas mostra que é usada tanto pelos camponeses como pelos burgueses.
Havia por toda parte, em França, cânhamos cuja fibra era fiada e tecida em casa, fornecendo um belo tecido resistente. Em contrapartida a roupa de noite não existe, e o seu uso só muito tarde é introduzido.
Circula em toda a França uma grande variedade de tecidos para a indumentária, através das grandes feiras.
Vendem-se nas cidades mediterrânicas todas as especialidades da indústria têxtil das Flandres e do norte da França: tecidos de Châlons, estamenha forte de Arras, lençóis de lã de Douai, de Cambrai, de Saint-Quentin, de Metz, panos vermelhos de Ypres, estanforts da Inglaterra, tecidos finos de Reims, feltros e capas de Provins, sem contar especialidades locais como a brunette de Narbona e os panos cinzentos e verdes de Avignon.
O comércio das cidades do litoral, Gênova, Pisa, Marselha, Veneza, permitia a importação dos produtos exóticos da África do Norte, e mesmo da Índia e da Arábia.
Alguns registros de mercadores que freqüentavam a feira da Champagne são tão sugestivos como uma página das Mil e uma noites: panos de ouro de Damasco, sedas e veludos de Acra, véus bordados da Índia, algodões da Armênia, peles da Tartária, couros e cordovões de Tunes ou de Bougie, peles trabalhadas de Oran e de Tlemcen.
A seda e o veludo foram durante muito tempo apanágio da nobreza, sendo os nobres os únicos suficientemente ricos para poderem adquiri-los.
Tudo isto era objeto dos presentes dos príncipes. Em ocasiões de grande regozijo eles distribuem gostosamente ao seu séquito, independentemente do grau, trajes mais ou menos suntuosos.
Mas o luxo excessivo não foi característico da realeza capetiana. A corte só se tornou magnífica sob os Valois, e sobretudo com os príncipes apanagiados — duques de Berry, Borgonha e Anjou.
É sabido, no entanto, que Luís, o Jovem, São Luís e Filipe Augusto se faziam notar pela sobriedade do traje, frequentemente mais simples que o dos seus vassalos.
No que respeita ao traje militar, cometeria um erro quem imaginasse o cavaleiro medieval sob as pesadas armaduras complicadas que se veem nos nossos museus.
Elas não aparecem antes do fim do século XIV, quando as armas de fogo requerem um aparelho defensivo aperfeiçoado.
Nos séculos XII e XIII, a armadura consiste essencialmente na cota de malha, que desce até pouco acima do joelho; e no elmo, pesado e maciço a princípio, que se aperfeiçoa e suaviza depois com viseiras e fitas sob o queixo, móveis e com nasal e frontal.
Para atenuar o brilho do lorigão ou cota de malha, passava-se uma sobreveste de tecido, pano fino ou outro. As grevas e esporões completavam a farpela.
Não é possível fazer melhor ideia da indumentária de guerra da época do que através da bela estátua do Cavaleiro de Bamberg, obra-prima de harmonia e máscula simplicidade.
Mas é necessário um esforço suplementar para reconstituir o espetáculo deslumbrante que deviam apresentar os exércitos de então, com essa multidão de cascos, lanças e espadas chamejando ao sol, a ponto de a sua reverberação ter sido muitas vezes uma causa de derrota para aqueles que se encontravam desfavoravelmente orientados.
Podem-se conceber os gritos de admiração arrancados aos cronistas por essas hostes rutilantes, com as suas bandeirolas e estandartes, os cavalos carapaçonados, as sedas brilhantes abrindo-se sobre as cotas de aço, cada corte agrupada em torno do seu senhor e usando as suas cores.
De fato é na mesma época, em princípios do século XII, que aparece o brasão. Os termos e a maior parte das peças foram tirados do oriente árabe, mas o costume generalizou-se rapidamente na Europa.
Foi expandido pela prática dos torneios, pois para seguir a evolução dos cavaleiros em campos frequentemente muito amplos, os espectadores se fixavam nas suas armas, como hoje nas cores de um jóquei.
Com uma voga hoje renovada, o brasão faz parte integrante da vida medieval, traduzindo sob uma forma articulada a divisa de um senhor ou de uma família.
É ao mesmo tempo grito de guerra e sinal de aliança. É sabido que cada cor, ou antes cada esmalte, tem a sua significação, como cada móvel a que está aposto: o azul é símbolo de lealdade; o goles, de coragem; o areia, de prudência; e o sinople, de cortesia.
Dos dois metais, a prata significa pureza, e o ouro o ardor e amor. O brasão foi-se complicando ao longo dos séculos, mas desde o seu aparecimento constitui uma ciência e uma espécie de linguagem hermética.
Sob essa forma rica e colorida, que tanto apraz à Idade Média, traduzia todo o feixe de tradições e de ambições que compõe a personalidade moral de cada corte.
Uma lenda tenazmente arraigada fez do homem da Idade Média um perpétuo morto-de-fome, a ponto de se poder perguntar como é que uma raça subalimentada durante oito séculos e, o que é mais, periodicamente devastada pelas guerras, fomes e epidemias conseguiu sobreviver e produzir ainda rebentos razoavelmente vigorosos.
Em grande parte o erro provém de má interpretação dos termos então em uso.
É exato que na Idade Média as pessoas se alimentavam de ervas e raízes — mas sempre assim foi, pois se designa então por erva tudo o que cresce sobre a terra: couves, espinafres, alfaces, alhos-porros, acelgas, etc.
E por raiz se entende tudo o que cresce dentro da terra: cenouras, nabos, rabanetes, rábanos, etc. Este pormenor foi já posto em relevo, nomeadamente por Funck Brentano.
Houve quem se impressionasse pelo fato de o cardo (chardon) passar então por um prato apreciado, mas na realidade trata-se de alcachofra (cardon), e assim o assunto se torna apenas uma questão de gosto!
Se o camponês ia muitas vezes colher bolota, não era por se mostrar interessado nela para seu próprio alimento, mas para alimentar os seus porcos.
É possível que em certos períodos de excepcional penúria — por exemplo, durante as lutas franco-inglesas, que marcaram o declínio da Idade Média, quando a peste negra veio acrescentar os seus horrores aos da guerra e os bandos devastavam o país cuja defesa deixara de estar organizada — a farinha de bolota tenha servido, como nos nossos dias, como produto de substituição.
Mas nenhum texto nos permite pensar que isso tenha acontecido frequentemente.
Não seria crível que a fome tivesse reinado em estado endêmico na Idade Média.
A fazer fé em Raoul Glaber, cronista de imaginação febril, e que cede facilmente aos efeitos de estilo, tem-se tendência para acreditar que não se passava quase ano nenhum em que, para apaziguar a fome, não se tivesse de recorrer à carne humana e aos cadáveres de crianças recentemente desenterrados.
O monge medieval, ao relatar tais fatos monstruosos, tem o cuidado de não assumir a responsabilidade da afirmação, acrescentando prudentemente: diz-se.
É certo que houve fomes na Idade Média, e que essas fomes foram numerosas, mas a nossa experiência pessoal esclarece-nos plenamente como isso acontece sempre que a ausência ou a insuficiência dos meios de transporte impede que se preste rapidamente auxílio a uma região ameaçada e se permutem os produtos.
Durante a alta Idade Média em particular, quando cada domínio formava pela força das coisas um circuito fechado, as estradas eram ainda pouco seguras, e para garantir a sua manutenção eram exigidas portagens muitas vezes onerosas. Nesses casos, bastava um ano de seca para a penúria se fazer sentir.
É igualmente certo que essas fomes eram localizadas, e em geral não ultrapassavam a extensão de uma província ou de uma diocese.
Mesmo durante o período áureo da Idade Média no século XIII, quando a autarquia dominial foi substituída por trocas fecundas e a circulação se tornou fácil em toda a França, observam-se variações por vezes muito importantes no preço dos gêneros, sobretudo do trigo.
Cada província, cada cidade fixa a sua tarifa de acordo com a colheita local.
Os quadros traçados por Avenel e Wailly mostram, no interior de uma mesma região econômica, oscilações que vão do simples ao dobro, ou mesmo ao triplo, como aconteceu em 1272 no Franco Condado, onde o preço do hectolitro de trigo variou de 4 a 13 francos.
É preciso ainda que nos entendamos sobre o que se designa por fome.
Um texto citado por Luchaire (pouco suspeito de indulgência em relação à Idade Média), de numa obra onde acumula expressamente documentos mostrando a época com características das mais sombrias, pode deixar perplexos os leitores atuais:
Se a penúria, para eles, consistia em ter somente pão de centeio, quanto não invejaríamos nós, durante a Segunda Guerra Mundial, a sorte dos nossos antepassados da Idade Média.
Na realidade, a alimentação medieval não era muito diferente da nossa em épocas normais. Naturalmente a base era o pão.
De acordo com a riqueza da região, era de trigo candial, de centeio ou de mistura de trigo e centeio, mas verifica-se que mesmo regiões não produtoras, como o sul da França, utilizam o pão de trigo candial.
Em Marselha, onde o terreno é pobre em trigo e as medidas de exceção para abastecer a cidade são frequentes, a regulamentação muito minuciosa da panificação não prevê farinhas secundárias.
Fabricam-se três espécies de pão: o pão branco, o pão méjan mais grosseiro e o pão integral.
Os preços são fixados segundo uma tarifa rigorosa, estabelecida após exames feitos por três mestres padeiros assistidos por um perito e por homens bons designados pela comuna, tendo em conta os detritos resultantes da moedura, a malaxagem da massa e a cozedura.
Conheciam-se em Paris múltiplas variedades de pães “de fantasia”, dos quais eram mais estimados o de Chilly, o de Gonesse ou pãozinho mole.
Nos locais muito pobres comia-se bolo de aveia, ainda hoje caro aos escoceses, ou de trigo-mouro.
Mas não havia região completamente desamparada, pois a economia de então — a do vasto domínio, cobrindo uma grande região — favorece a policultura.
Não se vê na Idade Média nenhuma região unicamente consagrada à cultura do trigo ou da vinha, e que importe o resto dos produtos de que necessita.
O regime de vastas explorações permite variar suficientemente as culturas, ao mesmo tempo que são consagradas a cada uma delas porções de terra equilibradas.
Roupnel, no seu estudo dos campos franceses (Histoire de la campagne française, p. 366.), observa que o manso (uma ordem de grandeza local, que varia de 10 a 12 hectares modernos segundo a riqueza das regiões) é quase sempre composto de três elementos: campos aráveis, prados, bosques.
Estes apenas representam uma porção muito reduzida, cerca de um décimo da exploração total. A extensão das terras cultivadas é o dobro das terras de pastagens.
Diz ele:
Os manuscritos de miniaturas, que se inspiram na realidade, são a este respeito muito reveladores, pois em toda parte vemos uma proporção sensivelmente igual de prados, campos e vinhas.
A vinha é cultivada por toda parte em França, o que responde a uma necessidade religiosa tanto como econômica, pois os fiéis, até meados do século XIII, comungam sob as duas espécies, de tal modo que o consumo de vinho para a missa é muito maior do que nos nossos dias.
Algumas das nossas colheitas são, desde essa época, particularmente estimadas: Beaune, Saint-Emilion, Chablis, Epernay. Outras perderam nos nossos dias o renome que outrora possuíam, por exemplo o vinho de Auxerre ou de Mantes-sur-Seine.
Quase em toda parte torna-se necessário defender a produção local contra a importação estrangeira.
Numa cidade como Marselha são tomadas medidas draconianas contra a importação de vinhos ou de uvas provenientes de outros territórios.
Só os condes tinham direito de os importar para seu consumo pessoal. Neste caso, tratava-se provavelmente de vinhos finos da Espanha ou da Itália.
Um navio que entrasse no porto com um carregamento de vinhos ou de uvas expunha-se a vê-lo atirado ao chão, e as uvas espezinhadas.
Nas feitorias ou entrepostos estabelecidos no estrangeiro, é igualmente proibido introduzir vinho da região antes de os mercadores marselheses terem vendido o seu.
A cultura da vinha estava pois muito mais desenvolvida na região marselhesa do que nos nossos dias, e os estatutos da cidade asseguram-lhe uma proteção muito particular: proibição de caçar nas vinhas, exceto para o seu proprietário; proibição de o lavrador levar mais de cinco cachos por dia para seu consumo pessoal, etc.
O vinho foi a bebida essencial da Idade Média. Conhecia-se a cerveja, principalmente a gaulesa de cevada, já fabricada por gauleses e germanos, e também o hidromel.
Mas nada era mais apreciado que o vinho, presente em todas as mesas desde a do senhor à dos criados.
O vinho é ao mesmo tempo um prazer e um remédio. São-lhe reconhecidas toda espécie de virtudes fortificantes, e entra na composição de inúmeros elixires e produtos farmacêuticos, geleias e xaropes.
São também muito apreciados os diversos vinhos licorosos ou licores, em que se puseram a macerar plantas aromáticas: absinto, hissopo, rosmaninho, mirto, a que se adiciona açúcar ou mel.
Antes de se deitarem, era corrente beber uma mistura escaldante de vinho e leite coalhado, que na Inglaterra e na Normandia se chamava posset.
A literatura gaulesa do tempo lhe atribuía toda espécie de poderes, cuja enumeração faria corar as pessoas pudibundas, em todo caso fornecia o calor que faltava então aos apartamentos.
Com exercícios violentos tais como a caça, é certo que o vinho permitia suprir a insuficiência dos meios de aquecimento, no entanto não parece que se tenham feito sentir os males do alcoolismo nem a degenerescência que o acompanha.
Isso deve-se sem dúvida ao fato de nenhuma preparação química e nenhum subproduto adulterado ser então servido como bebida, como também à observação geral das leis eclesiásticas, que permitiam o uso e reprimiam o abuso.
Com o pão e o vinho, havia aquilo a que no Midi catalão se chamava o acompanhamento, isto é, todos os outros alimentos. Contrariamente à opinião generalizada, o consumo de carne era então abundante.
Das investigações levadas a cabo, conclui-se que o gado francês era no século XIII sensivelmente mais importante do que hoje em dia.
Uma pequena localidade pirenaica, que hoje não conta mais de uma dezena de animais de chifres, contava outrora duzentos e cinquenta.
Se bem que as proporções não sejam as mesmas em toda parte, não restam dúvidas de que a criação de gado era praticada de modo muito mais intensivo em França até o dia em que a introdução do gado da América, de menor custo, tornou impossível a concorrência para os nossos criadores.
No que diz respeito ao carneiro, não havia então quinta que não tivesse o seu rebanho, tanto mais que este fornecia aos campos um adubo natural, que hoje se julgou mais cômodo substituir por adubos químicos, o que teve como consequência reduzir consideravelmente o nosso gado ovino.
Sobretudo os porcos eram muito numerosos. Tanto na cidade como no campo, não havia família, por mais pobre, que não criasse pelo menos um ou dois para seu consumo.
A matança do porco fornecia carne e gordura para o ano inteiro, e é uma cena tradicional nos calendários dos meses, tantas vezes esculpidos nos pórticos das nossas igrejas ou pintados nos nossos manuscritos.
Eram conhecidos os processos de salga e defumação, ainda hoje utilizados. Matar o porco era a tal ponto um acontecimento da vida familiar, que só muito tarde se vê aparecerem os salsicheiros.
Mesmo assim, no princípio estes não passam de comerciantes de “pratos preparados”, antes de se especializarem na confecção de salsichas e presuntos.
A corporação dos açougueiros é poderosa desde o início da Idade Média, e é sabido o papel por ela desempenhado nos movimentos populares dos séculos XIV e XV.
Segundo o Ménagier de Paris, o consumo semanal nesta cidade ter-se-ia elevado a 512 bois, 3.130 carneiros, 528 porcos e 306 veados, sem contar o consumo dos palácios reais e principescos, os abatimentos familiares e as diversas feiras de presuntos e outras, que tinham lugar na capital e suas redondezas imediatas.
Também em Marselha é surpreendente o número de prescrições relativas aos animais pertencentes a proprietários da cidade, ou destinados ao consumo dos burgueses.
A isto teremos de acrescentar as aves de capoeira, que eram engordadas como se fazia desde a mais alta Antiguidade: os fígados de ganso e as carnes em conserva faziam então parte dos menus de festa, tal como hoje.
A caça fornecia abundantes recursos, em florestas mais extensas do que hoje em dia e muito ricas em caça.
Há uma infinidade de processos para apanhar a caça, desde os laços ou vulgares anéis até às aves de rapina especialmente treinadas, passando pelas diversas armadilhas, redes e engenhos tais como o arco, a sarabatana, a arbaleta.
Apanhavam-se também as perdizes com isca, e caçavam-se com cães o veado e o javali. Assim, a montaria fazia parte da alimentação corrente.
Em fins da Idade Média o senhor tende a reservar para si o direto de caça no seu domínio, como hoje em dia fazem os proprietários e o próprio Estado.
Mas o pessoal que o auxilia durante as grandes batidas — monteiros, falcoeiros, criados e camponeses — participa dos benefícios das suas realizações. Isso vê-se correntemente nos romances e quadros da época.
Os laticínios fazem igualmente parte da alimentação, e as nossas manteigas e queijos adquirem já desde então o seu renome: queijos gordos de Champagne ou de Brie, anjinhos da Normandia.
Nesta região, a manteiga é praticamente a única matéria gorda usada na cozinha. Como o uso de toda gordura animal é proibido durante a Quaresma, os habitantes obtêm dispensas especiais, por não lhes ser possível obter óleo em quantidade suficiente.
As esmolas prescritas para garantir essa dispensa serviram por vezes para a edificação das igrejas — esta a origem do nome que tem em Rouen a Torre da Manteiga.
Mas trata-se de um caso particular, pois a oliveira encontra-se aclimatada quase em todo a França, o azeite é muito apreciado e entra na composição de vários remédios, como o vinho.
Só ele é autorizado nos dias magros então numerosos, de severa abstinência que se estende igualmente aos ovos.
Durante a Quaresma endurecem-se os ovos que as galinhas põem, para os conservar, e são apresentados à bênção do padre durante as cerimônias de Sexta-Feira Santa, costume que deu origem aos ovos da Páscoa.
As mesmas necessidades da abstinência conduziam os nossos antepassados a consumirem muito peixe. Todos os castelos possuem então um viveiro anexo onde percas, tencas, enguias e cadozes são objeto de uma autêntica cultura.
Também os lagos são cultivados, tal como ainda hoje se pratica numa província como Brenne, e a pesca é seguida por um repovoamento metódico.
A pesca marítima nas costas é uma indústria muito viva, e as associações de pescadores desempenham um papel importante quase em toda parte.
Nas margens do Mediterrâneo, numerosas prescrições asseguram-lhes uma espécie de monopólio da venda do peixe, para proteger o seu comércio contra o dos simples revendedores.
Em Marselha, por exemplo, os revendedores só podem oferecer as suas mercadorias a partir do meio-dia.
É deixada livre a venda dos pequenos peixes, pescados com uma rede de malha fina chamada bourgin — sardinhas, girelas, que se distinguem dos peixes maiores como a cavala ou a dourada, e sobretudo o atum, cuja pesca é muito abundante nas redondezas imediatas do porto.
Sabe-se conservar o peixe e a carne, e os “mercadores de água” que remontam o Sena trazem todos os dias para Paris barris cheios de arenques salgados ou defumados. Um prato comum na época é o craspois, sem dúvida uma variedade de baleia.
Vêm por fim os legumes, que lisonjeiam menos o palato e são por isso a alimentação mais ou menos exclusiva dos monges, a quem o seu estado prescreve a sobriedade e as mortificações.
Comia-se então muitas favas e ervilhas, que desempenhavam o papel das nossas batatas. Para se queixar do seu mau casamento e exprimir a malignidade da sua mulher, Mahieu de Boulogne não sabe dizer nada de melhor que a estrofe seguinte:
São conhecidas diversas variedades de couves: brancas, repolhos, orelha-de-burro. De alfaces, o Ménagier de Paris cita a de França e a de Avignon como sendo as mais apreciadas. Espinafres, azedas, acelgas, abóboras, alho-poró, nabos, rábanos fazem parte da alimentação corrente.
Temos de lhes acrescentar as plantas condimentares, então muito utilizadas para realçar o sabor das carnes e dos legumes: salsa, manjerona, segurelha, basilisco, funcho, hortelã, sem contar as especiarias encomendadas do Oriente em quantidades cada vez maiores, sobretudo a pimenta, tão preciosa que servirá por vezes como uma espécie de moeda.
Algumas comunas mercantis se servirão dela para fazer os seus pagamentos, por exemplo, às casas das ordens militares.
As frutas são então muito apreciadas: peras e maçãs, das quais se sabe extrair a cidra e a perada.
O marmelo passa por ser uma planta medicinal, e dele se faz uma refinada compota. Sobretudo em Orleans, as cerejas e ameixas se põem a secar, tal como as uvas e os figos, e são usadas nos patês e nas conservas de carne, costume que se manteve até aos nossos dias em algumas regiões, principalmente no norte de França.
O pêssego e o damasco, introduzidos pelos árabes, eram já muito apreciados no tempo das cruzadas, mas os morangos e as framboesas permaneceram por muito tempo selvagens e só foram cultivados a partir do século XVI.
Muito antes já se vendiam castanhas nas ruas de Paris, e desde o século XIV se tentava aclimatar as laranjeiras ao nosso solo. Também as amêndoas, nozes e avelãs tinham especial preferência e serviam para a preparação de manjares.
Enfim, desde a Antiguidade eram apreciados os recursos da floresta: castanhas, frutos da faia-do-norte, morangos, abrunhos, etc.
A maior parte dos pratos não são postos em cima da mesa. As carnes põem-se num pequeno trinchante, e o mesmo se passa com as bebidas.
O escudeiro trinchador, em geral um jovem gentilhomem, tem a função de cortar para cada convidado porções de carne. Nos romances de cavalaria — como Jean de Dammartin et Blonde d'Oxford, obra de Beaumanoir — o cavaleiro servidor da dama cumpre esse papel.
Depõem-se os pedaços diretamente sobre o prato ou sobre fatias de um pão especial, conhecido como pão de trinchar, mais compacto que o pão corrente.
Este costume subsistiu em algumas regiões de Inglaterra, onde os pratos de carne não aparecem à mesa.
Com relação às bebidas, os jarros que as contêm estão sobre um aparador, e o copeiro enche jarros e taças uns após outros, à vontade dos convivas.
Todas as cenas de banquete representam assim escudeiros e servidores indo e vindo durante a refeição, enquanto as damas permanecem sentadas, tal como os senhores de alta posição e os hóspedes familiares da casa.
Galgos de formas esguias ou pequenos caniches volteiam à procura de um pedaço para comer.
Os festins são muitas vezes separados por entremezes, no decurso dos quais os jograis recitam poemas ou executam números de acrobacia.
Por vezes é mesmo toda uma pantomima ou uma peça de teatro que se desenrola aos olhos dos convivas.
Põe-se cuidado extremo na apresentação dos pratos: pavões e faisões são postos de pé, revestidos com as suas penas; nas geleias, traça-se toda sorte de cenários.
O serviço compreende em primeiro lugar as sopas, de grande variedade.
Há desde os caldos complicados, muitas vezes temperados com ovos batidos, pedaços de pão torrado e condimentos inesperados como o verjus (licor de uva), até às papas de farinha, de sêmola ou de cevada, que se comem ainda nos nossos campos, e que formavam o fundo da alimentação dos camponeses.
Os franceses eram reputados como grandes comedores de sopas, tal como hoje em dia. Eram igualmente famosos pela excelência dos seus patês e das suas tartes.
A corporação dos pasteleiros de Paris alcançou justa reputação pelos patês de montaria ou de aves, que se vendiam quentinhos na rua, tartes de legumes ou de compotas, realçadas com ervas aromáticas, tomilho, rosmaninho, louro.
Nos festins dados pelos príncipes por ocasião de qualquer recepção, sobretudo a partir do século XVI, certos patês monstruosos encerram cabritos-monteses inteiros, sem prejuízo dos capões, pombos e coelhos que o temperam, entremeados de gordura de porco, temperados com cravinho e açafrão.
Eram também muito apreciadas as carnes grelhadas e assadas.
Dos molhos, cada cozinheiro possuía uma especialidade, sendo o mais apreciado o de alho, vendido já preparado para uso das donas de casa.
Cremes e pratos doces terminam a refeição. Alguns bolos como as filhoses, bolos de amêndoa e o maçapão, contam-se entre aqueles que ainda hoje apreciamos.
Como presente, gostava-se de oferecer compotas de frutas, sobretudo a muito apreciada marmelada e bombons. Eram as guloseimas mais correntes, juntamente com as compotas e os xaropes.
Tudo isto está evidentemente a léguas das “ervas e raízes”.
Varia com o grau de fortuna a alimentação e o refinamento que nela se põe, é claro, mas está fora de dúvida que não se venderiam nas ruas coscorões, patês e produtos exóticos como os figos de Malta, se não houvesse ninguém que os comprasse, ou se só estivessem ao alcance dos ricos burgueses.
O abastecimento destes se fazia em outra escala, e eles tinham em casa os seus cozinheiros.
Nos romances de ofício veem-se jovens aprendizes comprar regularmente pequenos patês quando vão de manhã buscar água na fonte para o consumo da casa, o que quer dizer que o seu preço não era inabordável para a sua bolsa.
E a vida no campo, embora talvez menos variada, não devia ter menos largueza que na cidade, muito pelo contrário, pois a cultura dos campos e a criação do gado davam aos camponeses facilidades que o citadino não tinha.
Quando se quer criar uma cidade, é necessário prometer isenções e privilégios para atrair habitantes.
Isso não seria necessário se o camponês fosse miserável ou desfavorecido em relação ao citadino, como nos nossos dias.
Há todas as razões para crer que da Idade Média datam as sãs tradições gastronômicas que estabeleceram tão solidamente em todo o mundo a reputação da cozinha francesa.
Na Idade Média, o refinamento dos costumes fez grandes avanços.
Não só eram gerais hábitos elementares como o de lavar as mãos antes das refeições — na parábola do mau rico, vemo-lo impacientar-se porque a mulher, lenta ao lavar as mãos, o retarda na ida para a mesa —, mas ainda eram cultivados certos preciosismos, como o uso de taças para lavar as mãos na mesa.
O Ménagier de Paris dá uma receita “para fazer água de lavar as mãos à mesa”:
Para que se tenha sentido necessidade de fornecer tais receitas, é preciso que as donas de casa tenham levado muito longe os cuidados com o interior da casa e o sentido da apresentação.
A mesma obra fornece esclarecimentos sobre a maneira como eram tratados os hóspedes ordinários do lar, quer dizer, os criados, cuja sorte não era para grandes lamentos, a julgar pelos textos da época:
Em suma, três refeições ao dia, uma alimentação simples mas sólida, e vinho como bebida.
Isto sobressai igualmente nos romances de ofícios, onde se vê os burgueses abastados comerem com os criados à mesa e alimentá-los do mesmo modo que a si próprios, como já não se pratica senão nos nossos campos.
Na sala se vive, nela a família se reúne à noite diante da grande lareira, para se aquecer e contar histórias antes de ir para a cama. Isto se repete tanto nas casas dos camponeses como nos castelos.
Os outros compartimentos são apenas acessórios, o importante é a sala familiar, que os franco-canadenses chamam ainda “viveiro” (le vivoir).
Quando o nível da casa o exige, a cozinha é separada. Por vezes mesmo, nos castelos, ocupa um edifício à parte, sem dúvida para limitar os riscos de incêndio.
As vastas cozinhas de mitra da abadia de Fontevrault, as do palácio dos duques de Borgonha, em Dijon, permaneceram como eram.
Além das múltiplas salas de guarda, salas de aparato e outras que uma residência senhorial pode comportar, a casa burguesa inclui as oficinas de trabalho, se for o caso, e os quartos.
Para entrar em todos os pormenores, encontramos adjacentes aos quartos os redutos chamados longaignes ou privadas, que costumamos designar como W.C.
Por espantoso que possa parecer, não faltava em nenhuma casa da Idade Média aquilo de que Versalhes estava desprovido.
A delicadeza ia mesmo muito longe neste aspecto, pois parecia pouco refinado não possuir as suas privadas particulares.
A regra manda que, pelo menos nas casas burguesas, cada um tenha as suas e seja o único a usá-las.
Os costumes só se tornaram grosseiros neste ponto a partir do século XVI, quando foram desprezadas quase todas as práticas de higiene que a Idade Média conhecia.
A abadia de Cluny, no século XI, não contava menos de quarenta latrinas.
O que poderá parecer mais incrível, embora seja igualmente verdadeiro, é que as latrinas públicas existiam na Idade Média.
Temos provas disso em cidades como Rouen, Amiens, Agen. A sua instalação e manutenção eram objeto de deliberações municipais ou entravam nas contas da cidade.
Nas casas particulares, as privadas situavam-se muitas vezes no último andar.
Um conduto ao longo da escada corresponde aos esgotos ou vazadouros, ou ainda a fossas muito semelhantes às usadas atualmente.
Utilizava-se mesmo cinzas de madeira, um procedimento parecido com o das mais modernas fossas sépticas, pois têm a propriedade de decompor os detritos orgânicos.
Documentos mencionam a compra de cinzas destinadas às latrinas do hospital de Nîmes, no século XV.
No palácio de Avignon, os condutos desaguavam num esgoto que ia dar no Sorgue.
E sabe-se que foi penetrando pelas fossas das privadas — o único ponto que não se tinha pensado em fortificar! — que os soldados de Filipe Augusto se apoderaram da fortaleza de Château-Gaillard, orgulho de Ricardo Coração-de-Leão.
Os quartos eram mobiliados com mais conforto do que geralmente se crê. O mobiliário compreende as camas “bem adornadas e cobertas de colchas e de tapetes, com lençóis brancos e peles” (Cf. Le Ménagier de Paris.), tamboretes, cadeiras de espaldar alto e esses baús e cofres esculpidos onde se guarda a roupa, de que se podem ver ainda belos espécimes nomeadamente no hospício de Beaune.
As madeiras dessa época são muito belas. Preparadas e enceradas devidamente, não absorvem a poeira e são um mau alvo para os insetos. Há ainda as arcas para o pão, os aparadores e guarda-louças.
Quanto às mesas, são simples tábuas que se montam sobre cavaletes no momento de servir, e que se guardam depois junto às paredes para não estorvarem.
Em contrapartida, faz-se muito uso de panos e tapeçarias, que protegem do frio e abafam as correntes de ar. As que nos restam — por exemplo, o admirável conjunto da Dame à la licorne, conservado no Museu de Cluny — dizem bem que partido delas se podia tirar para mobiliar e decorar os interiores;
Trata-se, evidentemente, de um luxo reservado aos castelãos e aos ricos burgueses, mas o hábito de usar tapetes e xairéis (espécie de coberturas) era geral.
Sabe-se na Idade Média que não existe conforto sem paredes espessas servindo de proteção.
Segundo os recursos do local, são construídas em tijolo ou em pedra talhada, no caso dos ricos.
Na maior parte dos casos, mistura-se madeira e adobe, como acontece um pouco por toda parte até aos nossos tempos.
Constrói-se no chão toda a armadura da fachada, em vigas sabiamente unidas umas às outras.
A seguir procede-se de uma só vez ao levantamento, com a ajuda de cabrestantes, macacos e polés, para depois se guarnecer os interstícios com tijolos ou com o material usado na região.
As igrejas que nos restam dão em geral a nota do aspecto das casas.
No Languedoc triunfa o tijolo rosa, que dá um brilho tão particular às igrejas de Toulouse ou de Albi.
Em Auvergne constrói-se em pedra, aquela sombria pedra de Volvic de que a catedral do Puy ou a de Clermont-Ferrand fornecem imponentes exemplos.
Nas regiões de terra argilosa, como no Midi provençal, casas e monumentos são cobertos de telhas, que tomaram ao sol essa cor de mel tão característica em aldeias como Riez ou Jouques.
Na Borgonha a telha é de preferência envernizada, rebrilhando os telhados em cores ofuscantes, como no hospício de Beaune e Saint-Bénigne de Dijon.
Na Touraine, no Anjou, utiliza-se a ardósia extraída na região.
E quando as igrejas não são abobadadas, apenas emadeiradas como acontece frequentemente no norte e em torno da bacia parisiense, é porque as florestas, mais numerosas do que as pedreiras, tornavam este modo de revestimento mais econômico.
Nessas regiões, as residências dos particulares eram quase sempre cobertas de colmo, mesmo na cidade, o que não deixava de aumentar os riscos de incêndio.
Um pouco em toda parte, as autoridades municipais prescreviam aos habitantes medidas de prudência para evitar os sinistros.
O toque de recolher não tinha outra razão de ser.
Em Marselha recomenda-se aos armadores, quando procedem à brusque (operação que consiste em aquecer a quilha do navio em construção, para o besuntar mais facilmente de pez), que vigiem a chama para esta não ultrapassar uma certa altura.
Dizem os estatutos da cidade: “Nem sempre está ao alcance do homem conter as chamas que ele próprio ateou”.
Após um incêndio que ocorreu em Limoges em 1244, destruindo vinte e duas casas, mandou-se construir vastos reservatórios de água, aonde os burgueses se vinham abastecer em caso de alerta.
Quando se declarava um incêndio, era dever de todos acorrer com um balde d’água ao toque a rebate.
Toda a gente devia colocar outro balde diante da porta de casa, por precaução.
A dona de casa deve estender mais longe a sua solicitude (ver posts anteriores):
Ela deve igualmente pensar nos “irmãos inferiores”, nesses animais domésticos que parece terem sido muito mais numerosos então do que nos nossos dias.
Não há miniatura de cenas de interior ou de vida familiar onde não figurem cães saltando ao pé dos donos, rondando em volta das mesas nos banquetes, ou ajuizadamente estendidos aos pés da dona ocupada a fiar.
Em todos os jardins se veem pavões desdobrarem ao sol a cauda luzidia. Assim, o autor do Ménagier recomenda à mulher:
As reservas de aves eram numerosas, e cada senhor ou burguês tinha o seu equipamento de caça, ainda que reduzido: um cão ou uma matilha, falcões, gaviões ou marelhões.
Se se gosta dos animais, não se apreciam menos as flores.
Além da rua e da casa, o cenário habitual da vida é o jardim.
Os manuscritos de iluminuras mostram inesquecíveis pinturas, com jardins cercados de muros a meia altura, sempre com um poço ou uma fonte, e um riacho que corre nas margens dos relvados.
Muitas vezes são parreiras, árvores em latadas onde acabam de amadurecer os frutos, ou ainda esses bosques de verdura onde, nos romances, cavaleiros e donzelas se encontram.
O que é notável é que a época não conhece a nossa distinção entre jardim hortícola e jardim floral.
Os canteiros acolhem flores e legumes.
Não restam dúvidas de que se achava agradáveis à vista tanto a baga desabrochada de uma couve-flor, a renda delicada das folhas de cenoura e a abundante folhagem de uma planta de melão ou de abóbora, como uma frisa de jacintos ou de tulipas.
O pomar é objeto de passeio. É debaixo de uma velha pereira que Tristão, nas noites de luar, espera a loura Isolda.
O que não significa que não se apreciem as flores de puro enfeite, pois a nossa literatura lírica mostra-nos sem cessar pastoras e donzéis ocupados a entrançar “rosários” de flores e de folhagem.
Numerosos quadros e tapeçarias têm um fundo de florzinhas de cores suaves.
Mas se os autores das iluminuras semeiam de flores e pássaros os enquadramentos das páginas dos manuscritos, não deixam de tirar partido das plantas hortícolas, e a folha de alcachofra, estranhamente recortada, serviu de modelo a gerações de escultores, nomeadamente na época da arte flamboyant.
Falando dos cuidados vários de uma dona de casa, o Ménagier de Paris recomenda à Beata Agnès, que tem o papel de intendente:
Espantar-se-ão talvez de encontrar mencionados nos inventários, como fazendo parte do mobiliário, o fundo-de-banho ou tapete-banheira, espécie de moletom que guarnecia o fundo das banheiras para evitar as farpas, quase inevitáveis quando o fundo é de madeira.
Efetivamente a Idade Média, contrariamente ao que se julga, conhecia os banhos e fazia largo uso deles.
Ainda aqui conviria não confundir as épocas, atribuindo indevidamente ao século XIII a porcaria repelente do século XVI e dos que se lhe seguiram até aos nossos dias.
A Idade Média é uma época de higiene e limpeza. Um dito de uso corrente fala bem daquilo que era considerado como um dos prazeres da existência: Venari, ludere, lavari, bibere, hoc est vivere! (Caçar, jogar, lavar, beber, isto é viver!).
Nos romances de cavalaria, constata-se que as leis da hospitalidade ordenam que se dê um banho aos convidados que chegam de uma longa viagem.
É um hábito corrente, aliás, o de lavar os pés e as mãos quando se entra em casa.
Os banhos faziam parte, bem entendido, dos cuidados a dar à pequena infância; Maria de França recorda-o num dos seus lais:
Se não se tomava banho todos os dias na Idade Média (seria este um hábito generalizado na nossa época?), pelo menos os banhos faziam parte da vida corrente.
A banheira é uma peça do mobiliário. Não passa muitas vezes de uma simples tina, e o seu nome — dolium, que significa também tonel — pode prestar-se a confusões.
A abadia românica de Cluny, que data do século XI, não comportava menos de doze salas de banho abobadadas, contendo outras tantas banheiras de madeira.
Gostava-se muito de folgar nos rios, no verão, e as Très riches heures du Duc de Berry mostram aldeões e aldeãs lavando-se e nadando num belo dia de agosto, na mais simples indumentária, pois a ideia de pudor de então era muito diferente da que temos hoje em dia: tomava-se banho nu, tal como se dormia nu entre os lençóis.
Existiam banhos ou estufas públicas, e eram muito frequentados.
O Museu Borély, em Marselha, conservou uma tabuleta de banhos em pedra esculpida, que data do século XIII. Paris contava vinte e seis banhos públicos na época de Filipe Augusto, mais do que as piscinas do Paris atual.
Como relata Guilhaume de Villeneuve em Crieries de Paris, todas as manhãs os proprietários dos banhos mandavam “apregoar” pela cidade:
Alguns exageravam. No Livre des métiers de Étienne Boileau, prescreve-se: “Que ninguém apregoe nem mande apregoar os seus banhos antes de o dia amanhecer”.
Esses banhos eram aquecidos por meio de galerias e de condutos subterrâneos, procedimento semelhante ao dos banhos romanos.
Alguns particulares tinham mandado instalar em casa um sistema desse gênero.
No palácio de Jacques Cœur, em Bourges, ainda hoje se pode ver uma casa de banho aquecida por condutos muito parecidos com os do moderno aquecimento central, mas trata-se evidentemente de um luxo excepcional para uma casa particular.
É a mesma disposição que se encontrou nos banhos de Dijon, onde as galerias correspondiam a três salas diferentes: a sala de banhos propriamente dita, uma espécie de piscina e o banho de vapor.
Na Idade Média os banhos são acompanhados de banhos de vapor, tal como nos nossos dias as saunas finlandesas, e o nome de estufas que lhes era dado indica suficientemente que uma coisa não era separada da outra.
Os cruzados trouxeram para o Ocidente o hábito de acrescentar a isto salas de depilação, cujo uso aprenderam em contato com os árabes.
Os banhos públicos eram muito frequentados. Podemos mesmo espantar-nos de ver, no século XIII, alguns bispos censurarem as religiosas das cidades latinas do Oriente por irem aos banhos públicos, mas isso prova que, não tendo casas de banho instaladas nos seus mosteiros, elas não deixavam por isso de conservar os seus hábitos de limpeza.
Em Provins, o rei Luís X mandou construir novos banhos em 1309, uma vez que os antigos já não serviam, ob affluentiam populi.
Em Marselha tinha sido regulamentada a sua entrada e fixado um dia especial para os judeus e outro para as prostitutas, para evitar o seu contato com os cristãos e as mulheres respeitáveis.
A Idade Média conhecia igualmente o valor curativo das águas e o uso das curas termais.
No Roman de Flamenca, vê-se uma dama pretextar enfermidades e pedir ao seu médico que lhe prescreva os banhos de Bourbon-l'Archambault, na verdade para poder juntar-se a um belo cavaleiro.
Tudo isto está evidentemente longe das ideias difundidas sobre o asseio na Idade Média, contudo basta confirmá-lo nos documentos que existem.
O erro de avaliação proveio de uma confusão com as épocas que se seguiram, e também de certos textos cômicos que foram indevidamente tomados ao pé da letra.
Langlois fez acerca disto uma observação muito judiciosa:
Podemos perguntar, perante estes testemunhos inegáveis, o que é que terá sugerido a um Luchaire a estranha opinião segundo a qual as casas medievais não passavam de “pocilgas fedorentas, e as ruas eram cloacas” (apud La société française au temps de Philippe-Auguste, p. 6.).
É verdade que não cita monumento nem documento de espécie alguma em apoio à sua afirmação, e concebe-se dificilmente a razão pela qual, se tinham o hábito de viver em pocilgas, os nossos antepassados puseram tanto cuidado em orná-las de janelas com colunas dividindo-as ao meio, de arcaturas trabalhadas assentes em finas colunetas esculpidas, que reproduzem muitas vezes a ornamentação das capelas vizinhas.
Isso ainda se pode ver na Borgonha em Cluny, no Auvergne em Blesle, na Gasconha na pequena vila de Saint-Antonin, para citar apenas casas datadas da época romana, quer dizer, do século XI ou dos primeiros anos do século XII.
Quanto às ruas, longe de serem “cloacas”, são pavimentadas desde muito cedo, e Paris o foi desde os primeiros anos do reinado de Filipe Augusto.
Por um procedimento semelhante ao da Antiguidade, as pedras eram colocadas numa camada de cimento misturado com telhas esmagadas.
Troyes, Amiens, Douai, Dijon foram igualmente pavimentadas em épocas variáveis, como quase todas as cidades de França. E essas cidades possuíam também os seus esgotos, cobertos a maior parte das vezes.
Em Paris, foram descobertos esgotos sob os terrenos do Louvre e do antigo palácio da Trémoille, datando do século XIII, e sabe-se que a Universidade e os arrabaldes da Cité tinham, duzentos anos mais tarde, uma rede que compreendia quatro esgotos e um coletor.
Em Riom, Dijon e muitas outras cidades, foi igualmente possível verificar a presença de esgotos abobadados, atestando o cuidado com a salubridade pública.
Onde não existia o “tudo para o esgoto”, tinham sido criados vazadouros públicos, cujas imundícies eram despejadas nos rios — tal como se faz ainda hoje — ou queimadas.
Assim os estatutos municipais de Marselha ordenam a cada proprietário que varra os terrenos em frente da sua casa, e que arranje maneira de, em caso de chuva, as imundícies não poderem ser arrastadas pelas águas em direção ao porto, pelas ruas inclinadas.
Haviam sido construídas na embocadura das ruas que davam para o porto, que a municipalidade entendia conservar muito limpo, uma espécie de paliçadas destinadas a proteger as águas.
Não menos de quatrocentas libras por ano eram destinadas à sua manutenção.
Para as limpezas que eram efetuadas periodicamente, tinha-se imaginado um engenho composto por uma barca à qual estava fixada uma roda de alcatruzes, que vinham alternadamente raspar o fundo e depunham na barca a lama, que era em seguida despejada ao largo.
Regulamentos particulares velam pela proteção dos locais que o interesse público exige preservar especialmente contra a conspurcação: o açougue e a peixaria, que devem ser lavados com água diariamente, de uma ponta à outra; a pelaria, cujas águas nauseabundas devem ser despejadas num conduto escavado especialmente para o efeito.
Resulta de tudo isto que, na Idade Média como hoje, a salubridade pública não era descuidada.
O maior inconveniente que a isso se podia opor provinha dos animais domésticos, então mais numerosos do que nos nossos dias.
Não era raro ver um rebanho de cabras ou de carneiros, ou mesmo uma manada de vacas, abrir passagem por entre os tabuleiros dos vendedores, provocando desordens e atropelos.
Foi pois fixado um limite a não ser ultrapassado por eles no perímetro da cidade, o que ainda se pode ver em algumas cidades.
Em Londres, rebanhos de carneiros atravessam quotidianamente uma das praças mais movimentadas para ir pastar nos parques.
Havia sobretudo os porcos (cada família criava então uma quantidade suficiente para o consumo familiar) que circulavam na calçada, a despeito das repetidas proibições.
Mas isso não era totalmente mau, pois eles devoravam todos os detritos comestíveis, contribuindo portanto para suprimir uma causa de insalubridade.
A higiene não é uma descoberta dos tempos modernos, mas “uma arte que o século de Luiz XIV menosprezou e que a Idade Média cultuou com amor”, escreveu a historiadora Monique Closson, autora de numerosos livros sobre a criança, a mulher e a saúde no período medieval.
No estudo de referência “Limpo como na Idade Media”, a historiadora mostra com luxo de fontes que desde o século XII são incontáveis os documentos como tratados de medicina, ervolários, romances, fábulas, inventários, contabilidades, que nos mostram a paixão dos medievais pela higiene. Higiene pessoal, da cozinha, dos talheres, etc.
As iluminuras dos manuscritos são documentos insubstituíveis onde os gestos refletem o “clima psicológico ou moral da época”.
O zelo pela higiene veio abaixo no século XVI, com a Renascença e o protestantismo.
Milhares de manuscritos, diz Closson, ilustram o costume medieval.
Bartolomeu o inglês, Vicente de Beauvais, Aldobrandino de Siena, no século XIII, com seus tratados de medicina e de educação “instalaram uma verdadeira obsessão pela limpeza das crianças”.
Eles descrevem todos os pormenores do banho do bebê: três vezes ao dia, as horas, temperatura da água, perto da lareira para não pegar resfriado, etc..
As famosas Chroniques de Froissart, em 1382, descrevem a bacia no mobiliário do conde de Flandes, de ouro e prata.
As dos burgueses eram de metais menos nobres e as camponesas em madeira.
A Idade Média atribuía valor curativo ao banho, como ensinava Bartolomeu o Inglês no Livro sobre as propriedades das coisas.
Na idade adulta os banhos eram quotidianos.
Os centros urbanos tinham banhos públicos quentes copiados da antiguidade romana.
Mas era mais fácil tomar banho quente todo dia em casa.
Na época carolíngia os palácios rivalizavam em salas de banho com os monastérios, que muitas vezes tinham ambulatórios para doentes e funcionavam como hospitais.
Em Paris, em 1292, havia 27 banhos públicos inscritos. São Luis IX os regulamentou em 1268.
Nos séculos XIV e XV, os banhos públicos tiveram um verdadeiro apogeu.
Bruxelas, Bruges, Baden, Dijon, Digne, Rouen, Strasburgo, Chartres... grandes ou pequenas as cidades os acolhiam em quantidade.
Eram vigiados moral e praticamente pelo clero que cuidava da saúde pública.
Os hospitais mantidos pelas ordens religiosas, eram exímios e davam o tom na matéria.
Regulamentos, preços, condições, etc., tudo isso ficou registrado em abundantes documentos, diz Closson.
Dentifrícios, desodorantes, xampus, sabonetes, etc., tirados de essências naturais, são elencados nos tratados conhecidos como ervolários feitos nas abadias.
Historiadores como J. Garnier descreveram com luxo de detalhes os altamente higienizados costumes medievais.
As estações termais também eram largamente apreciadas. Flamenca, romance do século XIII faz o elogio da estação termal de Bourbon-l'Archambault.
Imperadores, príncipes, ricos-homens os frequentavam na Alemanha, Itália, Países Baixos, etc.
A era do ensebamento começou com o fim da Idade Média e durou até o século XX, conclui Monique Closson.
Ao menos até que os movimentos hippies, ecologistas, neo-tribais, etc. voltaram a pôr na moda andar sujo , sem barbear, vestido com blue-jeans e outras peças que estão ou fingem estar em farrapos ou com manchas, que vemos todos os dias na rua, nos transportes, aulas e locais de festa!
Por isso a vida encontra-se totalmente concentrada no domínio, ou quase tanto, configurando um regime de autarquia feudal, ou antes familiar, durante o qual cada corte procura bastar-se a si própria.
Essa necessidade de se agrupar para efeitos de defesa determina a disposição das aldeias, que se encontram agarradas às encostas do domínio senhorial, onde os servos se refugiarão em caso de alerta.
As casas estão amontoadas umas às outras, utilizam a mínima polegada de terreno e não ultrapassam as escarpas da colina em que se ergue o torreão.
Tal disposição é ainda muito visível em castelos como o de Roquebrune, perto de Nice, que data do século XI.
Assim que passa a época das invasões, as residências dos camponeses espalham-se pelos campos fora, e a cidade destaca-se do castelo.
Se na cidade primitiva predominam ruelas estreitas, não é por gosto, mas por necessidade, porque era preciso que a população se estabelecesse, bem ou mal, na cintura das muralhas.
O mesmo não acontece com os arrabaldes que se multiplicam a partir do fim do século XI.
Se as ruelas são também aí tortuosas, é por seguirem o traçado das muralhas determinado pela configuração geral do local.
Mas não se pense que o alinhamento das casas era deixado à exclusiva fantasia dos habitantes.
A maioria das cidades antigas são construídas de acordo com um plano bem visível.
Em Marselha, por exemplo, as vias principais, como a Rua de São Lourenço, são estritamente paralelas às margens do porto, onde vão desembocar as ruelas transversais.
Quando estas ruas são muito estreitas, pode-se estar certo de que isso acontece por razões muito precisas, como no Midi a defesa do vento ou do sol.
É uma disposição muito judiciosa, e isso fica patente quando em Marselha os adeptos do barão Haussmann traçaram essa lamentável Rua da República, vasto corredor glacial que desfigura a antiga colina dos Moinhos.
No Languedoc, para proteção contra o terrível cers [vento do Baixo Languedoc, semelhante ao mistral], utilizou-se muitas vezes o plano central, como na pequena cidade de Bram, onde as ruas giram em círculos concêntricos em torno da igreja.
Mas, sempre que podem e não são estorvados pelo clima ou pelas condições exteriores, os arquitetos preferem um plano retangular semelhante ao das cidades mais modernas, como as da América ou da Austrália: grandes artérias cruzando-se em ângulo reto, com um espaço reservado no interior do retângulo para a praça pública, na qual se erguem a igreja, o mercado — e se é caso, a câmara municipal — e ruas secundárias paralelas às primeiras.
Assim foi concebida a maioria das cidades novas. Monpazier, na Dordogne, é muito característica a este respeito, com as suas ruas traçadas a esquadria, recortando blocos de casario de uma absoluta regularidade.
Cidades como Aigues-Mortes, Arcis-sur-Aube, Gimont no Gers, apresentam a mesma simetria de desenho.
“bom, a plebe é a classe mais pobre, e que tem menos condições para se cercar de coisas bonitas. Então, daí decorre que a plebe parece o recanto da feiúra dentro do universo. E pelas mesmas razões pelas quais a nobreza seria o recanto da beleza, a plebe seria o recanto da feiúra.
“Os próprios seres humanos, postos num ambiente nobre, deixam ver mais a sua beleza do que no ambiente plebeu.
“Então o que é que o Sr. vai admirar na pobreza?”
A resposta me salta aos lábios, o presépio de Belém.
Sagrada Família: modelo de dignidade na pobreza |
Quer dizer, ele é descendente do Rei David.
A família de David tinha sido posta fora do trono mas tinha o direito a reinar sobre Israel. São José era o chefe da Casa de David.
Ele tinha sobre Israel um direito como o príncipe imperial D. Luiz de Orleans e Bragança bisneto da Princesa Isabel tem sobre a coroa do Brasil.
O Menino Jesus era, portanto, Filho de Rei.
Agora, O imaginem não no presépio de Belém com as vaquinhas e os boizinhos dando bafo em cima d’Ele, etc., mas no mais belo palácio da terra.
São Miguel, Santa Catarina e Santa Margarida aparecem a Santa Joana d'Arc, Bois Chenu |
E que muita coisa na plebe foi posta feia e pobre para que se realçassem valores que nela aparecem e florescem?
E é preciso saber entender e compreender isto.
Todos se lembram da figura histórica de Santa Joana d'Arc.
Heroína virginal que quando a França feudal, a França do heroísmo e da cavalheirosidade estava no chão, debaixo do pé conquistador da Inglaterra, foi suscitada numa aldeiazinha muito humilde, com um nome que soa como um toque de sininho: Domremy.
E que quando ela ia apascentar as ovelhas da família, as vozes de duas santas ‒ Santa Margarida e Santa Catarina ‒ falavam com ela.
E explicavam-lhe que ela tinha que ir para a França, para salvar o reino, e como é que seria, etc., etc.
Aquela virgem encantadora, em determinado momento partiu. Apresentou-se ao Rei.
E disse que ela era mandada por Deus, etc., etc.
Afinal de contas, o Rei aceitou e a pôs, a ela fraca e débil, à frente de um exército que era um dos mais fortes da Europa.
Ela, na sua debilidade virginal e encantadora, comandou e foi empurrando os ingleses quase completamente para fora da França.
Era uma pastora chamada a brilhar na corte de um rei.
Era uma virgem chamada a viver num campo militar onde, infelizmente, tantas e tantas vezes a linguagem é impura, a presença das mulheres perdidas se faz notar, etc., etc.
E, entretanto, ela ali reluzia como um círio de cera puríssima em plena noite.
Bem, não é mais bonito que ela tenha sido uma pastorinha do que ela tivesse sido filha de um príncipe?
(Autor: Plinio Corrêa de Oliveira. Sem revisão do autor).
Deslumbrante crescimento não planificado do comércio medieval
A atividade comercial recuperou as vías fluviais pouco aproveitadas |
São geralmente, pelo menos no Midi, dirigidas por meirinhos, cujo número varia: dois, seis, por vezes doze; ou ainda um único reitor reúne o conjunto dos cargos, assistido por um preboste que representa o senhor, quando a cidade não tem a plenitude das liberdades políticas.
Muitas vezes ainda, nas cidades mediterrânicas faz-se apelo a um poderoso (podestà), instituição muito curiosa.
O poderoso é sempre um estrangeiro (os de Marselha são sempre italianos), ao qual se confia o governo da cidade por um período de um ano ou dois.
Em toda parte onde foi empregado, este regime deu inteira satisfação.
Em todo caso, a administração da cidade compreende um conselho eleito pelos habitantes, geralmente por sufrágio restrito ou com vários graus, e assembléias plenárias que reúnem o conjunto da população, mas cujo papel é sobretudo consultivo.
Os representantes dos ofícios têm sempre um lugar importante, e sabemos qual foi a parte ocupada pelo preboste dos comerciantes em Paris nos movimentos populares do século XIV.
A grande dificuldade com que as comunas se debatem são os embaraços financeiros.
Marceneiro e sua família. Os locais de trabalho costumavam ser na própria residência familiar. |
O poder é, aliás, rapidamente absorvido por uma oligarquia burguesa, que se mostra mais dura para com o povo miúdo do que tinham sido os senhores, daí a rápida decadência das comunas.
São muitas vezes agitadas por perturbações populares, e periclitam a partir do século XIV; um tanto ajudadas, é preciso dizê-lo, pelas guerras da época e pelo mal-estar geral do reino.
Nos séculos XII e XIII o comércio toma uma extensão prodigiosa, já que uma causa exterior, as cruzadas, vem dar-lhe um novo impulso.
As relações com o Oriente, que nunca tinham sido completamente interrompidas nas épocas precedentes, conhecem então um vigor novo.
As expedições ultramarinas favorecem o estabelecimento dos nossos mercados na Síria, Palestina, África do Norte, e mesmo nas margens do mar Negro.
Italianos, provençais e languedócios fazem entre si uma severa concorrência, e se estabelece uma corrente de trocas cujo centro é o Mediterrâneo.
Ela vai seguindo a estrada secular do vale do Reno, do Saône e do Sena até ao norte da França, países flamengos e Inglaterra.
Essa estrada já era seguida pelas caravanas que, antes da fundação de Marselha no século VI a.C., transportavam o estanho das ilhas Cassitérides — isto é, da Grã-Bretanha — até aos portos freqüentados pelos comerciantes fenícios.
É a época das grandes feiras de Champagne, Brie e Ilha de França — Provins, Lagny, Londit, San Denis, Bar, Troyes — aonde chegam as sedas, os veludos e os brocados, o alúmen, a canela e o cravo-da-Índia, os perfumes e as especiarias vindos do centro da Ásia, e que em Damasco ou em Jaffa eram trocados pelos tecidos de Douai ou de Cambrai, as lãs da Inglaterra e as peles da Escandinávia.
As casas de comércio de Gênova ou de Florença tinham nos nossos mercados as suas sucursais permanentes.
Os banqueiros lombardos ou de Cahors negociavam aí com os representantes das hansas do Norte e entregavam letras de câmbio válidas até nos distantes portos do mar Negro.
A atividade comercial tinha seu epicentro nas feiras livres em praças públicas |
Já a Alta Idade Média tinha conhecido o Oriente através de Bizâncio: a igreja de Paris recitava em grego uma parte dos seus ofícios; foram os marfins bizantinos que verdadeiramente reensinaram ao Ocidente a arte esquecida de esculpir a madeira e a pedra; e a decoração dos manuscritos irlandeses inspira-se nas miniaturas persas.
Mais tarde os árabes conduzem as suas conquistas com a brutalidade que sabemos, e cortam por algum tempo as pontes entre as duas civilizações.
Mas vêm as cruzadas, e o mercado oriental — ao qual corresponde, aliás, um mercado “franco” na Ásia Menor, que trabalhos recentes manifestaram — banha toda a Europa e a faz conhecer a vertigem do tráfego, o deslumbramento dos frutos estranhos, dos tecidos preciosos, dos perfumes violentos, dos costumes suntuosos, e inunda com a sua luz essa época apaixonada pela cor e pela claridade.
Sobretudo multiplica esse gosto pelo risco, essa sede de movimento, que na Idade Média coexiste de forma tão tocante com a ligação à terra.
Variedade e unidade das cidades e burgos medievais acolhia extremos opostos e harmônicos
Cesky Krumlov, na República Checa, capital antiga da região de Rosenberg, possuía a nobreza mais rica e influente do país |
O resultado no urbanismo foi o aparecimento de cidades com estilos fabulosamente diversos.
Nada havia das cidades monótonas modernas que se repetem a si próprias um pouco por todo mundo.
Cada conjunto humano gestava sem planificação, segundo suas propensões naturais de alma, a cidade que bem entendia.
Eguisheim, uma das cidadinhas camponesas e burguesas da Alsácia, Frnça |
No clip abaixo temos três exemplos que “hurlent de se trouver ensemble” (“berram pelo simples fato de estarem juntos”).
No início a cidade de Jerez de La Fontera, na Andaluzia (Espanha) onde é palpável a influência moura.
Logo a seguir, Bruges, a riquíssima cidade da Bélgica, espécie de capital dos panos, das artes e do comércio no tempo de esplendor medieval.
Por fim, a encantadora Rothenburg ob der Tauber, na Alemanha, na sua inacreditável originalidade e harmonia das formas e cores de seus prédios que parecem surgidos de um conto de fadas.
Esses são apenas alguns exemplos da infindável variedade de estilos nascidos livremente sob a proteção benfazeja da Igreja.
É inegável também a unidade de fundo entre essas cidades que vem do fato de terem sido, ou ainda serem, católicas.
Desigualdade proporcionada e harmônica das classes na direção da sociedade
Cardeal da Igreja Católica |
Mas ao mesmo tempo que manteve essa diferença, alterou fundamentalmente alguns aspectos dessa diferença.
Antes de tudo, a primeira das classes sociais, que era o clero, era uma classe completamente aberta a todas as pessoas que tivessem vocação para nela ingressar.
A Igreja nunca exigiu que a pessoa pertencesse a determinada classe social para chegar a entrar no clero.
Pelo contrário, foi muito frequente o exemplo de pessoas pertencentes às camadas mais modestas da sociedade e que ascendiam a mais alta categoria da hierarquia eclesiástica.
De outro lado, tínhamos a nobreza. A nobreza era uma classe hereditária, mas havia aí também uma grande diferença.
Em primeiro lugar, um nobre podia ser destituído de sua nobreza, se ele praticasse determinados atos infamantes.
De outro lado, um plebeu poderia ser promovido a nobre se ele praticasse atos de relevância.
De maneira que a condição de nobre não era uma condição fechada, na qual ninguém pudesse entrar e ninguém pudesse sair.
Era, pelo contrário, uma condição que passava por uma renovação lenta.
Nobre francesa no século XV |
Ao lado disto, tínhamos a burguesia e depois a plebe.
Mas o ponto mais importante é saber o seguinte: clero, burguesia, nas suas imensas variedades, mercadores, industriais, homens de estudo, proprietários, pequenos lavradores, trabalhadores manuais, nobres, clérigos, em que medida todos eles participavam, ou em que medida deviam participar da direção do Estado.
Dentro do comum das organizações políticas modernas, o problema foi resolvido numa base puramente numérica.
Entende-se que o Estado é indiferente em questão de classes sociais e que por causa disto, cada um tem o direito a um voto.
E quando se chega na hora de votar, cada um dando um voto o resultado se aprecia numericamente. Tantos brasileiros tiveram tal orientação, se essa orientação é da maioria, ela prepondera.
Na aparência, dizia o Papa Pio XII num de seus recentes discursos, na aparência, a solução é das melhores.
Porque uma vez que confia a direção da coisa pública a maioria dos cidadãos é naturalmente interessada em que as coisas do Estado vão bem.
Colocar a direção do Estado nas mãos dos principais interessados é, certamente, a melhor das soluções.
Mas na realidade, verificamos que no plano das competências, no plano das especializações, esta solução pode ser muitas vezes defeituosa.
E por quê? É porque necessariamente, as classes mais numerosas ficam com a voz dirigente.
Pois se tudo se apura em termos de número, é claro que a categoria mais numerosa acaba tendo uma força que pesa com o elemento que resolve.
Comerciantes italianos |
Esse mecanismo, muito simples e claro à primeira vista, acaba produzindo freqüentemente uma seleção, às vezes. Pode ser que produza uma verdadeira seleção, mas frequentemente acaba produzindo uma seleção às avessas.
Então, nasce o problema para o qual o Papa Pio XII pedia a atenção dos homens cultos e dos homens de Estado de nosso tempo, de saber como dentro de um país, se devem distribuir as parcelas de influência na direção do Estado, de maneira que o Estado seja judiciosamente orientado e governado.
A esta questão, a Idade Média pode nos dar algumas sugestões para uma solução.
O que prevalecia na Idade Média era antes de tudo a seguinte idéia de que todos os homens foram criados por Deus, iguais. Iguais por natureza. Todos os homens, enquanto homens, são iguais. Por causa disto, têm todos eles, em face do Estado, os direitos inerentes à natureza humana, inteiramente iguais.
A natureza humana deu ao homem, ou por outra, o homem tem por natureza, direito à vida, direito à propriedade, certo direito à liberdade individual, direito à dignidade pessoal, à saúde, etc..
Como estes direitos decorrem da natureza humana, e todos os homens são igualmente homens, é natural que o Estado deve assegurar esses direitos igualmente a todos os homens.
Mas acontece que os homens, ao lado desses direitos essenciais que são inerentes a todos, têm também determinados direitos que são acidentais. São direitos que provém de acidentes existentes em sua própria natureza.
O homem mais inteligente, o homem mais capaz, o mais trabalhador, o mais virtuoso, pelo fato de ter determinadas qualidades que estão acima do nível comum, acaba adquirindo direitos maiores.
As classes sociais e o governo na Idade Média |
Então, a verdadeira justiça dentro da sociedade, não consiste em ser absolutamente igual para todos, mas consiste em tratar a todos de tal maneira que lhes assegure os direitos essenciais da pessoa humana.
E que além disso, distribua maiores vantagens e maiores honrarias para aqueles que aguentam mais pesadamente o fardo dos interesses coletivos.
Dentro dessa ordem de ideias, na Idade Média prevalecia o conceito de que duas classes sociais deveriam sobretudo viver para o bem público, e que essas duas classes sociais mereceriam a participação maior na direção dos negócios públicos: o clero e a nobreza.
(Autor: Plinio Corrêa de Oliveira, conferência de 1954. Sem revisão do autor)
Extraordinária, proficua e plácida movimentação na Idade Média
Cientistas consideram o mundo. Fr. Bartolomeu OFM, o Inglês: "Livro das propriedades das coisas", BnF, fr 134, f, 169. |
Na Idade Média: vida intelectual, espiritual e moral sujeita a flutuações e cheia de vais-e-vens
Estudando a história, poder-se-ia achar que a vida na Idade Média era muito mais movimentada do que a de nossos dias. De fato parece ser.
A movimentação era, entretanto, num outro campo e por razões diferentes das movimentações de hoje.
A atividade dos corpos talvez fosse menor. Certos homens viajavam muito, mas era apenas uma certa categoria de homens: os mercadores, os estudantes, os nobres.
Mas a maior parte das populações ficava fixa nas cidades. E o geral dos homens viajava muito menos que os de hoje.
Agora, acontece que enquanto a vida física de um homem era menos trepidante, sua vida espiritual, intelectual e moral era muito mais sujeita a flutuações e muito mais cheia de vais-e-vens.
Isso determinava uma diferença de “colorido” na vida medieval.
No homem contemporâneo: fixidez de mentalidade pela ausência de idéias e princípios
Monges cantam o Ofício |
Podemos olhar em torno de nós e veremos que são poucas as pessoas que mudaram de mentalidade.
A maior parte das pessoas não muda de mentalidade. A mentalidade que têm consiste em:
– não ter mentalidade, pelo menos explícita,
– ser adoradores desse século,
– levar uma vida agradável,
– procurar, sobretudo, viver como se entende,
– não se impressionar com princípios, nem se deixar guiar por nenhuma espécie de doutrina.
Esse tipo de mentalidade é tão arraigado que podemos contar pelos dedos os pecadores que se arrependeram, ou se converteram, e passaram a ser pessoas de virtude. No homem contemporâneo há uma espécie de regra de fixidez.
Há uma certa categoria de gente que sabemos que é “boa” e que vai naquele passo manso até o fim da vida... E há uma outra categoria que a gente sabe que não presta, e que também vai no passo de louco até o fim da vida.
As categorias são mais ou menos definidas e delimitadas.
Razões da “movimentação” de alma do homem medieval: exuberância de vitalidade e vida segundo idéias e princípios
São Patrício, apóstolo da Irlanda |
Vemos também regiões heréticas que se convertem real e profundamente. E homens ímpios que se convertem de um momento para outro.
Mas vemos histórias pavorosas de apostasias de padres que fogem dos conventos e fazem coisas medonhas. Pessoas que eram boas e viviam na vida de família mas que apostataram.
Esta ‘movimentação” se deve a alguns fatos:
Em primeiro lugar, a vitalidade do homem medieval era muito mais exuberante.
Em segundo lugar, o homem medieval tinha mentalidade e idéias. Quando se tem mentalidade e idéias é possível mudar-se de uma para outra.
Missa. Missal de Jean Rolin, século XV |
Em primeiro lugar, a vitalidade do homem medieval era muito mais exuberante.
Em segundo lugar, o homem medieval tinha mentalidade e ideias. Quando se tem mentalidade e ideias é possível mudar-se de uma para outra.
Hoje, pelo contrário, há exatamente uma carência de idéias.
Sobretudo o que há é que o homem contemporâneo é de uma dureza de coração, especialmente no que diz respeito ao bem. Ele absolutamente não muda. As manifestações de virtude mais palpáveis não o comovem.
Podemos ter o exemplo disto em torno de nós.
Por vezes, pessoas que não fazem mal a ninguém e que dão a todos o exemplo da virtude, bons filhos, bons irmãos, procedem bem em todas as coisas mas não obtêm a simpatia de ninguém.
Qual a razão disto? Endurecimento... O espetáculo da virtude não comove, não impressiona; a virtude não é simpática, não atrai nenhuma espécie de simpatia.
Outro motivo de endurecimento de alma: o mito do “cidadão maior” e independente
Isto se prende também ao mito do “cidadão maior”, investido em todos os seus direitos civis. A primeira coisa que este cidadão pseudo-livre precisa ter é que ninguém mexa em sua cabeça. Ele é inteiramente independente. Ele tem uma idéia e não muda; toma uma atitude e não liga para ninguém.
Agora, por que ele é independente senão para ser burro sozinho, para ser um celerado sozinho? Ele tem sua independência, ele a mantém.
Resultado: a voz da graça lhe fala e encontra fechadas as portas de seu coração! Ele absolutamente não se comove.
Cristãos contra mouros. Cantigas de Santa Maria, El Escorial. |
Pelo contrário, na Idade Média encontramos a possibilidade de ressonância da voz da Igreja, como também da voz do passado, de um modo prodigioso.
É curioso ver como os bons exemplos, como certas situações, como certas crises sociais, impressionavam. E não era só o bom exemplo do rei. Era o bom exemplo dado por qualquer um.
Exemplos:
– As Cruzadas, em grande parte, foram determinadas pelo contágio de alguns bons exemplos.
– São Bernardo, quando entrou para o convento de Cister, levou consigo, de uma vez, cerca de vinte ou trinta cavaleiros.
Por toda parte notamos que um, tomando uma posição, uma porção de outros se impressionam e seguem, porque ir atrás de um outro não era uma vergonha, sobre tudo quando exibia objetivos, ideias, doutrinas e projetos santos.
Foi preciso chegarmos ao século XX para se decretar que ir atrás de um homem como São Bernardo é uma vergonha.
Moradia medieval: espírito elevado, oposto ao prosaísmo
Kaysersberg, Alsacia, França |
Não seria uma pura valorização do que há na Europa, mas a aquisição de um modo de ser inspirado no europeu.
Os europeus procuram organizar a vida de modo belo, com valores positivos.
Em suas casas, por exemplo: se há uma janela disponível, eles colocam um vaso com gerânios; se há um jardinzinho, plantam flores com desenhos lindos.
Óbidos, Portugal |
Tudo aquilo vai entrando na cultura do povo.
Os brasileiros modernos, entretanto, ao contrário dessa impostação de alma, geralmente não incorporam as coisas com aquele estado de espírito medieval, mesmo tendo nós panoramas realmente bonitos.
Se adquirissem esse estado espírito, ficariam com apetência desse tipo de prazer intelectual.
Annecy, França |
São defeitos contra os quais se deve remar.
Há nisso um sentido religioso?
Há, evidentemente, pois as coisas magníficas da natureza nos foram dadas pela Providência para nos elevarmos a Deus.
São imagens da sublimidade d’Ele.
É evidente que a posição de fechamento, de não se ter a alma aberta em relação ao sublime, leva as pessoas para o que é prosaico.
Portanto, representa um fechamento para a imagem que Deus colocou nas coisas criadas por Ele.
Tal fechamento para os aspectos sublimes das coisas representa, substancialmente, algo de antirreligioso.
Excertos da conferência proferida pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em 31 de outubro de 1966. Esta transcrição não passou pela revisão do autor.
Vídeos: a moradia em cidades medievais europeias
Remanso medieval: repouso delicioso que prepara para façanhas
As muralhas protegiam dos perigos e garantiam o aconchego e o remanso da cidade |
Enquanto do lado de fora tem o inimigo, a proximidade do assalto noturno e outros perigos.
As casas populares procuravam proteção junto ao castelo |
O castelo enorme tem encostada uma aldeiazinha a seu lado.
Essa proximidade permite aos aldeões irem correndo para dentro do castelo se houver ataque.
De maneira que todos dormem ao seu lado. O castelo é o grande remanso.
Mas não era moleza. Durante o dia todos trabalham.
Acresce que a guerra era frequente na Idade Média.
Também, os medievais empreendiam viagens enormes, romarias a cidades longínquas que podiam durar meses ou anos, Cruzadas e aventuras da toda ordem.
É o contraste.
A gente deve imaginar assim cidades como a de Bruges tão encantadora com seus canais.
Hoje, ela ficou meio parada.
Distensão que restaura a hierarquia das coisas |
É um remanso cheio de calor humano, cheio de aconchego, e que não é um remanso para a vida inteira, mas uma alternativa para a luta, o trabalho e a aventura.
São ocasiões em que toda a sensação de perigo se afasta, e o homem se distende inteiro.
E, nessa distensão, as coisas retornam à sua verdadeira hierarquia.
Porque, na atividade febricitante perde-se o senso da boa ordem, mas nessa distensão as coisas retomam sua verdadeira hierarquia. Isso é propriamente o remanso.
Imaginemos, por exemplo, o comerciante que passou o dia inteiro posto na sua loja.
O grande aconchego e paz do lar medieval |
Então aí o comércio fica de lado e a hierarquia de valores se restabelece.
Restabelecendo-se, ele é capaz de “distância psíquica”.
Tudo isto é bonito e atraente.
Há nisto um equilíbrio, uma ordem, uma afinidade com a natureza humana, que torna isso belo.
O recolhimento não é o contrário da ação.
O recolhimento é a fonte da ação.
As grandes ações do homem se resolvem nas horas de recolhimento.
Então, o recolhimento assim vivido não é um convite à preguiça.
Ele restaura as forças para continuar a ação, e por causa disto ele é belo.
(Fonte: Plinio Corrêa de Oliveira, 29/4/67. Sem revisão do autor.)
Integração entre o campo e a cidade na Idade Média
Na vida medieval não existia antagonismo entre o campo e a cidade. A cidade estava integrada na vida rural como uma cereja no chantilly.
No século XIII São Tomás de Aquino ensinava que a cidade tem um limite a partir do qual ele fica grande demais.
Qual é?
No momento que desde algum local da cidade não se enxergasse a natureza, a cidade tinha atingido o seu tamanho máximo.
Por isso havia uma proporcionalidade e uma integração notável entre o campo e a cidade.
Com toda naturalidade, uma pessoa passeando pela cidade acabava chegando ao campo e prolongando o passeio pela natureza vizinha.
Da mesma maneira o camponês entrava e saia da cidade para suas necessidades.
Na cena acima temos uma cena da vida pastoral. É o tempo da colheita. Homens e mulheres estão engajados, pois há muito para colher.
No fundo vê-se a cidade tão bonitinha que se diria de conto de fadas. As construções são sólidas em pedra e as agulhas sobem muito alto. O sino marca as horas e ouve-se à distância.
No alto do morro há um moinho que aproveita o vento para gerar trabalho, pelo geral moer o trigo para fazer a farinha, ou bombear água.
Com que amor pelas coisas do campo o desenhista representou a natureza! Essas árvores quase que se diriam árvores do Paraíso!
A vegetação evidentemente está estilizada; os cordeirinhos estão postos para enfeitar.
Os camponeses mais uma vez aparecem como gente gorda, forte.
É assim que incontáveis desenhos do tempo apresentam os camponeses, em livros muitas vezes destinados para bibliotecas municipais e serem folheados e vistos pela plebe.
Eles eram desenhados por gente da plebe, porque os autores de iluminuras em geral eram plebeus.
Muitas vezes eram filhos desses camponeses, ou tinham sido camponeses eles próprios.
Em tudo vê-se a alegria, a inocência, a satisfação, a despreocupação da vida campestre medieval.
A cena seguinte é de mais um almoço popular.
Pelo traje vê-se que são plebeus. Estão sentados numa espécie de taverna ao ar livre.
No fundo um sujeito enche os canecos com cerveja ou vinho que o garçom leva para os consumidores nas mesas.
Na cena da taverna aparecem dois andares.
Em cima estão o andar dos fregueses, ao que parece catando os vinhos. Embaixo está a adega.
O fornecedor também tem um guiché ao lado por onde passa para os servidores os líquidos que vão ser servidos em cima.
Os plebeus estão vestidos com abundância de panos.
Era preciso realmente que o pano não fosse caro nessa época para eles terem tanto tecido para gastar.
Eles bebem de bom grado, que jeito de pessoas satisfeitas da vida eles dão!
É cena tipicamente plebeia.
Não espanta que os clientes sejam gordos, mas não são só eles, até o servidor é gordo e está satisfeitão.
Harmoniosa complementaridade entre o castelo e a casa camponesa
A imagem representa uma excursão de camponeses mais abastados.
Serão, tal vez, proprietários pequenos ou médios de propriedades rurais.
Eles se divertem num passeio em bote pelo canal.
O homem está tocando uma flauta, um moça está tocando um bandolim, um homem atrás rema.
Eles estão andando num canal que vai ao longo de um castelo.
O castelo tem beleza arquitetônica. A harmonia das linhas, o belo reflexo sobre as águas, os cisnes nadam num grande sossego.
Bem em frente do castelo há uma casa de plebeus.
Entre o castelo e casa dos campônios se estabelece naturalmente uma comparação muito bonita de duas classes sociais: o castelo é mais nobre, rico e belo, mas em frente dele reina a fartura e a comodidade.
A poesia, a quietude, a tranquilidade caracteriza essas habitações camponesas, feitas por populares cuja manifestação de bom gosto é menos acentuada do que nos nobres.
A casa tem um aconchego e uma beleza insuspeitados para os dias de hoje, mas essas eram construções normais para a Idade Média.
A vida dos senhores no castelo é severa, grave, cheia de solenidade.
Na casa popular vive-se sem as preocupações que tem o nobre, vida folgada, bem alimentada, agradável, aconchegante, cheia dos atrativos da despreocupação.
Fartura plebeia e esplendor aristocrático vivem face a face em perfeita harmonia.
Entre as duas residências há um valo, onde passeiam as figuras principais. Qual é a razão de ser desse valo?
A razão de ser desse valo é defender o castelo.
Quando os adversários atacarem o castelo, deita-se uma ponte que vai do castelo até a margem e as famílias de camponeses refugiam com seus haveres, seu gado, às vezes com seus móveis dentro do castelo.
O castelo não é mera residência do senhor feudal. Ele é uma fortaleza aonde o senhor feudal reside.
Mas, é bastante grande para conter a população da aldeia plebéia que mora junto, dos trabalhadores manuais esparsos pela propriedade, todos eles se defendem dentro do castelo.
E é por isso que tantas vezes, na Idade Média, encontra-se duas ou três aldeias próximas dos castelos.
Porque eles estando próximos da fortaleza do senhor, em caso de necessidade, ali eles se refugiam e defendem.
No momento a ponte não figura. É um recurso do artista para deixar ver a água que é muito bonita.
Mas dizer que o castelo era só a residência do senhor feudal é tão estúpido como dizer hoje que um quartel é só residência do comandante.
Porque o castelo era o quartel e a garantia de segurança da Idade Média.
Como o povo medieval fazia leis
O povo medieval legislava elaborando as leis consuetudinárias.
Consuetudo é uma palavra latina que significa costume. A lei consuetudinária não era feita por legisladores encerrados num Parlamento.
A lei consuetudinária registrava no papel os costumes criados por todas as categorias sociais na vida de todos os dias. Essas leis eram guardadas na mente dos populares. Os anciões eram seus guardiões mais zelosos.
Quando a necessidade impunha, essas leis orais eram escritas em pergaminhos. Estes eram guardados como tesouros.
As leis consuetudinárias eram verdadeiros compêndios de sabedoria popular.
Nem o rei, nem o nobre, nem os eclesiásticos podiam ir contra o costume, desde que não violasse a Lei de Deus e os demais costumes já existentes. O resultado era que o povo medieval tinha um grau de autonomia insuspeitado.
Pouco antes da Revolução Francesa, quer dizer, já bem depois da Idade Média, ainda a metade do país era regido por códigos de leis consuetudinárias orais, não escritas. A outra metade, por códigos escritos de leis também consuetudinárias mescladas com leis nacionais editadas pelos reis absolutos pós-medievais. Acresce que em certas regiões havia superposição de códigos escritos e leis orais.
Pode parecer confusão, mas na prática era uma fonte de liberdade e aconchego legal insuspeitável que contribuiu muito à "doucer de vivre" francesa: a "doçura de viver", a vida fácil e larga sem muitos constrangimentos legais ou burocráticos.
Entre as primeiras coisas que fez a Revolução Francesa foi abolir esses sistemas consuetudinários.
Tudo ficou sendo decidido por legisladores "iluminados" na capital, desconectados da vida real local. Foi Napoleão que impôs seu Côdigo de leis a todo o país: a vontade omnímoda central do imperador-soberano passou por cima de tudo.
Muitos países "democráticos" passaram a imitar o Código de Napoleão. Brasil entre eles.
Mas, voltando às leis consuteudinárias medievais, o que acontecia era que na vida quotidiana de povos que aspiravam à perfeição, o bom costume aceito pelo conjunto virava lei.
Violar essa lei, ainda no periodo que não estava transcrita, soava como gesto de insensato.
Grande parte das leis existentes na Idade Média era fruto de costumes repetidos que se transformaram em norma.
Esta variava de feudo para feudo, como por exemplo, o modo de passar recibo, de legar herança, como também as leis de compra e venda de mercadorias, etc.; porque tudo nascia dos costumes do povo.
As leis sobre comércio, indústria e trabalho nasciam das relações de trabalho.
Dessa maneira, a lei estava adatada à realidade e todos se sentiam a vontade praticando-a até de modo exemplar.
O povo então amava a lei e até se regozijava com ela ponderando sua cordura, moderação e seus infinitos jeitinhos.
Os Reis apenas ordenavam que fossem escritas, reviam e corrigiam o que fosse injusto ou contrário à doutrina e à lei da Igreja.
Era uma participação efetiva no direito de legislar, de que gozava o povo na Idade Média.
A lei consuetudinária começou a ser desrespeitada pelo absolutismo real que apareceu durante a decadência da era medieval. O menosprezo aumentou com os déspotas esclarecidos inspirados pelo Iluminismo revolucionário após a Idade Média.
A Revolução Francesa consagrou o sistema de legisladores e teorizadores democráticos que legislam longe da realidade. Então a lei escrita foi se descolando da vida concreta.
Sob certos aspectos, virou para muitos uma espécie de flagelo do qual até os cidadãos honestos não querem apanhar e tentam fugir.
Tal é o caso da escalada devoradora dos impostos e as impenetráveis Babéis da burocracia moderna.
O mais antigo tribunal do mundo e suas lições medievais
O Tribunal das Águas de Valencia, na Espanha, já fez mais de mil anos julgando conflitos de irrigação |
Mas ele age segundo usos e costumes da Idade Média, época em que foi fundado. O atendimento é imediato, bastando os querelantes se apresentarem.
O julgamento é oral, sem burocracia nem custos, a sentença é pronunciada na hora, não tem apelo e é acatada sem discussão, pois a respeitabilidade do tribunal beira o sagrado.
Trata-se do Tribunal das Águas, fundado em Valencia no século X e que já comemorou mais de um milênio em atividade.
Sua autoridade se estende sobre os conflitos relativos à irrigação na fértil planície situada junto à terceira cidade da Espanha, uma região de laranjais e hortas.
O tribunal está constituído por oito anciãos, escolhidos pelas oito comarcas irrigadas. E se reúne na Porta dos Apóstolos da catedral gótica da cidade, em espaço delimitado especialmente para as suas sessões.
O horário de atendimento é todas as quintas-feiras, quando os sinos da torre Micalet da catedral batem meio-dia.
Os oito juízes em simples toga preta de outros séculos assumem suas poltronas de inspiração medieval, e um oficial de justiça começa a chamar os eventuais querelantes, enunciando o nome das respectivas comunidades.
Os reclamantes então ingressam na área reservada ao tribunal, acompanhados ou não de seus advogados, e eventualmente de algum policial que foi testemunha dos fatos.
Ouvidas as posições das partes, os juízes trocam opiniões sobre o caso, e o chefe do tribunal emite a sentença, prontamente obedecida.
Uma pequena multidão acompanha o julgamento que, por sinal, se faz em dialeto valenciano, parecido com a língua espanhola.
“A mais antiga instituição de justiça existente na Europa” está inscrita no patrimônio cultural imaterial da UNESCO.
Sua existência remonta pelo menos ao século X, quando a região fazia parte do califado de Córdoba, e no lugar da atual catedral gótica – a cuja sombra se reúne – havia uma mesquita.
O oficial de Justiça convoca os eventuais querelantes por comarca |
Os litígios são mais numerosos nas épocas de seca, existindo uma vasta jurisprudência acumulada nas mentes e nas almas dos veneráveis juízes.
Os usos e costumes estão também consignados num código específico, explica o historiador Daniel Sala, grande conhecedor da instituição.
Um caso recente típico envolveu um agricultor com trinta anos de atividade que viu a água chegar poluída por resíduos de cimento e de tinta jogados no canal por um vizinho que reformava sua casa.
Tendo ouvido os argumentos das partes, após breve debate o presidente pronunciou a fórmula consagrada, condenando o vizinho poluidor. Este aceitou a sentença com o protocolar “correto”, e pagou logo a multa de 2.000 euros.
O tribunal exerce sua jurisdição sobre dez mil agricultores que dependem da irrigação, os quais escolhem o representante de cada comunidade.
As sentenças são reconhecidas pela Justiça Civil espanhola e o tribunal “foi respeitado pelos reis, pelos presidentes das Repúblicas, pelas ditaduras, em poucas palavras, por todo o mundo”, sublinhou o historiador Daniel Sala.
Todos os anos surgem centenas de causas. Porém, pouquíssimas delas – entre 20 e 25 – chegam a este tribunal. Há certos dias em que ninguém se apresenta perante os juízes reunidos.
O motivo é admirável: é tanta a respeitabilidade do tribunal que os querelantes acabam se reconciliando na própria praça, antes mesmo de serem convocados.
“Para um agricultor é quase uma ofensa vir aqui”, explica José Antonio Monzó, que supervisiona o respeito das regras na comunidade de Quart.
As partes ingressam no recinto delimitado pela grade de ferro para defender sua causa |
“Nós tentamos agir de maneira que ninguém chegue a ter que ser julgado aqui”, explica Aguilar diante da Porta dos Apóstolos.
“Durante a ocorrência, o acusado pode esbravejar e declarar-se não culpado. Mas quando chega aqui, ele pede a conciliação e finalmente paga a sanção imposta”, conta Manuel Ruiz, presidente do tribunal e representante da comunidade de Favara.
O Tribunal das Águas de Valencia é um último vestígio da justiça medieval em matérias trabalhistas.
Nessas causas, os julgamentos normalmente eram feitos por tribunais específicos das corporações de ofícios, onde todos se conheciam entre si e as respectivas famílias, sabiam o que cada um fazia ou o que seus antepassados fizeram, viviam o problema na vida quotidiana, ouviram as gerações velhas dirimindo as querelas, tudo num ambiente de sensatez, respeito mútuo, tradição e sabedoria cristã.
Esse poder de julgamento das corporações populares é um dos aspectos mais simpáticos da era medieval e dos menos conhecidos hoje.
E talvez dos mais necessitados. No Brasil, por exemplo, foram abertas em 2016 mais de três milhões de causas trabalhistas – é o nº 1 do mundo –, muitas delas introduzidas por advogados especializados em criá-las onde talvez não existam.
Quantos milhões de páginas foram redigidos para alimentar esses processos? Quantos milhões ou bilhões de reais foram gastos pela formidável máquina administrativa que exige o atendimento dessa avalanche de causas?
Quanto tempo de trabalho foi empregado por advogados, juízes, litigantes e funcionários da Justiça para elucidar esses milhões de pendências anuais? Quanto tempo tiveram os lesados de esperar até ouvirem a sentença? Quantos apelos.... quantos ... etc., etc.
Talvez nunca ninguém tenha tentado fazer uma estatística. E, se o fez, deve ter colhido números de desmaiar.
Não é de espantar que a imagem da Justiça, malgrado o esforço colossal de juízes e funcionários, esteja continuamente se degradando.
Que diferença com a Justiça impregnada de espírito familiar e de velhas e sábias tradições da Idade Média!
Proteção e fidelidade: bases das relações no trabalho
Cozinheiros, vitral da catedral de Chartres |
Executar um trabalho determinado, receber em troca uma certa soma, tal é o esquema das relações sociais.
O dinheiro é o nervo essencial delas, pois com raras exceções uma atividade determinada se transforma de início em numerário, antes de se transformar novamente em objeto necessário à vida.
Para compreender a Idade Média, é preciso se afigurar uma sociedade vivendo de modo totalmente diverso, em que a noção de trabalho assalariado, e em parte até mesmo a do dinheiro, são ausentes ou secundárias.
O fundamento das relações de homem a homem é a dupla noção de fidelidade e proteção. Assegura-se a alguém seu devotamento, e em troca espera-se dele segurança.
Não se contrata sua atividade, tendo em vista um trabalho determinado com remuneração fixa, mas sua pessoa, ou antes sua fidelidade. Em retribuição, se oferece subsistência e proteção, no pleno sentido da palavra. Tal é a essência do liame feudal.
Mestre de ofício vai ensinando os aprendizes |
É que, de fato, seu dever de proteção comportava de início uma função guerreira: defender seu domínio contra as invasões possíveis.
Apesar dos esforços em reduzir o direito de guerra privada — tais guerras foram mitigadas pela ação da Igreja, mediante a trégua de Deus e a quarentena — ele ainda subsistia, e a solidariedade familiar podia implicar a obrigação de vingar pelas armas as injúrias feitas a um dos seus.
Acrescenta-se ainda uma questão de ordem material. Detendo a principal, senão a única fonte de riqueza, que era a terra, apenas os senhores tinham a possibilidade de equipar um cavalo de guerra e de armar escudeiros e oficiais.
O serviço militar será pois inseparável do serviço de um feudo, e a fidelidade prestada pelo vassalo nobre supõe auxílio de suas armas, todas as vezes que for necessário. Este é o primeiro encargo da nobreza e um dos mais onerosos: a obrigação de defender o domínio e seus habitantes.
A espada diz: “É minha justiça e encargo guardar os clérigos da Santa Igreja e aqueles que produzem o alimento”.
Os mais antigos castelos, aqueles que foram construídos nas épocas de turbulência e invasões, trazem a marca visível dessa necessidade.
A aldeia e as habitações dos camponeses estão nos arredores da fortaleza, em cujo recinto toda a população irá se refugiar por ocasião de perigo, e onde ela encontrará auxílio e mantimentos em caso de sítio.
Das obrigações militares da nobreza decorre a maior parte dos seus costumes.
O direito de primogenitura vem, em parte, da necessidade de confiar ao mais forte a herança que ele deve garantir, muitas vezes pela espada.
A lei sálica se explica também por isso, pois só um homem pode assegurar a defesa de um castelo (donjon).
Assim pois, quando uma mulher se torna a única herdeira de um feudo, o suserano tem o dever de casá-la.
Eis por que a mulher apenas sucederá após seus filhos mais jovens, e estes após o primogênito.
Estes só receberão apanágios, e ainda assim muitos desastres ocorridos pelo fim da Idade Média tiveram por origem os demasiados apanágios deixados a seus filhos por João, o Bom. O poder foi para eles uma tentação perpétua, e para todos uma fonte de desordem durante a minoridade de Carlos VI.
Os nobres têm igualmente o dever de fazer justiça a seus vassalos de todas as condições e de administrar o feudo.
Trata-se precisamente do exercício de um dever, e não de um direito, implicando em responsabilidades bastante pesadas, pois cada senhor deve dar contas de seu domínio, não somente à sua linhagem, mas também a seu suserano.
Etienne de Fougères descreve a vida do senhor de um grande domínio como cheia de preocupações e de cansaços:
Cá e lá vai, muitas vezes volta,
Não repousa nem descansa.
Perto dos castelos ou longe deles,
Às vezes alegre, quase sempre triste.
Cá e lá vai, não dorme,
Para que seu caminho não se interrompa.
Longe de ser ilimitado, como geralmente se acreditou, seu poder é bem menor do que o de um industrial ou qualquer proprietário de nossos dias, porque ele jamais tinha a propriedade absoluta de seu domínio.
Dependia sempre de um suserano, e os suseranos, mesmo os mais poderosos, dependiam do rei. Em nossos dias, segundo a concepção romana, o pagamento de uma terra dá pleno direito sobre ela.
Na Idade Média não era assim. No caso de má administração, o senhor incorria em penas que podiam chegar ao confisco de seus bens.
Assim, ninguém governa com autoridade completa e não escapa ao controle direto daquele de quem ele depende. Essa repartição da propriedade e da autoridade é um dos traços mais característicos da sociedade medieval.
(Fonte: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge” - Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Testemunho concludente: a dignidade do camponês na arte medieval
A dignidade dos camponeses se reflete em suas roupas e na distinção no trabalho. |
Notemos que em todas estas obras de arte, executadas pela multidão ou pelo amador nobre, o camponês aparece na sua vida autêntica: removendo o solo, manejando a enxada, podando a vinha, matando o porco.
Haverá uma outra época, uma só, que possa apresentar da vida rural tantos quadros exatos, vivos, realistas?
Que individualmente determinados nobres ou determinados burgueses tenham manifestado desdém pelos camponeses, é possível e mesmo certo.
Mas isso não existiu em todas as épocas?
A mentalidade geral, contando com hábitos sarcásticos da época, tem muito nitidamente consciência da igualdade fundiária dos homens no meio das desigualdades de condição.
O jurista Philippe de Novare distingue três tipos de humanidade:
as “gentes francas”, isto é, “todos aqueles que tiverem franco coração; [...] e aquele que tiver coração franco, donde quer que tenha vindo, deve ser chamado franco e gentil, porque se é de um mau lugar e é bom, tanto mais honrado deve ser”.
Mercado de frutas e verduras. Afresco no Castello di Issogne, Val d'Aosta. A qualidade das roupas e da saúde dos camponeses rivaliza com as dos citadinos. |
Poderíamos citar grande número dessas proclamações de igualdade.
Será possível dizer, de modo mais geral, que uma pessoa que ocupou um lugar de primeiro plano nas manifestações artísticas e literárias de uma nação tenha podido ser por ela desprezado?
Sobre este ponto, como sobre tantos outros, confundiram-se as épocas.
Aquilo que é verdade para a Idade Média não o é para tudo aquilo a que chamamos o Antigo Regime.
A partir do fim do século XV produz-se uma cisão entre os nobres, os letrados e o povo.
Futuramente as duas classes viverão uma vida paralela, mas penetrar-se-ão e compreender-se-ão cada vez menos.
Venda de secos e molhados, Castello di Issogne, Val d'Aosta. Proporcionalidade das diversos graus da ordem social. |
Desaparece da pintura — salvo raras exceções, mas em todo caso da pintura em voga — da literatura, como das preocupações dos grandes.
O século XVIII já não conhecerá senão uma cópia completamente artificial da vida rural.
Que do século XVI até nossos dias o camponês tenha sido desprezado, pelo menos desdenhado e mal conhecido, não resta qualquer dúvida.
Mas também está fora de questão que na Idade Média ele teve um lugar de primeira ordem na vida do nosso país.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
A burguesia rica: cidadãos ilustres e banqueiros
Banquete, Musée du Petit-Palais, Paris. Ms. Histoire du Grand Alexandre |
Estamos na presença de um festim de gente rica e nobre.
Percebe-se a diferença.
A figura vestida de vermelho é o personagem de mais realce e está colocado num plano mais alto.
Ele está olhando para um outro que lhe está fazendo uma saudação pomposa.
Nas mesas do banquete há comerciantes ricos.
Na segunda imagem vemos uma reunião de banqueiros.
Um está ouvindo notícias de seus negócios; outro já fez o bom negócio e está guardando dentro da bolsa e anotando entradas e saídas.
Os bancos estavam naquele tempo apenas se organizando.
Outro banqueiro está contando dinheiro em cima da mesa e discute com o banqueiro de azul.
À direita um outro ainda vem fazer o pagamento.
O banqueiro está vestido com um tecido magnífico.
O banqueiro era sempre um plebeu; era um típico burguês, quer dizer habitante do burgo ou cidade.
Todos eles estão contentes.
O que está pagando eu não diria que está muito satisfeito, mesmo porque a função de pagar é menos alegre do que a de receber, mas positivamente não é nem um faminto nem um maltrapilho.
(Fonte: Plinio Corrêa de Oliveira, 22/4/1973. Sem revisão do autor).
A lenda do camponês medieval inculto, miserável e desprezado não passa de lenda
Nobre dirige os trabalhos da agricultura no feudo. Todos os detalhes exibem abundância e boa organização da produção, além de camponeses bem vestidos e educados. |
Veremos que o seu regime geral de vida e de alimentação não oferecia nada que deva suscitar piedade.
O camponês não sofreu mais na Idade Média do que sofreu o homem em geral, em todas as épocas da história da humanidade.
Sofreu sim a repercussão das guerras, mas terão elas poupado os seus descendentes dos séculos XIX e XX?
Além disso, o servo medieval estava livre de qualquer obrigação militar, como a maior parte dos plebeus.
E o castelo senhorial era para ele um refúgio na desventura, a paz de Deus uma garantia contra as brutalidades dos homens de armas.
Sofreu a fome nas épocas de más colheitas, como da mesma forma sofreu o mundo inteiro, até que as facilidades de transportes permitiram levar ajuda às regiões ameaçadas.
Mesmo a partir dessa altura... Mas o camponês tinha a possibilidade de recorrer ao celeiro do senhor.
A única época realmente dura para o camponês na Idade Média — que também o foi para todas as classes da sociedade indistintamente — foi a dos desastres produzidos pelas guerras que marcaram o declínio da época.
Período lamentável de perturbações e de desordens, engendradas por uma luta fratricida durante a qual a França conheceu uma miséria que só se pode comparar à das guerras de religião, da Revolução Francesa ou do nosso tempo.
Bandos de plebeus devastando o país, fomes provocando revoltas e insurreições camponesas, e para cúmulo essa terrível epidemia de peste negra, que despovoou a Europa.
Mas isso faz parte do ciclo de misérias próprias da humanidade, e das quais nenhum povo foi isento. A nossa própria experiência basta largamente para nos informar sobre isso.
Terá o camponês sido o mais desprezado?
Talvez nunca o tenha sido menos, de fato, do que na Idade Média.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Lendas tétricas sobre camponeses medievais são produto do rancor moderno
Vestido camponês do Vale de Ansó, Aragão, Espanha |
Não passa de testemunho do rancor, velho como o mundo, que sente o charlatão, o vagabundo, pela situação do camponês no domínio, cuja morada é estável, cujo espírito por vezes é lento, e cuja bolsa muitas vezes demora a abrir-se.
A isto se acrescenta o gosto, bem medieval, de zombar de tudo, inclusive daquilo que parece mais respeitável.
Na realidade, nunca foram mais estreitos os contatos entre o povo e as classes ditas dirigentes — neste caso, os nobres.
Contatos estes facilitados pela noção de laço pessoal, essencial para a sociedade medieval, e multiplicados pelas cerimônias locais, festas religiosas e outras, nas quais o senhor encontra o rendeiro, aprende a conhecê-lo e partilha a sua existência, muito mais estreitamente do que, nos nossos dias, os pequenos burgueses partilham a dos seus criados.
A administração do feudo obriga o nobre a ter em conta todos os detalhes da vida dos servos.
Nascimentos, casamentos, mortes nas famílias de servos entram em linha de conta para o nobre, como interessando diretamente o domínio.
Populares na festa do Ommegang, na Bélgica |
Tem portanto em relação a eles uma responsabilidade moral, do mesmo modo que suporta a responsabilidade material do feudo em relação ao suserano.
Jovens do Vale do Roncal, Espanha, indo para a Missa principal. |
Não o vemos abrir as portas da sua casa para lhes oferecer um banquete, por exemplo, na ocasião do casamento de um dos filhos.
No conjunto, uma concepção totalmente diferente da que prevaleceu na Idade Média.
Como disse Jean Guiraud, o camponês ocupa a ponta da mesa, mas é a mesa do senhor.
Poderíamos facilmente dar-nos conta disso examinando o patrimônio artístico que essa época nos legou, e constatando o lugar que o camponês nela ocupa.
Na Idade Média ele está em toda parte: nos quadros, nas tapeçarias, nas esculturas das catedrais, nas iluminuras dos manuscritos.
Em toda parte o encontramos como o mais corrente tema de inspiração.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
O nobre e o servo da gleba submetidos às mesmas obrigações
A condição dos camponeses obrigava à proteção e deixava-os livres para trabalhar a terra de que acabaram ficando donos. Parada histórica em Pisa, Itália. |
Nas duas extremidades da hierarquia encontramos essa mesma necessidade de estabilidade e fixação, inerente à alma medieval, que produziu a França e, de uma maneira geral, a Europa ocidental.
Não é um paradoxo dizer que o camponês atual deve a sua prosperidade à servidão dos seus antepassados, pois nenhuma instituição contribuiu mais para o destino do campesinato francês.
Mantido durante séculos sobre o mesmo solo, sem responsabilidades civis, sem obrigações militares, o camponês tornou-se o verdadeiro senhor da terra.
Só a servidão poderia realizar uma ligação tão íntima do homem à gleba, fazendo do antigo servo o proprietário do solo.
Se permaneceu tão miserável a condição do camponês na Europa oriental — na Polônia e em outros lugares — é porque não houve esse laço protetor da servidão.
Nas épocas de perturbação, o pequeno proprietário responsável pela sua terra, entregue a si próprio, conheceu as mais terríveis angústias, que facilitaram a formação de domínios imensos.
Daí um flagrante desequilíbrio social, contrastando a riqueza exagerada dos grandes proprietários com a condição lamentável dos seus rendeiros.
Se o camponês francês pôde desfrutar até aos últimos tempos uma existência fácil, comparada à do camponês da Europa oriental, não o deve apenas à riqueza do solo, mas também e sobretudo à sabedoria das nossas antigas instituições.
Essas fixaram a sua sorte no momento em que tinha mais necessidade de segurança, e o subtraíram às obrigações militares, as quais pesaram depois mais duramente sobre as famílias camponesas.
As restrições impostas à liberdade do servo decorrem todas dessa ligação ao solo.
O senhor tem sobre ele direito de séquito, isto é, pode levá-lo à força para o seu domínio em caso de abandono, porque, por definição, o servo não pode deixar a terra.
Só é feita exceção para aqueles que partem em peregrinação.
O direito de formariage inclui a interdição de se casar fora do domínio senhorial quem se encontrar adscrito ou, como se dizia, “abreviado”.
Mas a Igreja não deixará de protestar contra esse direito que atentava contra as liberdades familiares, e que se atenuou de fato a partir do século X.
Estabelece-se então o costume de reclamar somente uma indenização pecuniária ao servo que deixava um feudo para se casar num outro.
Aí se encontra a origem desse famoso “direito senhorial” sobre o qual foram ditos tantos disparates, e que não significava nada além do seu direito de autorizar o casamento dos servos.
Na Idade Média tudo se traduz por símbolos, e o direito senhorial deu lugar a gestos simbólicos cujo alcance se exagerou.
Por exemplo, colocar a mão ou a perna no leito conjugal, donde o termo “direito de pernada”, por vezes empregado, que suscitou tantas interpretações deploráveis, além de perfeitamente erradas.
O nobre tinha a obrigação de defender a comunidade de burgueses e camponeses, agindo como militar, policial e guarda-bosques. Parada histórica em Oria, Itália. |
Por isso também essa obrigação foi reduzida desde muito cedo, e o servo ficou com o direito de dispor dos seus bens móveis por testamento (porque a sua propriedade passava de qualquer modo para os filhos).
Além disso, o sistema de comunidades silenciosas permitiu ao servo escapar à mão-morta, conforme o costume do lugar, já que ele podia formar com a família uma espécie de sociedade, como o plebeu, agrupando todos aqueles que pertenciam a um mesmo “pão e pote”.
Como a morte do seu chefe temporário não interrompia a vida da comunidade, continuava esta a desfrutar os bens de que dispunha.
Finalmente, o servo podia ser franqueado.
As franquias multiplicaram-se mesmo a partir do século XIII, já que o servo devia comprar a sua liberdade, quer em dinheiro, quer comprometendo-se a pagar um censo anual como o rendeiro livre.
Temos um exemplo na franquia dos servos de Villeneuve-Saint-Georges, dependente de Saint-Germain-des-Prés, por uma soma global de 1400 libras.
Esta obrigação do resgate explica sem dúvida por que razão as franquias foram muitas vezes aceitas de muito mau grado pelos seus beneficiários.
A ordenação de Luís X, o hutin, que em 1315 franqueou todos os servos do domínio real, deparou em muitos lugares com a má vontade dos “servos recalcitrantes”.
Quando foram redigidos os costumes no século XIV, a servidão só é mencionada nos de Bourgogne, Auvergne, Bourbonnais e Nivernais, e nos costumes locais de Chaumont, Troyes e Vitry. Em todos os demais havia desaparecido.
Algumas ilhotas de servidão muito moderada, que subsistiram aqui e ali, Luís XVI aboliu definitivamente no domínio real em 1779, dez anos antes do gesto teatral que foi a demasiado famosa noite de 4 de Agosto.
Ele convidou os senhores a que o imitassem, pois se tratava de uma matéria de direito privado sobre a qual o poder central não tinha o direito de legislar.
As atas mostram-nos, aliás, que os servos não tinham em relação aos senhores essa atitude de cães espancados, que demasiadas vezes se supôs.
Vemo-los discutir, afirmar o seu direito, exigir o respeito por antigas convenções e reclamar sem rodeios o que lhes era devido.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
A paz medieval, o comércio, as grandes cidades e o dirigismo hodierno
Iluminura apresenta medievais num jogo de Xadrez |
A ação dos cavaleiros andantes, no extermínio dos bandidos, acabou de desinfestar as estradas e o comércio começou a circular.
Ao mesmo tempo em que o comércio circula, as barreiras desses pequenos mundos se modificam.
E, concomitantemente, vão começando a formar-se aqui, lá e acolá, grandes cidades.
Vai surgindo nos vários reinos uma capital, o rei; e a figura do monarca se destaca.
Ele constitui uma corte, tudo caminha para a centralização.
E essa centralização vai do século XIII, numa marcha ascensional, até o século XVII e começo do XVIII, com Luís XIV na França.
E com reis que participaram um pouco do protótipo de Luís XIV, antes ou depois dele — como, por exemplo, o rei Felipe II, na Espanha, ou Pedro o grande e Catarina a grande, na Rússia etc. O que sucede então é que essa centralização transforma completamente o jogo das influências.
Luiz XIV, rei centralizador afastou-se da harmonia social medieval. Hyacinthe Rigaud (1659 - 1743). Museu do Louvre. |
O rei é o rei sol. Ele se considera o rei como se deve ser rei, o modelo perfeito e acabado do rei.
Uma nobreza, ao lado dele, que se considera e é tida por toda a Europa como modelo perfeito e acabado da aristocracia de salão.
Um conjunto de estadistas que a Europa reputa modelos perfeitos e acabados de estadistas do tempo.
Um conjunto de grandes damas que são o protótipo da elegância, da graça e da beleza feminina do século.
Até a cátedra sagrada entra nesse movimento, e aparece o grande orador sacro, como Bossuet.
E assim forma-se um centro, que é o centro modelar no qual se espelha toda a França, mas espelha-se também toda a Europa, em proporção maior ou menor.
Verifica-se então o fenômeno do afrancesamento da Europa.
Por toda parte vão ruindo as influências locais, os fatores característicos vão desaparecendo.
E aparece um centro dotado dos melhores técnicos, dos melhores especialistas em tudo, desde a arte de conversar até a arte de dirigir finanças, ou de dirigir exércitos, ou de ocupar a tribuna sagrada.
E este centro, imitado por todos, transforma a situação.
A vida, a propulsão social não vem mais da base para cima, mas vem do alto para baixo. É uma inversão da ordem medieval que pressagia maiores desastres.
A imposição de certos estilos e modos de ser de fora para dentro como sucede em shows atuais, vai transformando uma sociedade orgânica em massa
Napoleão Bonaparte encarnou o modelo de governante totalitário moderno |
O Comité de Salut Publique teve uma influência centralizadora e uma soma de poderes muito maior que a de Luís XIV. Mas Napoleão teve uma soma de poderes maior que a do Comité de Salut Publique.
E em geral os historiadores e os juristas franceses estão de acordo em afirmar que um chefe de Estado francês de nossos dias tem, no fundo — é verdade que circunscrito pela lei — uma influência, uma capacidade de dirigir o corpo social muito maior que a de Luís XIV, no auge de sua glória.
Mudou o jogo de influências, passou-se da monarquia mais ou menos aristocrática para a democracia; nessa democracia, evidentemente, o rei passou a ser o povo.
E então, no mesmo centro dirigente, se passam as coisas de um modo um pouco diverso.
Em outros termos, há um conjunto de técnicos, há um conjunto de especialistas que disputam entre si a escolha da solução a ser dada aos problemas.
Eles são apoiados por sistemas de propaganda, têm a seu serviço a imprensa, o rádio, a televisão, o cinema, enfim, todos os meios comuns de propaganda. E, com isso, influenciam o eleitorado.
O totalitarismo das massas teleguiadas por líderes populistas ou socialistas dominou e escureceu o horizonte do século XX |
De maneira que, em última análise, a capital, com os seus valores cívicos, dirige de fora para dentro a sociedade; e os elementos regionais e locais vão cada vez mais perdendo a sua influência, perdendo a sua capacidade de movimentação.
O resultado dessa nova situação é a depauperação do homem contemporâneo. Cada um de nós tem a sensação de viver como um grão de areia isolado dentro da multidão.
Nós de tal maneira nos habituamos aos meios de propaganda — de tal maneira nos acostumamos a estímulos de fora de nosso espírito, de nossa mente, que nos oferecem material para pensarmos, para refletirmos etc. — que já se chegou à seguinte situação (para mim, a última palavra nessa matéria!): torcedores, em estádio de futebol, assistem à partida com o rádio ao ouvido, porque sem o auxílio de alguém que lhes diga o que está acontecendo (e que eles também estão vendo) não conseguem tomar uma atitude individual e própria em face do fato que se apresentou".
Um imperador e um cardeal rodeados de populares conversam sobre a cidade. |
"O povo vive e move-se por vida própria; a massa é em si mesma inerte e não pode mover-se senão por um elemento extrínseco.
"O povo vive da plenitude da vida dos homens que o compõem, cada um dos quais — na sua própria posição e do modo que lhe é próprio — é uma pessoa cônscia das suas próprias responsabilidades e das suas próprias convicções.
"A massa, pelo contrário, espera o impulso que lhe vem de fora, fácil joguete nas mãos de quem quer que lhe explore os instintos e as impressões, pronta a seguir, sucessivamente, hoje esta, amanhã aquela bandeira".
(Discorsi e Radiomessaggi di Sua Santità Pio XII, Tipografia Poliglotta Vaticana, vol. VI, p. 239).
(Autor: Plínio Corrêa de Oliveira, "Catolicismo", maio de 2002)
No trabalho exigia-se reciprocidade, serviço mútuo e retidão moral, sobre tudo do nobre
Nas relações de trabalho exigia-sse retidão moral, reciprocidade e serviço mútuo. Os nobres tinham mais e maiores obrigações que lhes eram cobradas com força |
“O senhor deve tanta fidelidade e lealdade a seu homem como o homem a seu senhor” — diz Beaumanoir. Esta noção de dever recíproco, de serviço mútuo, se encontra muitas vezes em textos, tanto literários como jurídicos.
“O senhor deve mais reconhecimento a seu vassalo do que este a seu senhor” — observa Etienne de Fougères no seu “Livre des Manières”.
Philippe de Novare comenta em apoio dessa constatação: “Aqueles que recebem serviços e jamais o recompensam bebem de seus servos o suor, que lhes é veneno mortal ao corpo e à alma”.
De onde vem a máxima: “Ao bem servir convém recompensar”.
Exige-se da nobreza mais compostura e retidão moral que dos outros membros da sociedade.
Por uma mesma falta, a pena aplicada a um nobre será muito superior à de um plebeu. Beaumanoir cita um delito pelo qual a pena de um camponês é de 60 soldos, e a de um nobre de 60 libras, numa desproporção de 1 para 20.
Segundo os Établissements de Saint Louis, a falta pela qual um homem costumeiro — isto é, um plebeu — pagava 50 soldos de multa acarretava para um nobre o confisco de todos os seus bens móveis. Isto se encontra também nos estatutos de diversas cidades.
Os de Pamier fixam assim a tarifa de multas em caso de roubos: vinte libras para o barão, dez para o cavaleiro, cem soldos para o burguês, vinte soldos para o vilão.
A nobreza é hereditária, mas pode também ser adquirida, seja como retribuição de serviços, seja pela aquisição de um feudo nobre. Foi o que aconteceu em grande escala pelos fins do século XIII.
Numerosos tinham sido os nobres mortos ou arruinados nas grandes expedições, então muitos tornaram-se nobres, fato que deu origem a uma reação da nobreza.
A cavalaria enobrecia aquele a quem ela era conferida. E com o correr dos tempos surgiram os títulos de nobreza, que na verdade foram distribuídos muito parcimoniosamente.
Podia-se adquirir a nobreza, mas também podia-se perdê-la por decadência, como decorrência de uma condenação infamante.
A vergonha de uma hora apaga bem quarenta anos de honra — dizia-se. Ela se extinguia ainda pela derrogação, quando um nobre confessava ter exercido um ofício plebeu ou um tráfico qualquer.
Com efeito, era proibido sair do papel que lhe fora conferido. Ele não devia mais procurar se enriquecer, assumindo cargos que lhe poderiam fazer negligenciar aqueles aos quais dedicou sua vida.
Entretanto, excetuavam-se dos ofícios plebeus aqueles que, necessitando de recursos importantes, só podiam ser executados pelos nobres. Por exemplo, a vidraria ou a administração de forjas.
O tráfico marítimo era permitido aos nobres porque exige, além de capitais, um espírito de aventura, que não seria conveniente coibir.
No século XVIII Colbert alargará os campos de atividade econômica da nobreza, para dar mais impulso ao comércio e à indústria.
A nobreza é uma classe privilegiada. Seus privilégios são, antes de mais nada, honoríficos: direitos de precedência, etc. Alguns decorrem de encargos que a nobreza possui.
Assim, apenas o nobre tem direito à espora, ao cinturão e ao estandarte, o que lembra que originalmente só os nobres tinham possibilidade de equipar um cavalo de guerra.
Ao lado disso ele goza de exceções, que no princípio eram comuns a todos os homens livres. Tal é a exceção da “taille” (imposto sobre o vinho) e de certos impostos indiretos, cuja importância, nula na Idade Média, não cessou de crescer no século XVI, e sobretudo no século XVIII.
A nobreza possui direitos precisos e substanciais, que são todos aqueles decorrentes do direito de propriedade: direito de arrecadar as rendas, direito de caça e outros.
Os tributos e as rendas pagos pelos camponeses são apenas o aluguel da terra sobre a qual tiveram a permissão de se instalar, ou que seus ancestrais julgaram bom abandonar a um proprietário mais poderoso que eles mesmos.
Arrecadando suas rendas, os nobres estavam exatamente na condição de um proprietário de imóveis recebendo seus aluguéis.
A longínqua origem desse direito de propriedade se apagou pouco a pouco, e na época da Revolução Francesa o camponês se julgou o legítimo proprietário de uma terra da qual era locatário desde muitos séculos.
O mesmo aconteceu com relação a esse famoso direito de caça, que comumente é apontado como sendo um dos abusos mais berrantes de uma época de terror e de tirania.
O que de mais legítimo para um homem que aluga um terreno a um outro, do que reservar para si o direito de aí caçar?
Proprietário e arrendatários, ambos sabem a que ponto devem se ater, no momento em que estipulam obrigações recíprocas, e este é um aspecto essencial.
O senhor não deixa de estar sobre sua terra, quando caça perto da habitação de um camponês.
Que alguns deles tenham abusado desse direito e “esmigalhado com o casco de seus cavalos colheitas douradas dos camponeses” — para exprimir-nos como os manuais de ensino primário — é coisa possível, ainda que impossível de confirmar.
Mas não se pode conceber que eles o tenham feito sistematicamente, pois boa parte das suas rendas eram resultantes de quotas nas colheitas, e portanto o senhor era diretamente interessado em que as colheitas fossem abundantes.
A questão é idêntica com relação às “banalidades”. O forno ou a prensa senhorial são, em sua origem, comodidades oferecidas aos camponeses, em troca das quais era normal receber-se uma retribuição.
Tudo como atualmente se faz em certas comunas, ao alugar-se ao camponês uma debulhadeira ou outros instrumentos agrícolas.
Majestade régia? Desigualdade odiosa?
Não! Um juiz trabalhista julgando uma causa
Não! Um juiz trabalhista julgando uma causa
Dir-se-ia um rei. Assim parece indicar a touca na cabeça, o manto de arminho, o fato de ele estar sentado num trono, usando um traje azul pomposo e um homem se inclina diante dele e este também.
Entretanto, não é um rei.
O internauta sabe quem é esse aí?
É um juiz trabalhista!
Patrões e operários reuniam-se em associações profissionais para resolver seus problemas. Essas associações tinham o nome de corporações de ofício, ou guildas.
Naquela época não havia lei trabalhista como nós a conhecemos hoje: cada profissão reunida na respectiva corporação ditava as normas e regras que guiavam o trabalho deles.
Controle de qualidade |
Essas leis feitas lá longe muitas vezes são recebidas como mais uma forma de interferência do Estado na vida dos cidadãos, ou como modelos de desconhecimento da vida real e dos problemas da categoria.
O verdadeiramente determinante era o costume: quer dizer os fabricantes de móveis, ou de salsichas tinham certos costumes para trabalhar, produzir, vender, então, pronto!
Esse costume ‒ se não era imoral, quer dizer, se não ia contra a Lei de Deus e contra o Direito Natural ‒ virava lei efetiva.
O conjunto legal assim definido é conhecido como Direito Consuetudinário.
Por vezes, o costume era transcrito no papel. Outras vezes ficava na tradição oral.
Obviamente, podiam aparecer litígios. Então as corporações de ofício escolhiam seus juízes que julgavam segundo esses códigos profissionais.
Havia assim tribunais diretamente ligados à categoria para resolver as questões trabalhistas com profundo conhecimento de causa.
Métodos honestos |
Vagamente os juízes ainda conservam certas aparências nessa linha como a toga e por vezes sentam numa poltrona mais elevada.
Na iluminura a discussão versa sobre o método de trabalho empregado pelos querelantes: o juiz esta vendo eles agirem para depois emitir sentença.
O juiz presta atenção num e depois no outro. Os dois são operários também.
Veja-se com que esplendor se vestia um juiz plebeu, um juiz de profissão trabalhista, e a respeitabilidade com que ele era considerado e respeitado.
Isso é um elemento indispensável para ter garantia de uma Justiça bem feita, neste vale de lágrimas.
Moradia: conforto físico e bem estar moral
Um recanto nas ruas de Warwick, Grã-Bretanha |
Se queremos, pois analisar nossa época, é legítimo que a comparemos.
E com o que? Com o futuro, ainda incógnito, é impossível, pois objetos desconhecidos não podem servir de termo de comparação.
Logo, a comparação só pode ser com o passado.
Uma das mais notáveis utilidades da História consiste precisamente nisto: apresentar-nos uma fiel imagem do passado, a fim de que melhor conheçamos o presente.
E fazer tal comparação não é ser saudosista. É ser claro, prático, direto no nobre exercício de espírito que é a análise.
Habitações populares num bairro moderno, Manaus, o conjunto residencial Manoa II |
Que tesouros de técnica e ciência em tudo isto!
O concreto é um material de construção resultante de uma longa evolução prática e científica.
Em cada uma destas vivendas, a ciência tornou possíveis as vantagens da água corrente, da luz elétrica, do gás, o passatempo do rádio e da televisão, o conforto do telefone.
Deste ponto de vista, que imensa transformação em confronto com as casas antigas de Warwick, as deficiências higiênicas, as dificuldades de vida, e sob alguns pontos de vista o desconforto físico que nelas sentiria por certo qualquer habitante de cidade contemporânea!
Entretanto, de outro lado, que desconforto psíquico nestas moradias modernas, com sua estandardização desumana, a monotonia e a severidade de suas massas retangulares e sombrias, que fazem de cada vivenda uma carranca, que desabrigo atrás das paredes destas casas, abertas a todos os olhos, a todos os ruídos, quiçá a todos os ventos!
Rua de casas populares em Warwick, vista da torre do castelo |
Ali, cada uma das casas parece considerar o transeunte com um plácido sorriso impregnado de bonomia familiar, e conter em si o calor de uma vida doméstica animada e rica em valores morais.
Warwick, casa para aposentados e viúvas |
Casas obedecendo a um mesmo estilo, mas tendo cada uma sua nota de originalidade, discreta e vivaz.
Aproximados os termos da comparação, a conclusão é lógica.
Quanto ao conforto do corpo, podemos estar mais bem servidos com as residências do tipo moderno – pelo menos quando têm cinco bons quartos como estas.
Mas do ponto de vista do conforto da alma, quanto perdemos!
Seria possível harmonizar num estilo novo ambos os confortos, da alma e do corpo?
O estilo é muito menos produto de um homem, ou de uma equipe de homens, do que de uma sociedade, uma época, uma civilização.
Não cremos que este estilo apareça sem que previamente o mundo de hoje se tenha recristianizado.
E é para preparar este mundo novo fundamentalmente católico, que olhamos com amor estas lembranças do passado cristão de nossa civilização.
Warwick: conjunto de casas que sobreviveu a um incêndio |
(Autor: Plinio Corrêa de Oliveira, “Catolicismo” Nº 46 – Outubro de 1954)
Bulício na rua, aconchego no lar:
agradáveis contrastes da vida medieval
agradáveis contrastes da vida medieval
Mercado medieval, séculos XII-XIII |
Nunca houve tanta atividade, tanta luta, tanta aventura como quando houve remanso.
As ruas das cidades da Idade Média viviam repletas, borbulhando de atividade.
Todos os andares térreos com comércios, anúncios, gente gritando para vender mercadorias, falando alto, brigaria.
As ruas eram movimentadíssimas.
Mas nas casas que bordejavam as ruas, de um lado e de outro, logo na primeira sala se estava psicologicamente a mil léguas da rua.
Não eram como as casas de hoje que têm um janelão que dá para a rua e a pessoa no quarto de dormir se sente na rua.
Mas eram aquelas casas de paredes grossas ‒ parede grossa tem um efeito psicológico tremendo ‒ com umas janelas com onde o peitoril é larguíssimo, com banquinho de um lado e de outro para colocar almofada.
Móveis medievais, Museu de Arte decorativa, Paris |
E um jarrozinho de flor ainda no peitoril da janela.
Porta de casa medieval. Museu de Arte decorativa, Paris |
Os vidros das janelas eram tipo fundo de garrafa, de maneira que o ambiente da casa já ressumia intimidade a poucos centímetros da rua onde está havendo toda aquela barulheira.
Depois, noites calmas e muito recolhidas.
Os bandidos prestavam este serviço: todo mundo tinha medo de sair por falta de iluminação e por causa deles.
Então, fora ruge o perigo, mas dentro, as casas têm portas com dobradiças de metal e trancas aferrolhadas.
De maneira que a pessoa ouve lá fora os bandidos e o guarda que vai correndo atrás deles, se sentido inteiramente seguro em casa.
Dentro, cada um se sente aconchegado, com um carapução e bebendo um chá de losna, com pantufas, junto á lareira que está acesa, enquanto um qualquer vai lendo a história dos antepassados, mesmo nas famílias plebeias. Ou lendo o Evangelho e a vida dos Santos.
Tem-se aquela sensação de tranquilidade...
Quarto de dormir da Idade Média, Museu de Arte Decorativa, Paris. |
Eu aprendi em menino uma canção em alemão que dizia:
“Ouvi, senhor, e permiti que Vos cante que nosso relógio deu doze horas. Meia noite. Doze apóstolos no mundo. Ó homem quanta vigilância isto representa para teu coração”.
Tudo isto, ouvido no isolamento da casa onde mora muita gente, e gente intimamente imbricada pela solidariedade familiar, dá uma atmosfera de aconchego, de calor, de placidez, que é propriamente o remanso dentro da vida familiar.
É um remanso gerado pela reta vida estática, e não é uma paradera de morte.
(Fonte: Plinio Corrêa de Oliveira, 29/4/67. Sem revisão do autor.)
Festas familiares, festins e jogos marcavam o dia a dia
A vida quotidiana medieval
A vida quotidiana medieval
Todos os acontecimentos que atingem a família real, ou apenas a família senhorial do local — nascimentos, casamentos, etc. — são ocasião para distrações e festividades.
Também as feiras comportam a sua dose de diversões.
É nessas ocasiões que os jograis exibem os seus talentos, desde os que recitam fragmentos de canções de gesta ao som do alaúde ou da viola, até aos simples lutadores, que com as suas carantonhas, acrobacias e malabarismos atraem um círculo de pacóvios.
Por vezes, tais antepassados de Tabarin efetuam pantominas, mostram animais inteligentes ou fazem equilíbrio sobre uma corda esticada a alturas impressionantes.
Depois do espetáculo, seja de que gênero for, a distração preferida na Idade Média é a dança. Não há banquete que não seja seguido por um baile.
Danças dos donzéis nos castelos, carolas aldeãs, rondas em torno da árvore de maio. Nenhum passatempo é mais apreciado, sobretudo pela juventude, e os romances e poemas fazem-lhe frequentes alusões.
Aprecia-se a mistura de cantos e de danças, e certos refrães servem de pretexto para bailar e cantarolar, tal como as fogueiras de São João para saltar e fazer rondas.
Também as competições desportivas possuem os seus adeptos: lutas, corridas, saltos em altura e em comprimento, tiro ao arco, são objeto de concursos nas aldeias, entre os burgos e também entre os pajens e escudeiros que compõem a corte de um senhor.
A caça, ocasião de festins e de regozijo, permanece o desporto favorito. Bem entendido, justas e torneios são as principais atrações dos dias de festa ou de grandes recepções.
As crianças, como em todas as sociedades do mundo, imitam nos seus jogos os dos adultos, ou fazem intermináveis jogos de escondidas e de malha.
Os divertimentos de interior não faltam, sobretudo o xadrez.
Durante as cruzadas era jogado com fervor, tanto no exército cruzado como no sarraceno, e são numerosos sobre ele os tratados manuscritos existentes nas nossas bibliotecas.
É sabido que o Velho da Montanha, terrível senhor dos Assassinos, presenteou São Luís com um magnífico tabuleiro de marfim e ouro.
Menos sábios os jogos de mesas, como damas ou gamão, que tinham também os seus adeptos.
Eram sobretudo os dados que faziam furor. Vadios e jograis arruinavam-se com eles.
Rutebeuf fez mais de uma vez essa amarga experiência, e conta em termos patéticos as esperanças incessantemente iludidas e o despertar angustioso dos infelizes jogadores arruinados.
Joga-se com os dados também na casa real.
Jogando xadrez. Coleção Plimpton, Add MS 18. |
Em Marselha, aqueles que tinham esse mau hábito eram mergulhados por três vezes num fosso lodoso, próximo do Vieux-Port.
Puniam-se igualmente os que utilizavam dados viciados ou faziam batota de qualquer outro modo.
As crianças jogavam com os ossinhos.
Mais distintos e praticados na sociedade cortês eram os diversos jogos de espírito: adivinhas, anagramas, pedaços rimados.
Christine de Pisan deixou-nos Jogos para vender, pequenas peças improvisadas plenas de encanto e de poesia ligeira, no gênero de Vendo-vos o meu cestinho.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Lazeres e divertimentos impregnavam a vida quotidiana
Condições de trabalho dos medievais
Condições de trabalho dos medievais
A organização dos lazeres é de base religiosa. Todo feriado é dia de festa, e toda festa começa pelas cerimônias do culto, frequentemente longas e sempre solenes.
Prolongam-se em espetáculos que, dados primitivamente na própria igreja, não tardaram a ser deslocados para o adro.
São as cenas da vida de Cristo, das quais a principal, a Paixão, suscita obras-primas redescobertas pela nossa época.
A Virgem e os santos inspiram também o teatro, e toda a gente conhece o Miracle de Théophile [Milagre de Teófilo], que teve uma voga extraordinária.
São espetáculos essencialmente populares, com o povo por atores e por auditório.
E o auditório é ativo, vibrando a um pequeno pormenor dessas cenas que evocam sentimentos e emoções de uma qualidade muito diferente das do teatro atual, uma vez que não apenas o intelecto ou a sentimentalidade entram em jogo, mas também crenças profundas, capazes de transportar esse mesmo povo até às costas da Ásia Menor, por apelo de um Papa.
Como sempre, é parte integrante a nota paródica, levada muito longe.
Palio de Siena |
Nos nossos dias essas excentricidades fariam escândalo, mas os clérigos não veem mal nenhum, e galhardamente tomam parte nelas.
Não existe apenas o teatro propriamente religioso, e sobre as bancadas levantadas na praça representam-se frequentemente farsas e sotias, ou ainda peças de assuntos romanescos ou históricos.
Quase todas as cidades possuem a sua companhia teatral, dentre as quais ficou célebre a dos clérigos da Basoche, em Paris.
Os festejos públicos têm também o seu lugar ao lado das festas da Igreja.
São por vezes magníficos cortejos, que desfilam pelas ruas por ocasião das assembleias e cortes gerais convocadas pelos reis, e se realizam numa ou noutra das suas residências — em Paris, Orleans — fazendo lembrar os campos de março e campos de maio, para os quais Carlos Magno convocara a nobreza do país em Poissy ou Aix-la-Chapelle.
Nessas ocasiões a corte de França, tão simples em geral, compraz-se numa certa ostentação.
Palio de Siena |
Assim acontece nomeadamente por ocasião da coroação de um rei.
As cidades por onde ele passa após as cerimônias de Reims apressam-se a prestar-lhe uma recepção solene, e essa recepção nada tem de rígido nem de pomposo.
É acompanhada de cortejos grotescos, nos quais saltimbancos e folgazões de profissão, misturados com o público, fazem mil números que pareceriam incompatíveis com a majestade real.
Só se decidiu suprimir essas festas e “palhaçadas do tempo de antanho” por ocasião da entrada de Henrique II em Paris.
Eram ocasião de munificências por vezes inauditas, como fontes jorrando vinho, sobretudo sob o reino dos Valois.
Preparavam-se para elas cozinhas ambulantes, sobre as quais as carnes se amontoavam em enormes espetos.
Foi na mesma época que se tomou gosto pelas mascaradas ou bailes de máscaras, um dos quais ficou tragicamente na memória sob o nome de Bal des ardents (Baile dos ardentes).
Palio de Siena |
Tendo o grupo se aproximado imprudentemente de uma tocha, o fogo ateou-se ao seu traje, e ele teria morrido se não fosse a presença de espírito da duquesa de Berry, que o envolveu nas pregas do seu manto, abafando assim as chamas.
O perigo do qual acabava de escapar não deixou de influir sobre o cérebro já fraco do infortunado monarca, e sobre a enfermidade que o iria atingir.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
O número de horas era ditado pela natureza,
mas havia incontáveis dias de repouso
mas havia incontáveis dias de repouso
O ritmo do trabalho na Idade Média era ditado pelos ritmos da natureza. |
É o sino da paróquia ou do mosteiro vizinho que chama o artesão à oficina e o camponês aos campos, e as horas das trindades mudam com a duração do dia solar.
Em princípio, as pessoas deitam-se e levantam-se ao mesmo tempo que o Sol.
No Inverno o trabalho começa por volta das oito ou nove horas, para terminar às cinco ou seis.
No verão a jornada começa a partir das cinco ou seis da manhã, para só terminar às sete ou oito da noite.
Com as duas interrupções para as refeições, delimitam-se jornadas de trabalho que variam de oito a nove horas no inverno, e no verão até doze ou treze, por vezes quinze horas.
É este ainda o regime habitual das famílias camponesas.
Mas isto não se verifica todos os dias.
Em primeiro lugar, pratica-se aquilo a que se chama a semana inglesa.
Todos os sábados, e nas vésperas dos feriados, o trabalho cessa à uma hora da tarde em certos ofícios; e para todas as pessoas nas vésperas, quer dizer, o mais tardar por volta das quatro horas.
Aplica-se o mesmo regime às festas que não são feriados, isto é, uma trintena de dias por ano, tais como o dia de Cinzas, das Implorações, dos Santos Inocentes, etc.
Repousa-se igualmente na festa do padroeiro da confraria e da paróquia, além de feriado completo no domingo e nos dias de festas obrigatórias.
As festas são muito numerosas na Idade Média: de trinta a trinta e três por ano, segundo as províncias.
Às quatro festas que conhecemos hoje em dia em França acrescentavam-se não só o dia de Finados, a Epifania, as segundas-feiras de Páscoa e de Pentecostes, e três dias na oitava do Natal.
Numerosas outras festas passam mais ou menos desapercebidas atualmente, tais como Purificação, Invenção e Exaltação da Santa Cruz, Anunciação, São João, São Martinho, São Nicolau, etc.
O calendário litúrgico regula assim todo o ano, introduzindo grande variedade, tanto mais que se dá a estas festas muito mais importância do que nos nossos dias.
É pelas datas das festas que se mede o tempo, e não pelos dias do mês. Fala-se do “Santo André”, e não de 30 de novembro, e diz-se três dias depois do São Marcos, de preferência a 28 de abril.
Em sua honra são igualmente preteridas exigências de ordem social, tais como as da justiça, por exemplo.
Os devedores insolúveis, aos quais é designada uma residência forçada — regime que faz lembrar a prisão por dívidas, embora sob uma forma mais doce — podem abandonar a prisão e ir e vir livremente da Quinta-feira Santa até a terça-feira de Páscoa, do sábado à terça-feira de Pentecostes, da véspera de Natal até a Circuncisão.
Estas são noções que nos é difícil hoje em dia compreender perfeitamente.
No total, havia cerca de noventa dias por ano de feriados completos, com setenta dias e mais de feriados parciais, ou seja, cerca de três meses de férias repartidas ao longo do ano, o que garantia uma variedade inesgotável na cadência do trabalho.
Em geral as pessoas queixavam-se mesmo, como o sapateiro de La Fontaine, de ter demasiados dias feriados.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Grandes invenções mudaram o trabalho e a produtividade
Mestre de obras instrui os pedreiros que estão com seus instrumentos |
É necessário contudo mencionar que o carro de mão, cuja invenção uma tradição bem estabelecida atribui a Pascal, já existia na Idade Média, em tudo semelhante àquele de que nos servimos atualmente.
É possível ver manuscritos do século XIV cujas iluminuras mostram trabalhadores transportando pedras ou tijolos em carros de mão, dos quais sustentam um dos braços por meio de uma corda passada sobre o ombro, para poderem transportar mais facilmente a carga. O processo ainda é usado pelos nossos operários.
Devem-se várias invenções à Idade Média, e a sua importância tornou-se demasiado grande com o andar dos tempos, não admitindo que sejam passadas em silêncio: a albarda (jugo) dos cavalos, por exemplo.
Até então a atrelagem concentrava todo o esforço sobre o peito do animal, de tal modo que uma carga um pouco mais importante produzia o risco de sufocação.
Foi no decurso do século X que apareceu a engenhosa ideia de atrelar os animais de carga de modo a que fosse o corpo inteiro a suportar o peso e esforço requeridos.
Esta inovação deveria introduzir uma profunda renovação dos costumes, pois a tração humana havia sido até então superior à animal (Cf. Lefèbvre des Noettes, L'attelage à travers les âges, Paris, 1931).
Ao inverter a ordem das coisas, tornava-se fácil e possível na prática a supressão da escravatura, necessidade econômica da Antiguidade.
A invenção do jugo simplificou o trabalho e multiplicou a produção agrícola |
Essa revolução foi definitiva a partir do dia em que cavalos e burros se encarregaram de uma parte do trabalho humano.
O mesmo se deu com a invenção do moinho hidráulico, depois o moinho de vento, que deveria proporcionar um passo considerável à humanidade, suprimindo a imagem clássica do escravo atrelado à mó.
De alcance menos profundo, mas de incontestável comodidade, o processo que permite a uma viatura girar facilmente sobre si própria, graças ao dispositivo que torna as duas rodas da frente independentes das rodas de trás, não deveria contribuir menos para o progresso e o conforto.
Basta pensar no espaço que devia ser necessário para virar os grandes carros carregados de cereais ou de forragem, e nos atropelos daí resultantes.
É mais que certo que estas invenções tiveram mais efeito do que outras sobre o bem-estar da arraia-miúda, contribuindo sem sobressaltos nem despesas para melhorar eficazmente a sua sorte.
A estas invenções, que deviam modificar radicalmente as condições do trabalho humano, é preciso acrescentar as da bússola e da barra do leme, não menos importantes na história do mundo.
Os progressos da navegação foram por elas decuplicados, o que em parte explica essa intensa circulação a que se assiste no século XIII.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Como se vestiam os medievais? – O triunfo da cor
Parada histórica em Asti, Itália. O prefeito da cidade |
Perante um cenário de fachadas pintadas e de tabuletas rutilantes, o movimento desses homens e mulheres vestidos de tons vivos, contrastando com a túnica negra dos clérigos, o burel castanho dos irmãos mendigantes e a brancura extrema de uma coifa.
Não é possível no mundo moderno imaginar uma tal festa de cores, a não ser nos conhecidos desfiles na Inglaterra por ocasião do casamento de um príncipe e a coroação de um rei.
Ou então em certas cerimônias eclesiásticas, como as que se desenrolam no Vaticano.
Não se trata apenas de indumentárias de luxo, pois os simples camponeses vestem-se com cores claras, vermelhas, ocres, azuis.
A Idade Média parece ter tido horror dos tons sombrios, e tudo o que nos legou — frescos, miniaturas, tapeçarias, vitrais — testemunha essa riqueza de colorido tão característica da época.
Não se deve contudo exagerar o pitoresco ou a excentricidade do traje medieval.
Alguns pormenores, que associamos inevitavelmente aos quadros do tempo, só excepcionalmente fizeram parte da indumentária.
Os sapatos de ponta revirada, por exemplo, estiveram na moda durante meio século, não mais, no decorrer do século XV, que assistiu a não poucos exageros vestimentares.
Cortejo Histórico em Feltre, Itália. Um casal jovem |
Do mesmo modo, a coifa longa e pontiaguda, irresistivelmente evocada pela palavra “castelã”, foi muito menos usada do que a coifa quadrada ou arredondada, que enquadra o rosto e é muitas vezes acompanhada de uma fita sob o queixo, moda corrente no século XIV.
De modo geral, as mulheres da Idade Média usam roupas que seguem a linha do corpo, com um busto muito justo e amplas saias de curvas graciosas.
O corpete abre-se frequentemente sobre a chainse ou camisa de tecido, e as mangas são por vezes duplas, detendo-se as primeiras (as da sobreveste ou traje de cima) nos cotovelos, e as de baixo, de tecido mais ligeiro, indo até aos pulsos.
O pescoço é sempre bem destacado, enquanto as saias arrastam pelo chão, presas por um cinto onde por vezes sobressai uma fivela de joalheria.
O traje masculino quase não se distingue do feminino, pelo menos nos primeiros séculos da Idade Média, mas é mais curto. O calção deixa ver as meias, e por vezes as bragas ou calções.
No decurso do século XII, sob a influência das cruzadas, adotam-se roupas compridas e flutuantes, moda vivamente censurada pela Igreja como sendo efeminada.
Os camponeses usam uma espécie de romeira com capuz, e os burgueses cobrem a cabeça com um carapuço de feltro ou de tecido pregueado.
São muito apreciadas as peles, desde o arminho reservado aos reis e príncipes de sangue, a marta ou o esquilo, até às simples raposas e carneiros, dos quais os aldeões confeccionam sapatos, gorros e casacos compridos.
No século XV, grandes senhores como o duque de Berry gastarão fortunas para comprar peles preciosas, e é também nessa época que o traje se complica, os calções se tornam estreitos e justos, a vasquinha exageradamente curta e franzida na cintura, e os seus ombros acolchoados.
A roupa de baixo existe desde o início da Idade Média, e o exame das miniaturas mostra que é usada tanto pelos camponeses como pelos burgueses.
Havia por toda parte, em França, cânhamos cuja fibra era fiada e tecida em casa, fornecendo um belo tecido resistente. Em contrapartida a roupa de noite não existe, e o seu uso só muito tarde é introduzido.
Cortejo histórico em Asti, Itália. Um casal. |
Vendem-se nas cidades mediterrânicas todas as especialidades da indústria têxtil das Flandres e do norte da França: tecidos de Châlons, estamenha forte de Arras, lençóis de lã de Douai, de Cambrai, de Saint-Quentin, de Metz, panos vermelhos de Ypres, estanforts da Inglaterra, tecidos finos de Reims, feltros e capas de Provins, sem contar especialidades locais como a brunette de Narbona e os panos cinzentos e verdes de Avignon.
O comércio das cidades do litoral, Gênova, Pisa, Marselha, Veneza, permitia a importação dos produtos exóticos da África do Norte, e mesmo da Índia e da Arábia.
Alguns registros de mercadores que freqüentavam a feira da Champagne são tão sugestivos como uma página das Mil e uma noites: panos de ouro de Damasco, sedas e veludos de Acra, véus bordados da Índia, algodões da Armênia, peles da Tartária, couros e cordovões de Tunes ou de Bougie, peles trabalhadas de Oran e de Tlemcen.
A seda e o veludo foram durante muito tempo apanágio da nobreza, sendo os nobres os únicos suficientemente ricos para poderem adquiri-los.
Tudo isto era objeto dos presentes dos príncipes. Em ocasiões de grande regozijo eles distribuem gostosamente ao seu séquito, independentemente do grau, trajes mais ou menos suntuosos.
Mas o luxo excessivo não foi característico da realeza capetiana. A corte só se tornou magnífica sob os Valois, e sobretudo com os príncipes apanagiados — duques de Berry, Borgonha e Anjou.
É sabido, no entanto, que Luís, o Jovem, São Luís e Filipe Augusto se faziam notar pela sobriedade do traje, frequentemente mais simples que o dos seus vassalos.
No que respeita ao traje militar, cometeria um erro quem imaginasse o cavaleiro medieval sob as pesadas armaduras complicadas que se veem nos nossos museus.
Elas não aparecem antes do fim do século XIV, quando as armas de fogo requerem um aparelho defensivo aperfeiçoado.
Nos séculos XII e XIII, a armadura consiste essencialmente na cota de malha, que desce até pouco acima do joelho; e no elmo, pesado e maciço a princípio, que se aperfeiçoa e suaviza depois com viseiras e fitas sob o queixo, móveis e com nasal e frontal.
Para atenuar o brilho do lorigão ou cota de malha, passava-se uma sobreveste de tecido, pano fino ou outro. As grevas e esporões completavam a farpela.
Não é possível fazer melhor ideia da indumentária de guerra da época do que através da bela estátua do Cavaleiro de Bamberg, obra-prima de harmonia e máscula simplicidade.
Mas é necessário um esforço suplementar para reconstituir o espetáculo deslumbrante que deviam apresentar os exércitos de então, com essa multidão de cascos, lanças e espadas chamejando ao sol, a ponto de a sua reverberação ter sido muitas vezes uma causa de derrota para aqueles que se encontravam desfavoravelmente orientados.
Podem-se conceber os gritos de admiração arrancados aos cronistas por essas hostes rutilantes, com as suas bandeirolas e estandartes, os cavalos carapaçonados, as sedas brilhantes abrindo-se sobre as cotas de aço, cada corte agrupada em torno do seu senhor e usando as suas cores.
De fato é na mesma época, em princípios do século XII, que aparece o brasão. Os termos e a maior parte das peças foram tirados do oriente árabe, mas o costume generalizou-se rapidamente na Europa.
Reconstituição histórica da batalha de Hastings, na Inglaterra em 1066 permite apreciar o armamento e vestimentas |
Com uma voga hoje renovada, o brasão faz parte integrante da vida medieval, traduzindo sob uma forma articulada a divisa de um senhor ou de uma família.
É ao mesmo tempo grito de guerra e sinal de aliança. É sabido que cada cor, ou antes cada esmalte, tem a sua significação, como cada móvel a que está aposto: o azul é símbolo de lealdade; o goles, de coragem; o areia, de prudência; e o sinople, de cortesia.
Dos dois metais, a prata significa pureza, e o ouro o ardor e amor. O brasão foi-se complicando ao longo dos séculos, mas desde o seu aparecimento constitui uma ciência e uma espécie de linguagem hermética.
Sob essa forma rica e colorida, que tanto apraz à Idade Média, traduzia todo o feixe de tradições e de ambições que compõe a personalidade moral de cada corte.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
O que comiam os medievais? Passavam fome?
Uma lenda tenazmente arraigada fez do homem da Idade Média um perpétuo morto-de-fome, a ponto de se poder perguntar como é que uma raça subalimentada durante oito séculos e, o que é mais, periodicamente devastada pelas guerras, fomes e epidemias conseguiu sobreviver e produzir ainda rebentos razoavelmente vigorosos.
Em grande parte o erro provém de má interpretação dos termos então em uso.
É exato que na Idade Média as pessoas se alimentavam de ervas e raízes — mas sempre assim foi, pois se designa então por erva tudo o que cresce sobre a terra: couves, espinafres, alfaces, alhos-porros, acelgas, etc.
E por raiz se entende tudo o que cresce dentro da terra: cenouras, nabos, rabanetes, rábanos, etc. Este pormenor foi já posto em relevo, nomeadamente por Funck Brentano.
Houve quem se impressionasse pelo fato de o cardo (chardon) passar então por um prato apreciado, mas na realidade trata-se de alcachofra (cardon), e assim o assunto se torna apenas uma questão de gosto!
Se o camponês ia muitas vezes colher bolota, não era por se mostrar interessado nela para seu próprio alimento, mas para alimentar os seus porcos.
É possível que em certos períodos de excepcional penúria — por exemplo, durante as lutas franco-inglesas, que marcaram o declínio da Idade Média, quando a peste negra veio acrescentar os seus horrores aos da guerra e os bandos devastavam o país cuja defesa deixara de estar organizada — a farinha de bolota tenha servido, como nos nossos dias, como produto de substituição.
Mas nenhum texto nos permite pensar que isso tenha acontecido frequentemente.
Não seria crível que a fome tivesse reinado em estado endêmico na Idade Média.
A fazer fé em Raoul Glaber, cronista de imaginação febril, e que cede facilmente aos efeitos de estilo, tem-se tendência para acreditar que não se passava quase ano nenhum em que, para apaziguar a fome, não se tivesse de recorrer à carne humana e aos cadáveres de crianças recentemente desenterrados.
O monge medieval, ao relatar tais fatos monstruosos, tem o cuidado de não assumir a responsabilidade da afirmação, acrescentando prudentemente: diz-se.
É certo que houve fomes na Idade Média, e que essas fomes foram numerosas, mas a nossa experiência pessoal esclarece-nos plenamente como isso acontece sempre que a ausência ou a insuficiência dos meios de transporte impede que se preste rapidamente auxílio a uma região ameaçada e se permutem os produtos.
Durante a alta Idade Média em particular, quando cada domínio formava pela força das coisas um circuito fechado, as estradas eram ainda pouco seguras, e para garantir a sua manutenção eram exigidas portagens muitas vezes onerosas. Nesses casos, bastava um ano de seca para a penúria se fazer sentir.
É igualmente certo que essas fomes eram localizadas, e em geral não ultrapassavam a extensão de uma província ou de uma diocese.
Mesmo durante o período áureo da Idade Média no século XIII, quando a autarquia dominial foi substituída por trocas fecundas e a circulação se tornou fácil em toda a França, observam-se variações por vezes muito importantes no preço dos gêneros, sobretudo do trigo.
Cada província, cada cidade fixa a sua tarifa de acordo com a colheita local.
Os quadros traçados por Avenel e Wailly mostram, no interior de uma mesma região econômica, oscilações que vão do simples ao dobro, ou mesmo ao triplo, como aconteceu em 1272 no Franco Condado, onde o preço do hectolitro de trigo variou de 4 a 13 francos.
É preciso ainda que nos entendamos sobre o que se designa por fome.
Um texto citado por Luchaire (pouco suspeito de indulgência em relação à Idade Média), de numa obra onde acumula expressamente documentos mostrando a época com características das mais sombrias, pode deixar perplexos os leitores atuais:
“Conta o cronista de Liège que nesse ano (1197) faltou o trigo. Da Epifania até agosto, tivemos de gastar mais de cem marcos para obter pão. Não tivemos nem vinho nem cerveja. Quinze dias antes da colheita, ainda comíamos pão de centeio”. (La société française au temps de Philippe-Auguste, p. 8.)
Se a penúria, para eles, consistia em ter somente pão de centeio, quanto não invejaríamos nós, durante a Segunda Guerra Mundial, a sorte dos nossos antepassados da Idade Média.
Na realidade, a alimentação medieval não era muito diferente da nossa em épocas normais. Naturalmente a base era o pão.
De acordo com a riqueza da região, era de trigo candial, de centeio ou de mistura de trigo e centeio, mas verifica-se que mesmo regiões não produtoras, como o sul da França, utilizam o pão de trigo candial.
Em Marselha, onde o terreno é pobre em trigo e as medidas de exceção para abastecer a cidade são frequentes, a regulamentação muito minuciosa da panificação não prevê farinhas secundárias.
Fabricam-se três espécies de pão: o pão branco, o pão méjan mais grosseiro e o pão integral.
Os preços são fixados segundo uma tarifa rigorosa, estabelecida após exames feitos por três mestres padeiros assistidos por um perito e por homens bons designados pela comuna, tendo em conta os detritos resultantes da moedura, a malaxagem da massa e a cozedura.
Conheciam-se em Paris múltiplas variedades de pães “de fantasia”, dos quais eram mais estimados o de Chilly, o de Gonesse ou pãozinho mole.
Nos locais muito pobres comia-se bolo de aveia, ainda hoje caro aos escoceses, ou de trigo-mouro.
Mas não havia região completamente desamparada, pois a economia de então — a do vasto domínio, cobrindo uma grande região — favorece a policultura.
Não se vê na Idade Média nenhuma região unicamente consagrada à cultura do trigo ou da vinha, e que importe o resto dos produtos de que necessita.
O regime de vastas explorações permite variar suficientemente as culturas, ao mesmo tempo que são consagradas a cada uma delas porções de terra equilibradas.
Roupnel, no seu estudo dos campos franceses (Histoire de la campagne française, p. 366.), observa que o manso (uma ordem de grandeza local, que varia de 10 a 12 hectares modernos segundo a riqueza das regiões) é quase sempre composto de três elementos: campos aráveis, prados, bosques.
Estes apenas representam uma porção muito reduzida, cerca de um décimo da exploração total. A extensão das terras cultivadas é o dobro das terras de pastagens.
Diz ele:
“Este pequeno domínio manifesta-se como um conjunto, e aparece-nos construído à imagem reduzida e completa do próprio território. Não é só a sua imagem, tem ainda a sua vitalidade e duração”.
Os manuscritos de miniaturas, que se inspiram na realidade, são a este respeito muito reveladores, pois em toda parte vemos uma proporção sensivelmente igual de prados, campos e vinhas.
A vinha é cultivada por toda parte em França, o que responde a uma necessidade religiosa tanto como econômica, pois os fiéis, até meados do século XIII, comungam sob as duas espécies, de tal modo que o consumo de vinho para a missa é muito maior do que nos nossos dias.
Algumas das nossas colheitas são, desde essa época, particularmente estimadas: Beaune, Saint-Emilion, Chablis, Epernay. Outras perderam nos nossos dias o renome que outrora possuíam, por exemplo o vinho de Auxerre ou de Mantes-sur-Seine.
Quase em toda parte torna-se necessário defender a produção local contra a importação estrangeira.
Numa cidade como Marselha são tomadas medidas draconianas contra a importação de vinhos ou de uvas provenientes de outros territórios.
Só os condes tinham direito de os importar para seu consumo pessoal. Neste caso, tratava-se provavelmente de vinhos finos da Espanha ou da Itália.
Um navio que entrasse no porto com um carregamento de vinhos ou de uvas expunha-se a vê-lo atirado ao chão, e as uvas espezinhadas.
Nas feitorias ou entrepostos estabelecidos no estrangeiro, é igualmente proibido introduzir vinho da região antes de os mercadores marselheses terem vendido o seu.
A cultura da vinha estava pois muito mais desenvolvida na região marselhesa do que nos nossos dias, e os estatutos da cidade asseguram-lhe uma proteção muito particular: proibição de caçar nas vinhas, exceto para o seu proprietário; proibição de o lavrador levar mais de cinco cachos por dia para seu consumo pessoal, etc.
O vinho foi a bebida essencial da Idade Média. Conhecia-se a cerveja, principalmente a gaulesa de cevada, já fabricada por gauleses e germanos, e também o hidromel.
Mas nada era mais apreciado que o vinho, presente em todas as mesas desde a do senhor à dos criados.
O vinho é ao mesmo tempo um prazer e um remédio. São-lhe reconhecidas toda espécie de virtudes fortificantes, e entra na composição de inúmeros elixires e produtos farmacêuticos, geleias e xaropes.
São também muito apreciados os diversos vinhos licorosos ou licores, em que se puseram a macerar plantas aromáticas: absinto, hissopo, rosmaninho, mirto, a que se adiciona açúcar ou mel.
Antes de se deitarem, era corrente beber uma mistura escaldante de vinho e leite coalhado, que na Inglaterra e na Normandia se chamava posset.
A literatura gaulesa do tempo lhe atribuía toda espécie de poderes, cuja enumeração faria corar as pessoas pudibundas, em todo caso fornecia o calor que faltava então aos apartamentos.
Com exercícios violentos tais como a caça, é certo que o vinho permitia suprir a insuficiência dos meios de aquecimento, no entanto não parece que se tenham feito sentir os males do alcoolismo nem a degenerescência que o acompanha.
Isso deve-se sem dúvida ao fato de nenhuma preparação química e nenhum subproduto adulterado ser então servido como bebida, como também à observação geral das leis eclesiásticas, que permitiam o uso e reprimiam o abuso.
Com o pão e o vinho, havia aquilo a que no Midi catalão se chamava o acompanhamento, isto é, todos os outros alimentos. Contrariamente à opinião generalizada, o consumo de carne era então abundante.
Das investigações levadas a cabo, conclui-se que o gado francês era no século XIII sensivelmente mais importante do que hoje em dia.
Uma pequena localidade pirenaica, que hoje não conta mais de uma dezena de animais de chifres, contava outrora duzentos e cinquenta.
Se bem que as proporções não sejam as mesmas em toda parte, não restam dúvidas de que a criação de gado era praticada de modo muito mais intensivo em França até o dia em que a introdução do gado da América, de menor custo, tornou impossível a concorrência para os nossos criadores.
No que diz respeito ao carneiro, não havia então quinta que não tivesse o seu rebanho, tanto mais que este fornecia aos campos um adubo natural, que hoje se julgou mais cômodo substituir por adubos químicos, o que teve como consequência reduzir consideravelmente o nosso gado ovino.
Sobretudo os porcos eram muito numerosos. Tanto na cidade como no campo, não havia família, por mais pobre, que não criasse pelo menos um ou dois para seu consumo.
A matança do porco fornecia carne e gordura para o ano inteiro, e é uma cena tradicional nos calendários dos meses, tantas vezes esculpidos nos pórticos das nossas igrejas ou pintados nos nossos manuscritos.
Eram conhecidos os processos de salga e defumação, ainda hoje utilizados. Matar o porco era a tal ponto um acontecimento da vida familiar, que só muito tarde se vê aparecerem os salsicheiros.
Mesmo assim, no princípio estes não passam de comerciantes de “pratos preparados”, antes de se especializarem na confecção de salsichas e presuntos.
A corporação dos açougueiros é poderosa desde o início da Idade Média, e é sabido o papel por ela desempenhado nos movimentos populares dos séculos XIV e XV.
Segundo o Ménagier de Paris, o consumo semanal nesta cidade ter-se-ia elevado a 512 bois, 3.130 carneiros, 528 porcos e 306 veados, sem contar o consumo dos palácios reais e principescos, os abatimentos familiares e as diversas feiras de presuntos e outras, que tinham lugar na capital e suas redondezas imediatas.
Também em Marselha é surpreendente o número de prescrições relativas aos animais pertencentes a proprietários da cidade, ou destinados ao consumo dos burgueses.
A isto teremos de acrescentar as aves de capoeira, que eram engordadas como se fazia desde a mais alta Antiguidade: os fígados de ganso e as carnes em conserva faziam então parte dos menus de festa, tal como hoje.
A caça fornecia abundantes recursos, em florestas mais extensas do que hoje em dia e muito ricas em caça.
Há uma infinidade de processos para apanhar a caça, desde os laços ou vulgares anéis até às aves de rapina especialmente treinadas, passando pelas diversas armadilhas, redes e engenhos tais como o arco, a sarabatana, a arbaleta.
Apanhavam-se também as perdizes com isca, e caçavam-se com cães o veado e o javali. Assim, a montaria fazia parte da alimentação corrente.
Em fins da Idade Média o senhor tende a reservar para si o direto de caça no seu domínio, como hoje em dia fazem os proprietários e o próprio Estado.
Mas o pessoal que o auxilia durante as grandes batidas — monteiros, falcoeiros, criados e camponeses — participa dos benefícios das suas realizações. Isso vê-se correntemente nos romances e quadros da época.
Os laticínios fazem igualmente parte da alimentação, e as nossas manteigas e queijos adquirem já desde então o seu renome: queijos gordos de Champagne ou de Brie, anjinhos da Normandia.
Nesta região, a manteiga é praticamente a única matéria gorda usada na cozinha. Como o uso de toda gordura animal é proibido durante a Quaresma, os habitantes obtêm dispensas especiais, por não lhes ser possível obter óleo em quantidade suficiente.
As esmolas prescritas para garantir essa dispensa serviram por vezes para a edificação das igrejas — esta a origem do nome que tem em Rouen a Torre da Manteiga.
Mas trata-se de um caso particular, pois a oliveira encontra-se aclimatada quase em todo a França, o azeite é muito apreciado e entra na composição de vários remédios, como o vinho.
Só ele é autorizado nos dias magros então numerosos, de severa abstinência que se estende igualmente aos ovos.
Durante a Quaresma endurecem-se os ovos que as galinhas põem, para os conservar, e são apresentados à bênção do padre durante as cerimônias de Sexta-Feira Santa, costume que deu origem aos ovos da Páscoa.
As mesmas necessidades da abstinência conduziam os nossos antepassados a consumirem muito peixe. Todos os castelos possuem então um viveiro anexo onde percas, tencas, enguias e cadozes são objeto de uma autêntica cultura.
Também os lagos são cultivados, tal como ainda hoje se pratica numa província como Brenne, e a pesca é seguida por um repovoamento metódico.
A pesca marítima nas costas é uma indústria muito viva, e as associações de pescadores desempenham um papel importante quase em toda parte.
Nas margens do Mediterrâneo, numerosas prescrições asseguram-lhes uma espécie de monopólio da venda do peixe, para proteger o seu comércio contra o dos simples revendedores.
Em Marselha, por exemplo, os revendedores só podem oferecer as suas mercadorias a partir do meio-dia.
É deixada livre a venda dos pequenos peixes, pescados com uma rede de malha fina chamada bourgin — sardinhas, girelas, que se distinguem dos peixes maiores como a cavala ou a dourada, e sobretudo o atum, cuja pesca é muito abundante nas redondezas imediatas do porto.
Sabe-se conservar o peixe e a carne, e os “mercadores de água” que remontam o Sena trazem todos os dias para Paris barris cheios de arenques salgados ou defumados. Um prato comum na época é o craspois, sem dúvida uma variedade de baleia.
Vêm por fim os legumes, que lisonjeiam menos o palato e são por isso a alimentação mais ou menos exclusiva dos monges, a quem o seu estado prescreve a sobriedade e as mortificações.
Comia-se então muitas favas e ervilhas, que desempenhavam o papel das nossas batatas. Para se queixar do seu mau casamento e exprimir a malignidade da sua mulher, Mahieu de Boulogne não sabe dizer nada de melhor que a estrofe seguinte:
Nous sommes comme chien et leu [loup]
Qui s'entrerechignent ès bois,
Et si je veux avoir des pois
Elle fera de la purée!
Somos como cão e lobo
Que se engalfinham nos bosques,
E se eu quero comer ervilhas
Ela fará purê!
São conhecidas diversas variedades de couves: brancas, repolhos, orelha-de-burro. De alfaces, o Ménagier de Paris cita a de França e a de Avignon como sendo as mais apreciadas. Espinafres, azedas, acelgas, abóboras, alho-poró, nabos, rábanos fazem parte da alimentação corrente.
Temos de lhes acrescentar as plantas condimentares, então muito utilizadas para realçar o sabor das carnes e dos legumes: salsa, manjerona, segurelha, basilisco, funcho, hortelã, sem contar as especiarias encomendadas do Oriente em quantidades cada vez maiores, sobretudo a pimenta, tão preciosa que servirá por vezes como uma espécie de moeda.
Algumas comunas mercantis se servirão dela para fazer os seus pagamentos, por exemplo, às casas das ordens militares.
As frutas são então muito apreciadas: peras e maçãs, das quais se sabe extrair a cidra e a perada.
O marmelo passa por ser uma planta medicinal, e dele se faz uma refinada compota. Sobretudo em Orleans, as cerejas e ameixas se põem a secar, tal como as uvas e os figos, e são usadas nos patês e nas conservas de carne, costume que se manteve até aos nossos dias em algumas regiões, principalmente no norte de França.
O pêssego e o damasco, introduzidos pelos árabes, eram já muito apreciados no tempo das cruzadas, mas os morangos e as framboesas permaneceram por muito tempo selvagens e só foram cultivados a partir do século XVI.
Muito antes já se vendiam castanhas nas ruas de Paris, e desde o século XIV se tentava aclimatar as laranjeiras ao nosso solo. Também as amêndoas, nozes e avelãs tinham especial preferência e serviam para a preparação de manjares.
Enfim, desde a Antiguidade eram apreciados os recursos da floresta: castanhas, frutos da faia-do-norte, morangos, abrunhos, etc.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Como comiam os medievais
Refeição num lar nobre |
O escudeiro trinchador, em geral um jovem gentilhomem, tem a função de cortar para cada convidado porções de carne. Nos romances de cavalaria — como Jean de Dammartin et Blonde d'Oxford, obra de Beaumanoir — o cavaleiro servidor da dama cumpre esse papel.
Depõem-se os pedaços diretamente sobre o prato ou sobre fatias de um pão especial, conhecido como pão de trinchar, mais compacto que o pão corrente.
Este costume subsistiu em algumas regiões de Inglaterra, onde os pratos de carne não aparecem à mesa.
Com relação às bebidas, os jarros que as contêm estão sobre um aparador, e o copeiro enche jarros e taças uns após outros, à vontade dos convivas.
Todas as cenas de banquete representam assim escudeiros e servidores indo e vindo durante a refeição, enquanto as damas permanecem sentadas, tal como os senhores de alta posição e os hóspedes familiares da casa.
Galgos de formas esguias ou pequenos caniches volteiam à procura de um pedaço para comer.
Banquete de casamento |
Por vezes é mesmo toda uma pantomima ou uma peça de teatro que se desenrola aos olhos dos convivas.
Põe-se cuidado extremo na apresentação dos pratos: pavões e faisões são postos de pé, revestidos com as suas penas; nas geleias, traça-se toda sorte de cenários.
O serviço compreende em primeiro lugar as sopas, de grande variedade.
Há desde os caldos complicados, muitas vezes temperados com ovos batidos, pedaços de pão torrado e condimentos inesperados como o verjus (licor de uva), até às papas de farinha, de sêmola ou de cevada, que se comem ainda nos nossos campos, e que formavam o fundo da alimentação dos camponeses.
Os franceses eram reputados como grandes comedores de sopas, tal como hoje em dia. Eram igualmente famosos pela excelência dos seus patês e das suas tartes.
A corporação dos pasteleiros de Paris alcançou justa reputação pelos patês de montaria ou de aves, que se vendiam quentinhos na rua, tartes de legumes ou de compotas, realçadas com ervas aromáticas, tomilho, rosmaninho, louro.
Nos festins dados pelos príncipes por ocasião de qualquer recepção, sobretudo a partir do século XVI, certos patês monstruosos encerram cabritos-monteses inteiros, sem prejuízo dos capões, pombos e coelhos que o temperam, entremeados de gordura de porco, temperados com cravinho e açafrão.
Eram também muito apreciadas as carnes grelhadas e assadas.
Dos molhos, cada cozinheiro possuía uma especialidade, sendo o mais apreciado o de alho, vendido já preparado para uso das donas de casa.
Cremes e pratos doces terminam a refeição. Alguns bolos como as filhoses, bolos de amêndoa e o maçapão, contam-se entre aqueles que ainda hoje apreciamos.
Como presente, gostava-se de oferecer compotas de frutas, sobretudo a muito apreciada marmelada e bombons. Eram as guloseimas mais correntes, juntamente com as compotas e os xaropes.
Uma refeição num ambiente popular. |
Varia com o grau de fortuna a alimentação e o refinamento que nela se põe, é claro, mas está fora de dúvida que não se venderiam nas ruas coscorões, patês e produtos exóticos como os figos de Malta, se não houvesse ninguém que os comprasse, ou se só estivessem ao alcance dos ricos burgueses.
O abastecimento destes se fazia em outra escala, e eles tinham em casa os seus cozinheiros.
Nos romances de ofício veem-se jovens aprendizes comprar regularmente pequenos patês quando vão de manhã buscar água na fonte para o consumo da casa, o que quer dizer que o seu preço não era inabordável para a sua bolsa.
E a vida no campo, embora talvez menos variada, não devia ter menos largueza que na cidade, muito pelo contrário, pois a cultura dos campos e a criação do gado davam aos camponeses facilidades que o citadino não tinha.
Quando se quer criar uma cidade, é necessário prometer isenções e privilégios para atrair habitantes.
Isso não seria necessário se o camponês fosse miserável ou desfavorecido em relação ao citadino, como nos nossos dias.
Há todas as razões para crer que da Idade Média datam as sãs tradições gastronômicas que estabeleceram tão solidamente em todo o mundo a reputação da cozinha francesa.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Refinamento dos costumes e alimentação abundante
Reencenação de um jantar dos castelões, hóspedes, empregados e viajantes. Castelo de Amorosa, Califórnia. |
Não só eram gerais hábitos elementares como o de lavar as mãos antes das refeições — na parábola do mau rico, vemo-lo impacientar-se porque a mulher, lenta ao lavar as mãos, o retarda na ida para a mesa —, mas ainda eram cultivados certos preciosismos, como o uso de taças para lavar as mãos na mesa.
O Ménagier de Paris dá uma receita “para fazer água de lavar as mãos à mesa”:
“Ponha-se a ferver salva, em seguida escorra-se a água e faça-se arrefecer até mais do que morna.
“Põe-se no de cima camomila, manjerona ou rosmaninho, e se põe a cozer com cascas de laranja. Também as folhas de loureiro são boas”.
Para que se tenha sentido necessidade de fornecer tais receitas, é preciso que as donas de casa tenham levado muito longe os cuidados com o interior da casa e o sentido da apresentação.
As donas de casa deviam estar atentas para que não faltassem o vinho e as bebidas. Foto do cortejo histórico na cidade de Asti, Itália. |
“Às horas pertinentes, mandai-os sentar à mesa e dai-lhes repasto de uma única espécie de carne, largamente e abundantemente, e não de várias, nem deleitáveis ou delicadas, e servi-lhes uma só bebida alimentícia e não molesta, vinho ou outra, e não várias; e admoestai-os para que comam muito, bebam bem e abundantemente.
“E após o seu segundo labor e nos dias de festa, que tenham outra refeição; e em seguida, a saber, nas vésperas, que sejam saciados abundantemente como antes, e largamente; e se a estação o requerer, que sejam aquecidos e postos a contento”.
Em suma, três refeições ao dia, uma alimentação simples mas sólida, e vinho como bebida.
Isto sobressai igualmente nos romances de ofícios, onde se vê os burgueses abastados comerem com os criados à mesa e alimentá-los do mesmo modo que a si próprios, como já não se pratica senão nos nossos campos.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Como eram as casas populares
O elemento essencial da casa medieval, sobretudo no norte da França, é a sala comum em que se reúne toda a família nas horas das refeições, e que preside a todos os acontecimentos: batismos, casamentos, velório dos mortos. Na sala se vive, nela a família se reúne à noite diante da grande lareira, para se aquecer e contar histórias antes de ir para a cama. Isto se repete tanto nas casas dos camponeses como nos castelos.
Os outros compartimentos são apenas acessórios, o importante é a sala familiar, que os franco-canadenses chamam ainda “viveiro” (le vivoir).
Quando o nível da casa o exige, a cozinha é separada. Por vezes mesmo, nos castelos, ocupa um edifício à parte, sem dúvida para limitar os riscos de incêndio.
As vastas cozinhas de mitra da abadia de Fontevrault, as do palácio dos duques de Borgonha, em Dijon, permaneceram como eram.
Além das múltiplas salas de guarda, salas de aparato e outras que uma residência senhorial pode comportar, a casa burguesa inclui as oficinas de trabalho, se for o caso, e os quartos.
Os banheiros e higiene pessoal
Para entrar em todos os pormenores, encontramos adjacentes aos quartos os redutos chamados longaignes ou privadas, que costumamos designar como W.C.
Por espantoso que possa parecer, não faltava em nenhuma casa da Idade Média aquilo de que Versalhes estava desprovido.
A delicadeza ia mesmo muito longe neste aspecto, pois parecia pouco refinado não possuir as suas privadas particulares.
A regra manda que, pelo menos nas casas burguesas, cada um tenha as suas e seja o único a usá-las.
Os costumes só se tornaram grosseiros neste ponto a partir do século XVI, quando foram desprezadas quase todas as práticas de higiene que a Idade Média conhecia.
A abadia de Cluny, no século XI, não contava menos de quarenta latrinas.
O que poderá parecer mais incrível, embora seja igualmente verdadeiro, é que as latrinas públicas existiam na Idade Média.
Temos provas disso em cidades como Rouen, Amiens, Agen. A sua instalação e manutenção eram objeto de deliberações municipais ou entravam nas contas da cidade.
Nas casas particulares, as privadas situavam-se muitas vezes no último andar.
Banho na Idade Média. |
Utilizava-se mesmo cinzas de madeira, um procedimento parecido com o das mais modernas fossas sépticas, pois têm a propriedade de decompor os detritos orgânicos.
Documentos mencionam a compra de cinzas destinadas às latrinas do hospital de Nîmes, no século XV.
No palácio de Avignon, os condutos desaguavam num esgoto que ia dar no Sorgue.
E sabe-se que foi penetrando pelas fossas das privadas — o único ponto que não se tinha pensado em fortificar! — que os soldados de Filipe Augusto se apoderaram da fortaleza de Château-Gaillard, orgulho de Ricardo Coração-de-Leão.
A mobília
Os quartos eram mobiliados com mais conforto do que geralmente se crê. O mobiliário compreende as camas “bem adornadas e cobertas de colchas e de tapetes, com lençóis brancos e peles” (Cf. Le Ménagier de Paris.), tamboretes, cadeiras de espaldar alto e esses baús e cofres esculpidos onde se guarda a roupa, de que se podem ver ainda belos espécimes nomeadamente no hospício de Beaune.
As madeiras dessa época são muito belas. Preparadas e enceradas devidamente, não absorvem a poeira e são um mau alvo para os insetos. Há ainda as arcas para o pão, os aparadores e guarda-louças.
Quanto às mesas, são simples tábuas que se montam sobre cavaletes no momento de servir, e que se guardam depois junto às paredes para não estorvarem.
Em contrapartida, faz-se muito uso de panos e tapeçarias, que protegem do frio e abafam as correntes de ar. As que nos restam — por exemplo, o admirável conjunto da Dame à la licorne, conservado no Museu de Cluny — dizem bem que partido delas se podia tirar para mobiliar e decorar os interiores;
Trata-se, evidentemente, de um luxo reservado aos castelãos e aos ricos burgueses, mas o hábito de usar tapetes e xairéis (espécie de coberturas) era geral.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
A construção civil se fazia com os materiais da região
Bruges, na Bélgica. |
Segundo os recursos do local, são construídas em tijolo ou em pedra talhada, no caso dos ricos.
Na maior parte dos casos, mistura-se madeira e adobe, como acontece um pouco por toda parte até aos nossos tempos.
Constrói-se no chão toda a armadura da fachada, em vigas sabiamente unidas umas às outras.
A seguir procede-se de uma só vez ao levantamento, com a ajuda de cabrestantes, macacos e polés, para depois se guarnecer os interstícios com tijolos ou com o material usado na região.
As igrejas que nos restam dão em geral a nota do aspecto das casas.
No Languedoc triunfa o tijolo rosa, que dá um brilho tão particular às igrejas de Toulouse ou de Albi.
Kayserberg, na Alsácia, França. |
Nas regiões de terra argilosa, como no Midi provençal, casas e monumentos são cobertos de telhas, que tomaram ao sol essa cor de mel tão característica em aldeias como Riez ou Jouques.
Na Borgonha a telha é de preferência envernizada, rebrilhando os telhados em cores ofuscantes, como no hospício de Beaune e Saint-Bénigne de Dijon.
Na Touraine, no Anjou, utiliza-se a ardósia extraída na região.
E quando as igrejas não são abobadadas, apenas emadeiradas como acontece frequentemente no norte e em torno da bacia parisiense, é porque as florestas, mais numerosas do que as pedreiras, tornavam este modo de revestimento mais econômico.
Nessas regiões, as residências dos particulares eram quase sempre cobertas de colmo, mesmo na cidade, o que não deixava de aumentar os riscos de incêndio.
Leis municipais ditadas pelo costume e os usos locais
Beehive Cottage, em Lyndhurst. Grã-Bretanha. Exemplo de casa camponesa. |
O toque de recolher não tinha outra razão de ser.
Em Marselha recomenda-se aos armadores, quando procedem à brusque (operação que consiste em aquecer a quilha do navio em construção, para o besuntar mais facilmente de pez), que vigiem a chama para esta não ultrapassar uma certa altura.
Dizem os estatutos da cidade: “Nem sempre está ao alcance do homem conter as chamas que ele próprio ateou”.
Após um incêndio que ocorreu em Limoges em 1244, destruindo vinte e duas casas, mandou-se construir vastos reservatórios de água, aonde os burgueses se vinham abastecer em caso de alerta.
Quando se declarava um incêndio, era dever de todos acorrer com um balde d’água ao toque a rebate.
Toda a gente devia colocar outro balde diante da porta de casa, por precaução.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Animais e flores numa casa medieval
A dona de casa deve estender mais longe a sua solicitude (ver posts anteriores):
“Se um dos vossos serviçais cai em enfermidade, separai todas as coisas de uso comum, pensai nele muito amorosa e caridosamente, e visitai-o várias vezes; e pensai nele ou nela muito curiosamente, avançando a sua cura”.
Ela deve igualmente pensar nos “irmãos inferiores”, nesses animais domésticos que parece terem sido muito mais numerosos então do que nos nossos dias.
Não há miniatura de cenas de interior ou de vida familiar onde não figurem cães saltando ao pé dos donos, rondando em volta das mesas nos banquetes, ou ajuizadamente estendidos aos pés da dona ocupada a fiar.
Em todos os jardins se veem pavões desdobrarem ao sol a cauda luzidia. Assim, o autor do Ménagier recomenda à mulher:
“Mandai cuidar principal, cuidadosa e diligentemente dos animais domésticos, como cãezinhos e passarinhos de gaiola; e pensai igualmente nos outros animais domésticos, pois não podem falar, e por isso deveis falar e pensar por eles”.
As reservas de aves eram numerosas, e cada senhor ou burguês tinha o seu equipamento de caça, ainda que reduzido: um cão ou uma matilha, falcões, gaviões ou marelhões.
Se se gosta dos animais, não se apreciam menos as flores.
Além da rua e da casa, o cenário habitual da vida é o jardim.
Os manuscritos de iluminuras mostram inesquecíveis pinturas, com jardins cercados de muros a meia altura, sempre com um poço ou uma fonte, e um riacho que corre nas margens dos relvados.
Muitas vezes são parreiras, árvores em latadas onde acabam de amadurecer os frutos, ou ainda esses bosques de verdura onde, nos romances, cavaleiros e donzelas se encontram.
O que é notável é que a época não conhece a nossa distinção entre jardim hortícola e jardim floral.
Os canteiros acolhem flores e legumes.
Não restam dúvidas de que se achava agradáveis à vista tanto a baga desabrochada de uma couve-flor, a renda delicada das folhas de cenoura e a abundante folhagem de uma planta de melão ou de abóbora, como uma frisa de jacintos ou de tulipas.
Salve sancte custos. Pequeno livro de orações de Renée de France ornado com flores. |
O que não significa que não se apreciem as flores de puro enfeite, pois a nossa literatura lírica mostra-nos sem cessar pastoras e donzéis ocupados a entrançar “rosários” de flores e de folhagem.
Numerosos quadros e tapeçarias têm um fundo de florzinhas de cores suaves.
Mas se os autores das iluminuras semeiam de flores e pássaros os enquadramentos das páginas dos manuscritos, não deixam de tirar partido das plantas hortícolas, e a folha de alcachofra, estranhamente recortada, serviu de modelo a gerações de escultores, nomeadamente na época da arte flamboyant.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
As donas de casa: costumes para cuidar dos lares. Higiene e banho.
Falando dos cuidados vários de uma dona de casa, o Ménagier de Paris recomenda à Beata Agnès, que tem o papel de intendente:
“Ordene às serviçais que, logo de manhãzinha cedo, as entradas da vossa casa — a saber, a sala e os outros locais por onde as pessoas entram e se detêm em casa para conversar — sejam varridas e conservadas limpas; os tamboretes, bancos e xairéis, que estão sobre as arcas, sejam sacudidos e limpos do pó; em seguida os outros quartos sejam limpos e ordenados para esse dia, e de dia para dia, como é próprio do nosso estado”.
Espantar-se-ão talvez de encontrar mencionados nos inventários, como fazendo parte do mobiliário, o fundo-de-banho ou tapete-banheira, espécie de moletom que guarnecia o fundo das banheiras para evitar as farpas, quase inevitáveis quando o fundo é de madeira.
Efetivamente a Idade Média, contrariamente ao que se julga, conhecia os banhos e fazia largo uso deles.
Ainda aqui conviria não confundir as épocas, atribuindo indevidamente ao século XIII a porcaria repelente do século XVI e dos que se lhe seguiram até aos nossos dias.
A Idade Média é uma época de higiene e limpeza. Um dito de uso corrente fala bem daquilo que era considerado como um dos prazeres da existência: Venari, ludere, lavari, bibere, hoc est vivere! (Caçar, jogar, lavar, beber, isto é viver!).
Nos romances de cavalaria, constata-se que as leis da hospitalidade ordenam que se dê um banho aos convidados que chegam de uma longa viagem.
É um hábito corrente, aliás, o de lavar os pés e as mãos quando se entra em casa.
No Ménagier de Paris, sempre se recomenda a uma mulher, para conforto e bem-estar do seu marido, que “tenha um grande fogão para lhe lavar muitas vezes os pés, guarnição de lenha para o aquecer, uma boa cama de penas, lençóis e cobertores, barretes, almofadas, meias e batas limpas”.
Os banhos faziam parte, bem entendido, dos cuidados a dar à pequena infância; Maria de França recorda-o num dos seus lais:
Pelas cidades onde vagueavam,
Sete vezes ao dia repousavam
A criança faziam aleitar
Deitar de novo, e banhar.
Se não se tomava banho todos os dias na Idade Média (seria este um hábito generalizado na nossa época?), pelo menos os banhos faziam parte da vida corrente.
A banheira é uma peça do mobiliário. Não passa muitas vezes de uma simples tina, e o seu nome — dolium, que significa também tonel — pode prestar-se a confusões.
A abadia românica de Cluny, que data do século XI, não comportava menos de doze salas de banho abobadadas, contendo outras tantas banheiras de madeira.
Gostava-se muito de folgar nos rios, no verão, e as Très riches heures du Duc de Berry mostram aldeões e aldeãs lavando-se e nadando num belo dia de agosto, na mais simples indumentária, pois a ideia de pudor de então era muito diferente da que temos hoje em dia: tomava-se banho nu, tal como se dormia nu entre os lençóis.
Existiam banhos ou estufas públicas, e eram muito frequentados.
O Museu Borély, em Marselha, conservou uma tabuleta de banhos em pedra esculpida, que data do século XIII. Paris contava vinte e seis banhos públicos na época de Filipe Augusto, mais do que as piscinas do Paris atual.
Como relata Guilhaume de Villeneuve em Crieries de Paris, todas as manhãs os proprietários dos banhos mandavam “apregoar” pela cidade:
Ouvi o pregão matinal:
Senhores, que vos banhareis
E lavareis sem delongas,
Os banhos estão quentes, acreditem.
Alguns exageravam. No Livre des métiers de Étienne Boileau, prescreve-se: “Que ninguém apregoe nem mande apregoar os seus banhos antes de o dia amanhecer”.
Esses banhos eram aquecidos por meio de galerias e de condutos subterrâneos, procedimento semelhante ao dos banhos romanos.
Alguns particulares tinham mandado instalar em casa um sistema desse gênero.
No palácio de Jacques Cœur, em Bourges, ainda hoje se pode ver uma casa de banho aquecida por condutos muito parecidos com os do moderno aquecimento central, mas trata-se evidentemente de um luxo excepcional para uma casa particular.
É a mesma disposição que se encontrou nos banhos de Dijon, onde as galerias correspondiam a três salas diferentes: a sala de banhos propriamente dita, uma espécie de piscina e o banho de vapor.
Na Idade Média os banhos são acompanhados de banhos de vapor, tal como nos nossos dias as saunas finlandesas, e o nome de estufas que lhes era dado indica suficientemente que uma coisa não era separada da outra.
Os cruzados trouxeram para o Ocidente o hábito de acrescentar a isto salas de depilação, cujo uso aprenderam em contato com os árabes.
Os banhos públicos eram muito frequentados. Podemos mesmo espantar-nos de ver, no século XIII, alguns bispos censurarem as religiosas das cidades latinas do Oriente por irem aos banhos públicos, mas isso prova que, não tendo casas de banho instaladas nos seus mosteiros, elas não deixavam por isso de conservar os seus hábitos de limpeza.
Em Provins, o rei Luís X mandou construir novos banhos em 1309, uma vez que os antigos já não serviam, ob affluentiam populi.
Em Marselha tinha sido regulamentada a sua entrada e fixado um dia especial para os judeus e outro para as prostitutas, para evitar o seu contato com os cristãos e as mulheres respeitáveis.
A Idade Média conhecia igualmente o valor curativo das águas e o uso das curas termais.
No Roman de Flamenca, vê-se uma dama pretextar enfermidades e pedir ao seu médico que lhe prescreva os banhos de Bourbon-l'Archambault, na verdade para poder juntar-se a um belo cavaleiro.
Tudo isto está evidentemente longe das ideias difundidas sobre o asseio na Idade Média, contudo basta confirmá-lo nos documentos que existem.
O erro de avaliação proveio de uma confusão com as épocas que se seguiram, e também de certos textos cômicos que foram indevidamente tomados ao pé da letra.
Langlois fez acerca disto uma observação muito judiciosa:
“Houve quem se espantasse de encontrar no Chastoiement de Robert de Blois certos preceitos de asseio e de conveniência elementares, que podem parecer bem inúteis para damas que não se supõem desprovidas de educação.
“O poeta diz, por exemplo: ‘Não limpem os olhos na toalha, nem o nariz; não bebam demais'. Tais conselhos fazem-nos hoje sorrir, mas o que importa saber é se eles revelam índices da grosseria intrínseca da antiga sociedade de corte, ou se o autor os terá formulado precisamente para provocar o sorriso, e se os homens do século XIII não sorririam disso como nós”. (La vie en France au Moyen Âge, I, p. 161).
Higiene e saúde nas ruas e nas casas,
mais que em séculos posteriores
mais que em séculos posteriores
Casas populares em Troyes, região da Champagne, França. A dignidade, a compostura e a salubridade de casas, ruas e logradouros foram muito prezadas na Idade Média. |
É verdade que não cita monumento nem documento de espécie alguma em apoio à sua afirmação, e concebe-se dificilmente a razão pela qual, se tinham o hábito de viver em pocilgas, os nossos antepassados puseram tanto cuidado em orná-las de janelas com colunas dividindo-as ao meio, de arcaturas trabalhadas assentes em finas colunetas esculpidas, que reproduzem muitas vezes a ornamentação das capelas vizinhas.
Isso ainda se pode ver na Borgonha em Cluny, no Auvergne em Blesle, na Gasconha na pequena vila de Saint-Antonin, para citar apenas casas datadas da época romana, quer dizer, do século XI ou dos primeiros anos do século XII.
Quanto às ruas, longe de serem “cloacas”, são pavimentadas desde muito cedo, e Paris o foi desde os primeiros anos do reinado de Filipe Augusto.
Por um procedimento semelhante ao da Antiguidade, as pedras eram colocadas numa camada de cimento misturado com telhas esmagadas.
Troyes, Amiens, Douai, Dijon foram igualmente pavimentadas em épocas variáveis, como quase todas as cidades de França. E essas cidades possuíam também os seus esgotos, cobertos a maior parte das vezes.
Em Paris, foram descobertos esgotos sob os terrenos do Louvre e do antigo palácio da Trémoille, datando do século XIII, e sabe-se que a Universidade e os arrabaldes da Cité tinham, duzentos anos mais tarde, uma rede que compreendia quatro esgotos e um coletor.
Em Riom, Dijon e muitas outras cidades, foi igualmente possível verificar a presença de esgotos abobadados, atestando o cuidado com a salubridade pública.
Onde não existia o “tudo para o esgoto”, tinham sido criados vazadouros públicos, cujas imundícies eram despejadas nos rios — tal como se faz ainda hoje — ou queimadas.
Assim os estatutos municipais de Marselha ordenam a cada proprietário que varra os terrenos em frente da sua casa, e que arranje maneira de, em caso de chuva, as imundícies não poderem ser arrastadas pelas águas em direção ao porto, pelas ruas inclinadas.
Haviam sido construídas na embocadura das ruas que davam para o porto, que a municipalidade entendia conservar muito limpo, uma espécie de paliçadas destinadas a proteger as águas.
Não menos de quatrocentas libras por ano eram destinadas à sua manutenção.
Para as limpezas que eram efetuadas periodicamente, tinha-se imaginado um engenho composto por uma barca à qual estava fixada uma roda de alcatruzes, que vinham alternadamente raspar o fundo e depunham na barca a lama, que era em seguida despejada ao largo.
Regulamentos particulares velam pela proteção dos locais que o interesse público exige preservar especialmente contra a conspurcação: o açougue e a peixaria, que devem ser lavados com água diariamente, de uma ponta à outra; a pelaria, cujas águas nauseabundas devem ser despejadas num conduto escavado especialmente para o efeito.
Resulta de tudo isto que, na Idade Média como hoje, a salubridade pública não era descuidada.
O maior inconveniente que a isso se podia opor provinha dos animais domésticos, então mais numerosos do que nos nossos dias.
Não era raro ver um rebanho de cabras ou de carneiros, ou mesmo uma manada de vacas, abrir passagem por entre os tabuleiros dos vendedores, provocando desordens e atropelos.
Foi pois fixado um limite a não ser ultrapassado por eles no perímetro da cidade, o que ainda se pode ver em algumas cidades.
Em Londres, rebanhos de carneiros atravessam quotidianamente uma das praças mais movimentadas para ir pastar nos parques.
Havia sobretudo os porcos (cada família criava então uma quantidade suficiente para o consumo familiar) que circulavam na calçada, a despeito das repetidas proibições.
Mas isso não era totalmente mau, pois eles devoravam todos os detritos comestíveis, contribuindo portanto para suprimir uma causa de insalubridade.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Limpo como na Idade Média:
abordagem histórica da época que cultuou a higiene
abordagem histórica da época que cultuou a higiene
A higiene não é uma descoberta dos tempos modernos, mas “uma arte que o século de Luiz XIV menosprezou e que a Idade Média cultuou com amor”, escreveu a historiadora Monique Closson, autora de numerosos livros sobre a criança, a mulher e a saúde no período medieval.
No estudo de referência “Limpo como na Idade Media”, a historiadora mostra com luxo de fontes que desde o século XII são incontáveis os documentos como tratados de medicina, ervolários, romances, fábulas, inventários, contabilidades, que nos mostram a paixão dos medievais pela higiene. Higiene pessoal, da cozinha, dos talheres, etc.
As iluminuras dos manuscritos são documentos insubstituíveis onde os gestos refletem o “clima psicológico ou moral da época”.
O zelo pela higiene veio abaixo no século XVI, com a Renascença e o protestantismo.
Milhares de manuscritos, diz Closson, ilustram o costume medieval.
Bartolomeu o inglês, Vicente de Beauvais, Aldobrandino de Siena, no século XIII, com seus tratados de medicina e de educação “instalaram uma verdadeira obsessão pela limpeza das crianças”.
Eles descrevem todos os pormenores do banho do bebê: três vezes ao dia, as horas, temperatura da água, perto da lareira para não pegar resfriado, etc..
As famosas Chroniques de Froissart, em 1382, descrevem a bacia no mobiliário do conde de Flandes, de ouro e prata.
As dos burgueses eram de metais menos nobres e as camponesas em madeira.
A Idade Média atribuía valor curativo ao banho, como ensinava Bartolomeu o Inglês no Livro sobre as propriedades das coisas.
Na idade adulta os banhos eram quotidianos.
Os centros urbanos tinham banhos públicos quentes copiados da antiguidade romana.
Mas era mais fácil tomar banho quente todo dia em casa.
Na época carolíngia os palácios rivalizavam em salas de banho com os monastérios, que muitas vezes tinham ambulatórios para doentes e funcionavam como hospitais.
Em Paris, em 1292, havia 27 banhos públicos inscritos. São Luis IX os regulamentou em 1268.
Nos séculos XIV e XV, os banhos públicos tiveram um verdadeiro apogeu.
Bruxelas, Bruges, Baden, Dijon, Digne, Rouen, Strasburgo, Chartres... grandes ou pequenas as cidades os acolhiam em quantidade.
Eram vigiados moral e praticamente pelo clero que cuidava da saúde pública.
Os hospitais mantidos pelas ordens religiosas, eram exímios e davam o tom na matéria.
Regulamentos, preços, condições, etc., tudo isso ficou registrado em abundantes documentos, diz Closson.
Dentifrícios, desodorantes, xampus, sabonetes, etc., tirados de essências naturais, são elencados nos tratados conhecidos como ervolários feitos nas abadias.
Historiadores como J. Garnier descreveram com luxo de detalhes os altamente higienizados costumes medievais.
As estações termais também eram largamente apreciadas. Flamenca, romance do século XIII faz o elogio da estação termal de Bourbon-l'Archambault.
Imperadores, príncipes, ricos-homens os frequentavam na Alemanha, Itália, Países Baixos, etc.
A era do ensebamento começou com o fim da Idade Média e durou até o século XX, conclui Monique Closson.
Ao menos até que os movimentos hippies, ecologistas, neo-tribais, etc. voltaram a pôr na moda andar sujo , sem barbear, vestido com blue-jeans e outras peças que estão ou fingem estar em farrapos ou com manchas, que vemos todos os dias na rua, nos transportes, aulas e locais de festa!
(Autor : Monique Closson, "Propre comme au Moyen-Age", Historama N°40, junho 1987)
A segurança nas ruas das cidades medievais
No princípio da Idade Média, procura-se acima de tudo a segurança. Por isso a vida encontra-se totalmente concentrada no domínio, ou quase tanto, configurando um regime de autarquia feudal, ou antes familiar, durante o qual cada corte procura bastar-se a si própria.
Essa necessidade de se agrupar para efeitos de defesa determina a disposição das aldeias, que se encontram agarradas às encostas do domínio senhorial, onde os servos se refugiarão em caso de alerta.
As casas estão amontoadas umas às outras, utilizam a mínima polegada de terreno e não ultrapassam as escarpas da colina em que se ergue o torreão.
Tal disposição é ainda muito visível em castelos como o de Roquebrune, perto de Nice, que data do século XI.
Como era comum nas cidades medievais, Rothenburg ob der Tauber se circundou de muralhas e torres para garantir a segurança, Alemanha |
Se na cidade primitiva predominam ruelas estreitas, não é por gosto, mas por necessidade, porque era preciso que a população se estabelecesse, bem ou mal, na cintura das muralhas.
O mesmo não acontece com os arrabaldes que se multiplicam a partir do fim do século XI.
Se as ruelas são também aí tortuosas, é por seguirem o traçado das muralhas determinado pela configuração geral do local.
Mas não se pense que o alinhamento das casas era deixado à exclusiva fantasia dos habitantes.
A maioria das cidades antigas são construídas de acordo com um plano bem visível.
Em Marselha, por exemplo, as vias principais, como a Rua de São Lourenço, são estritamente paralelas às margens do porto, onde vão desembocar as ruelas transversais.
Quando estas ruas são muito estreitas, pode-se estar certo de que isso acontece por razões muito precisas, como no Midi a defesa do vento ou do sol.
É uma disposição muito judiciosa, e isso fica patente quando em Marselha os adeptos do barão Haussmann traçaram essa lamentável Rua da República, vasto corredor glacial que desfigura a antiga colina dos Moinhos.
A cidade de Bram, na região de Languedoc, França, escolheu um traçado concêntrico das ruas |
Mas, sempre que podem e não são estorvados pelo clima ou pelas condições exteriores, os arquitetos preferem um plano retangular semelhante ao das cidades mais modernas, como as da América ou da Austrália: grandes artérias cruzando-se em ângulo reto, com um espaço reservado no interior do retângulo para a praça pública, na qual se erguem a igreja, o mercado — e se é caso, a câmara municipal — e ruas secundárias paralelas às primeiras.
Assim foi concebida a maioria das cidades novas. Monpazier, na Dordogne, é muito característica a este respeito, com as suas ruas traçadas a esquadria, recortando blocos de casario de uma absoluta regularidade.
Cidades como Aigues-Mortes, Arcis-sur-Aube, Gimont no Gers, apresentam a mesma simetria de desenho.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Boas maneiras e higiene para crianças na Idade Média
Fonte das informações do vídeo: The Book of Curtesye (1477)
Europa saiu do caos quando as famílias se apropriaram indissoluvelmente da terra
Casas camponesas em Veules-les-roses, Normandia Os antepassados foram piratas, os filhos deitaram raízes da terra e forjaram uma civilização. |
E foi assim que se formou a França, obra desses milhares de famílias obstinadamente fixadas ao solo, no tempo e no espaço.
Francos, borguinhões, normandos, visigodos, todos esses povos móveis, cuja massa instável faz da Alta Idade Média um caos tão desconcertante, formavam desde o século X uma nação solidamente ligada à sua terra, unida por laços mais seguros que todas as federações cuja existência se proclamou.
O esforço renovado dessas famílias microscópicas deu origem a uma vasta família, um macrocosmo, cuja brilhante administração a linhagem capetiana simboliza maravilhosamente, conduzindo durante três séculos de pai para filho, gloriosamente, os destinos da França.
É certamente um dos mais belos espetáculos que a história pode oferecer, essa família sucedendo-se em linha direta acima de nós, sem interrupção, sem desfalecimento, durante mais de trezentos anos — tempo equivalente ao que transcorreu desde o rei Henrique IV até a guerra de 1940.
Mas o que importa compreender é que a história dos Capetos diretos é apenas a história de uma família francesa entre milhões de outras.
Esta vitalidade, esta persistência na nossa terra, todos os lares de França a possuíram num grau mais ou menos equivalente, exceção feita a acidentes ou acasos, inevitáveis na existência.
A Idade Média, saída da incerteza e do desacordo, da guerra e da invasão, foi uma época de estabilidade, de permanência no sentido etimológico da palavra.
Isto se deve às instituições familiares, tais como as expõe o nosso direito consuetudinário.
Nelas se conciliam, com efeito, o máximo de independência individual e o máximo de segurança.
Cada indivíduo encontra em casa a ajuda material, e na solidariedade familiar a proteção moral de que pode ter necessidade.
Ao mesmo tempo, a partir do momento em que se basta a si próprio, ele é livre para desenvolver a sua iniciativa, “fazer a sua vida”, nada entrava a expansão da sua personalidade.
Mesmo os laços que o ligam à casa paterna, ao seu passado, às suas tradições, não têm nada de entrave. A vida recomeça inteira para ele, tal como biologicamente recomeça, inteira e nova, para cada ser que vem ao mundo.
Ou também como a experiência pessoal, tesouro incomunicável que cada um deve forjar para si próprio, e que só é válido desde que lhe pertença.
É evidente que tal concepção da família basta para fazer todo o dinamismo e também toda a solidez de uma nação.
A aventura de Robert Guiscard e dos irmãos — filhos-segundos de uma família normanda excessivamente pobre e excessivamente numerosa, que emigra, torna-o rei da Sicília e funda aí uma dinastia poderosa — eis o próprio tipo da história medieval, toda feita de audácia, sentimento familiar e fecundidade.
O direito consuetudinário, que fez a força do nosso país, opunha-se nisso diretamente ao direito romano, no qual a coesão da família se deve apenas à autoridade do chefe, estando todos os membros submetidos a uma rigorosa disciplina durante toda a vida — concepção militar, estatista, repousando sobre uma ideologia de legistas e de funcionários, não sobre o direito natural.
Comparou-se a família nórdica a uma colméia que se desloca periodicamente e se multiplica, renovando os terrenos de colheita; e a família romana a uma colméia que não enxamearia nunca.
Sobre a família “medieval” se disse também que ela formava pioneiros e homens de negócios, enquanto a família romana dava nascimento a militares, administradores, funcionários.
É curioso seguir ao longo dos séculos a história dos povos formados nessas diferentes disciplinas, e verificar os resultados a que chegaram.
A expansão romana tinha sido política e militar, e não étnica. Os romanos conquistaram pelas armas um império e o conservaram por intermédio dos seus burocratas.
Esse império só foi sólido enquanto soldados e funcionários puderam vigiá-lo facilmente. Mas não parou de crescer a desproporção entre a extensão das fronteiras e a centralização, que é o fim ideal e a conseqüência inevitável do direito romano.
O Império desabaria por si próprio, pelas suas próprias instituições, quando o ímpeto das invasões lhe veio dar o golpe de misericórdia.
Podemos opor a este exemplo o das raças anglo-saxônicas. Os seus costumes familiares foram idênticos aos nossos durante toda a Idade Média.
Contrariamente ao que se passou entre nós, eles os mantiveram, e é isso sem dúvida que explica a sua prodigiosa expansão através do mundo.
Vagas de exploradores, pioneiros, comerciantes, aventureiros e temerários, deixando as suas casas a fim de tentarem a sorte, sem por isso esquecerem a terra natal e as tradições dos pais — eis o que funda um império.
O Renascimento retomou o conceito pagão romano da família e afundou a ordem medieval
Os países germânicos, que nos forneceram em grande parte os costumes que a nossa Idade Média adotou, cedo se impuseram o direito romano.
Os seus imperadores estavam em situação de retomar as tradições do Império do Ocidente. Julgavam que o Direito Romano lhes fornecia um excelente instrumento de centralização para unificar as vastas regiões que lhes estavam submetidas.
Portanto, desde muito cedo foi aí posto em prática, e desde o fim do século XIV constituía definitivamente a lei comum do Sacro Império, ao passo que na França a primeira cadeira de Direito Romano só foi instituída na Universidade de Paris em 1679. Por isso a expansão germânica foi mais militar que étnica.
A França foi sobretudo modelada pelo direito consuetudinário.
É certo que temos o hábito de designar o sul do Loire e o vale do Reno como “regiões de direito escrito”, isto é, de direito romano, mas isso significa que os costumes dessas províncias se inspiraram na lei romana, não que o Código Justiniano tenha aí vigorado.
Durante toda a Idade Média a França manteve intactos os seus costumes familiares, as suas tradições domésticas. Somente a partir do século XVI as nossas instituições, sob a influência dos legistas, evoluem num sentido cada vez mais “latino”.
A transformação se opera lentamente, e começa a notar-se em pequenas modificações. A família francesa remodela-se sobre uma base estatista, que ainda não tinha conhecido.
A maioridade é concedida aos vinte e cinco anos, como na Roma antiga, pois aí o filho encontrava-se em perpétua menoridade em relação ao pai, e não havia inconveniente em que ela fosse proclamada bastante tarde.
Ao casamento — considerado até então como um sacramento, com a adesão de duas vontades livres para a realização do seu fim — vem acrescentar-se a noção do contrato, do acordo puramente humano, tendo como base estipulações materiais.
Ao mesmo tempo que o pai de família concentra rapidamente nas suas mãos todo o poder familiar, o Estado encaminha-se para a monarquia absoluta.
A despeito das aparências, a Revolução Francesa não foi um ponto de partida, mas um ponto de chegada — o resultado de uma evolução de dois a três séculos. Ela representa o completo desenvolvimento da lei romana nos nossos costumes, à custa do direito consuetudinário.
O que Napoleão fez foi apenas concluir a obra, instituindo o Código Civil e organizando o exército, o ensino — toda a nação — sobre o ideal funcionarista da Roma antiga.
O direito de propriedade se torna cada vez mais absoluto e individual. Os últimos traços de propriedade coletiva desapareceram no século XIX, com a abolição dos direitos comunais e de terras baldias.
Podemos, aliás, perguntar se o direito romano, quaisquer que sejam os seus méritos, convinha às características da nossa raça, à natureza da nossa terra.
Poderia esse conjunto de leis, forjadas em todos os elementos por legistas e por militares — essa criação doutrinal, teórica, rígida — substituir sem inconvenientes os nossos costumes elaborados pela experiência de gerações, lentamente moldados à medida das nossas necessidades?
Poderia ele substituir os nossos costumes, que nunca foram nada mais que os nossos próprios hábitos, os usos de cada indivíduo — ou, melhor ainda, do grupo de que cada um fazia parte — constatados e formulados juridicamente?
O Direito Romano descristianizado minou a família
O Direito Romano tinha sido concebido por um Estado urbano, não por uma região rural. Falar da Antiguidade é evocar Roma ou Bizâncio, mas para fazer reviver a França medieval é preciso evocar não Paris, mas a Ilha de França; não Bordéus, mas a Guiana; não Rouen, mas a Normandia.
Não podemos concebê-la senão nas suas províncias, de solo fecundo para belo trigo e bom vinho. É um fato significativo, durante a Revolução Francesa, ver quem antes se chamava manant (aquele que fica) tornar-se o cidadão, pois em cidadão há cidade.
Compreende-se, já que a cidade iria deter o poder político, o poder principal, e tendo deixado de existir o costume, a partir daí tudo deveria depender da lei.
As novas divisões administrativas da França — os departamentos, que giram todos à volta de uma cidade, sem ter em conta a qualidade do solo dos campos que a ela se ligam — manifestam bem esta evolução de estado de espírito.
Nessa época a vida familiar estava suficientemente enfraquecida para que pudessem estabelecer-se instituições tais como o divórcio, a alienabilidade do patrimônio ou as leis modernas sobre as sucessões.
As liberdades privadas, das quais antes tinham sido tão ciosos, desapareciam perante a concepção de um Estado centralizado à maneira romana.
Talvez devêssemos procurar aí a origem de problemas que depois se puseram de modo tão agudo: problemas da infância, educação, família, natalidade.
Eles não existiam na Idade Média, porque a família era então uma realidade que possuía para sua existência a base material e moral e as liberdades necessárias.
Francos, borguinhões, normandos, visigodos, todos esses povos móveis, cuja massa instável faz da Alta Idade Média um caos tão desconcertante, formavam desde o século X uma nação solidamente ligada à sua terra, unida por laços mais seguros que todas as federações cuja existência se proclamou.
O esforço renovado dessas famílias microscópicas deu origem a uma vasta família, um macrocosmo, cuja brilhante administração a linhagem capetiana simboliza maravilhosamente, conduzindo durante três séculos de pai para filho, gloriosamente, os destinos da França.
É certamente um dos mais belos espetáculos que a história pode oferecer, essa família sucedendo-se em linha direta acima de nós, sem interrupção, sem desfalecimento, durante mais de trezentos anos — tempo equivalente ao que transcorreu desde o rei Henrique IV até a guerra de 1940.
Mas o que importa compreender é que a história dos Capetos diretos é apenas a história de uma família francesa entre milhões de outras.
Esta vitalidade, esta persistência na nossa terra, todos os lares de França a possuíram num grau mais ou menos equivalente, exceção feita a acidentes ou acasos, inevitáveis na existência.
A Idade Média, saída da incerteza e do desacordo, da guerra e da invasão, foi uma época de estabilidade, de permanência no sentido etimológico da palavra.
Isto se deve às instituições familiares, tais como as expõe o nosso direito consuetudinário.
Nelas se conciliam, com efeito, o máximo de independência individual e o máximo de segurança.
Cada indivíduo encontra em casa a ajuda material, e na solidariedade familiar a proteção moral de que pode ter necessidade.
Ao mesmo tempo, a partir do momento em que se basta a si próprio, ele é livre para desenvolver a sua iniciativa, “fazer a sua vida”, nada entrava a expansão da sua personalidade.
O castelo de Rambures é outro exemplo da Normandia. Uma família nobre abriu o que nós chamaríamos uma 'fazenda'. |
Ou também como a experiência pessoal, tesouro incomunicável que cada um deve forjar para si próprio, e que só é válido desde que lhe pertença.
É evidente que tal concepção da família basta para fazer todo o dinamismo e também toda a solidez de uma nação.
A aventura de Robert Guiscard e dos irmãos — filhos-segundos de uma família normanda excessivamente pobre e excessivamente numerosa, que emigra, torna-o rei da Sicília e funda aí uma dinastia poderosa — eis o próprio tipo da história medieval, toda feita de audácia, sentimento familiar e fecundidade.
O direito consuetudinário, que fez a força do nosso país, opunha-se nisso diretamente ao direito romano, no qual a coesão da família se deve apenas à autoridade do chefe, estando todos os membros submetidos a uma rigorosa disciplina durante toda a vida — concepção militar, estatista, repousando sobre uma ideologia de legistas e de funcionários, não sobre o direito natural.
Comparou-se a família nórdica a uma colméia que se desloca periodicamente e se multiplica, renovando os terrenos de colheita; e a família romana a uma colméia que não enxamearia nunca.
Sobre a família “medieval” se disse também que ela formava pioneiros e homens de negócios, enquanto a família romana dava nascimento a militares, administradores, funcionários.
É curioso seguir ao longo dos séculos a história dos povos formados nessas diferentes disciplinas, e verificar os resultados a que chegaram.
A expansão romana tinha sido política e militar, e não étnica. Os romanos conquistaram pelas armas um império e o conservaram por intermédio dos seus burocratas.
Esse império só foi sólido enquanto soldados e funcionários puderam vigiá-lo facilmente. Mas não parou de crescer a desproporção entre a extensão das fronteiras e a centralização, que é o fim ideal e a conseqüência inevitável do direito romano.
O Império desabaria por si próprio, pelas suas próprias instituições, quando o ímpeto das invasões lhe veio dar o golpe de misericórdia.
Podemos opor a este exemplo o das raças anglo-saxônicas. Os seus costumes familiares foram idênticos aos nossos durante toda a Idade Média.
Contrariamente ao que se passou entre nós, eles os mantiveram, e é isso sem dúvida que explica a sua prodigiosa expansão através do mundo.
Casas populares na Alemanha. |
O Renascimento retomou o conceito pagão romano da família e afundou a ordem medieval
Os países germânicos, que nos forneceram em grande parte os costumes que a nossa Idade Média adotou, cedo se impuseram o direito romano.
Os seus imperadores estavam em situação de retomar as tradições do Império do Ocidente. Julgavam que o Direito Romano lhes fornecia um excelente instrumento de centralização para unificar as vastas regiões que lhes estavam submetidas.
Portanto, desde muito cedo foi aí posto em prática, e desde o fim do século XIV constituía definitivamente a lei comum do Sacro Império, ao passo que na França a primeira cadeira de Direito Romano só foi instituída na Universidade de Paris em 1679. Por isso a expansão germânica foi mais militar que étnica.
A França foi sobretudo modelada pelo direito consuetudinário.
É certo que temos o hábito de designar o sul do Loire e o vale do Reno como “regiões de direito escrito”, isto é, de direito romano, mas isso significa que os costumes dessas províncias se inspiraram na lei romana, não que o Código Justiniano tenha aí vigorado.
Durante toda a Idade Média a França manteve intactos os seus costumes familiares, as suas tradições domésticas. Somente a partir do século XVI as nossas instituições, sob a influência dos legistas, evoluem num sentido cada vez mais “latino”.
A transformação se opera lentamente, e começa a notar-se em pequenas modificações. A família francesa remodela-se sobre uma base estatista, que ainda não tinha conhecido.
A maioridade é concedida aos vinte e cinco anos, como na Roma antiga, pois aí o filho encontrava-se em perpétua menoridade em relação ao pai, e não havia inconveniente em que ela fosse proclamada bastante tarde.
Ao casamento — considerado até então como um sacramento, com a adesão de duas vontades livres para a realização do seu fim — vem acrescentar-se a noção do contrato, do acordo puramente humano, tendo como base estipulações materiais.
Ao mesmo tempo que o pai de família concentra rapidamente nas suas mãos todo o poder familiar, o Estado encaminha-se para a monarquia absoluta.
As famílias burguesas geraram verdadeiras obras primas de aconchego defendendo zelosamente a propriedade familiar. Foto: Dornstetten, Alemanha. |
O que Napoleão fez foi apenas concluir a obra, instituindo o Código Civil e organizando o exército, o ensino — toda a nação — sobre o ideal funcionarista da Roma antiga.
O direito de propriedade se torna cada vez mais absoluto e individual. Os últimos traços de propriedade coletiva desapareceram no século XIX, com a abolição dos direitos comunais e de terras baldias.
Podemos, aliás, perguntar se o direito romano, quaisquer que sejam os seus méritos, convinha às características da nossa raça, à natureza da nossa terra.
Poderia esse conjunto de leis, forjadas em todos os elementos por legistas e por militares — essa criação doutrinal, teórica, rígida — substituir sem inconvenientes os nossos costumes elaborados pela experiência de gerações, lentamente moldados à medida das nossas necessidades?
Poderia ele substituir os nossos costumes, que nunca foram nada mais que os nossos próprios hábitos, os usos de cada indivíduo — ou, melhor ainda, do grupo de que cada um fazia parte — constatados e formulados juridicamente?
O Direito Romano descristianizado minou a família
O Direito Romano tinha sido concebido por um Estado urbano, não por uma região rural. Falar da Antiguidade é evocar Roma ou Bizâncio, mas para fazer reviver a França medieval é preciso evocar não Paris, mas a Ilha de França; não Bordéus, mas a Guiana; não Rouen, mas a Normandia.
Não podemos concebê-la senão nas suas províncias, de solo fecundo para belo trigo e bom vinho. É um fato significativo, durante a Revolução Francesa, ver quem antes se chamava manant (aquele que fica) tornar-se o cidadão, pois em cidadão há cidade.
Compreende-se, já que a cidade iria deter o poder político, o poder principal, e tendo deixado de existir o costume, a partir daí tudo deveria depender da lei.
As novas divisões administrativas da França — os departamentos, que giram todos à volta de uma cidade, sem ter em conta a qualidade do solo dos campos que a ela se ligam — manifestam bem esta evolução de estado de espírito.
Nessa época a vida familiar estava suficientemente enfraquecida para que pudessem estabelecer-se instituições tais como o divórcio, a alienabilidade do patrimônio ou as leis modernas sobre as sucessões.
As liberdades privadas, das quais antes tinham sido tão ciosos, desapareciam perante a concepção de um Estado centralizado à maneira romana.
Talvez devêssemos procurar aí a origem de problemas que depois se puseram de modo tão agudo: problemas da infância, educação, família, natalidade.
Eles não existiam na Idade Média, porque a família era então uma realidade que possuía para sua existência a base material e moral e as liberdades necessárias.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Agricultura orgânica medieval
A nobreza do campo brilhava dirigindo respeitosamente a vida agrícola
Casamento de de Carlos VIII e Ana da Bretanha no castelo de Langeais, França |
A nobreza do campo se encontrava com alguma frequência com a nobreza de cidade.
Mas os desentendimentos entre uns e outros não eram pequenos.
A nobreza da cidade tinha como objetivo a cultura, o brilho e a delicadeza, enquanto a nobreza do campo privilegiava a força, a capacidade de dirigir, de administrar, de conduzir com respeito cerimonioso toda uma população de uma aldeia.
Para a guerra, uns e outros competiam, arriscavam a vida com uma audácia que poderia quase ser chamada de loucura. E que representava, em última análise, a velha tradição heroica da Idade Média.
Para a guerra, nobres do campo e da cidade se vestiam como para as mais belas festas, sabendo que muitos iam morrer. E aqueles que daqui a pouco seriam cadáveres, eram sóis partindo a cavalo para o ataque do adversário.
O bonito era quando, no começo de uma batalha, as filas inimigas se formavam uma em frente da outra, e o general de cada exército passava em revista seu próprio exército. Então era aclamado pelos soldados.
Os franceses, vestidos com a graça e elegância que todos sabem que é a deles, faziam a chamada guerre en dentelles. Dentelles é renda. Guerras de renda.
Eram muitas vezes ainda couraças, porque as armas de fogo da época eram mais fracas e ainda justificavam o uso de couraças refulgentes.
Mas, por cima delas, os nobres usavam golas de seda e rendas, que saíam da altura do pescoço como uma cascata que cobria o aço, cuja refulgência se via através dos movimentos do tecido.
O que é o papel dessas duas nobrezas? Era fazer notar o verso e o reverso da medalha.
O nobre deve ser fino, elegante e leão. Ele deve ser culto, distinto, bon causeur, sabendo conversar agradavelmente.
Mas, ao mesmo tempo, deve ter uma presença que impõe respeito e até medo.
Não podendo tudo isso rebrilhar cumulativamente numa só pessoa, a não ser em casos muito raros, era preciso que houvesse uma nobreza da força e uma nobreza da graça.
A nobreza da força sabia entrar em discussão, em confronto, luta, com a nobreza da diplomacia, da política, da vida de corte e da direção administrativa dos altos cargos e altos feudos do reino.
Então, como não cabe reunir todas essas qualidades a não ser em pessoas excepcionais, era preciso que houvesse duas nobrezas. E que cada uma tomasse sobre si alguma coisa.
E o conjunto constituía la noblesse d'épée du royame de France.
O país que com mais harmonia soube unir as qualidades da nobreza da terra e da nobreza de cidade foi a Alemanha.
Milhares de nobres com castelos ainda da Idade Média muito conservados e habitados por seus antigos donos, tinham um mundo de pequenos estados em que cada nobre era soberano e vivia quase como um pequeno rei dentro dele.
Não havia apenas pequenos reis, havia nobres de categorias intermediárias.
Por essa forma, a nobreza castelã vivia formando sua corte, e sendo o nobre, ele próprio, um pequeno rei do seu pequeno reino ou feudo.
E reunindo numa espécie de miniatura encantadora os traços distintivos de uma nobreza e de outra.
Quem quiser ter ideia como se vivia nesses feudos pode ler um livro francês, escrito por uma fidalga alemã horrivelmente protestante, a Baronesa de Oberkirch.
Essa baronesa fez uma viagem à França de Luís XVI como dama de honra da princesa casada com o príncipe herdeiro da Rússia, portanto, o futuro Czar.
E antes de visitar a França, ela escreveu um pouco sobre Oberkirch e sobre Würtemberg, no qual Oberkirch era uma coisa um pouco mais ou menos como um enclave com certa autonomia própria.
Então ali ela descreve a pequena nobreza alemã vivendo num misto de campo, castelo e palácio que é verdadeiramente um encanto.
A realeza dá o exemplo desse movimento pela outorga de liberdades às comunas rurais.
A “Carta de Lorris”, concedida por Luís VI, suprime as “corvées”, a servidão; reduz as contribuições, simplifica o processo de justiça; e estipula além disso a proteção dos mercados e das feiras:
A pequena vila de Beaumont recebe pouco depois os mesmos privilégios, e logo o movimento se delineia por todo o reino.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Nas ruidosas cidades medievais, onde fervilhava uma população incessantemente atarefada, a voz dos sinos contava as horas, e também isso fazia parte do “fundo sonoro”.
O ângelus — de manhã, ao meio-dia e à noite — marca as horas de trabalho e de repouso, desempenhando o papel das modernas sirenes de fábrica.
O sino anuncia os dias de festa, chama por socorro em caso de alarme, convoca o povo para a assembleia geral, ou os almotacés para o conselho restrito, toca a rebate de incêndio, dobre de finados, carrilhões de festas.
Pela sua voz, pode-se seguir a vida da cidade durante todo o dia, até soar à noite o recolher.
Extinguem-se então as luzes das lojas, os clarões dos assadores; recolhem-se os telheiros, fecham-se os portões; quando se teme qualquer surpresa, fecha-se a cidade e as suas portas, levantam-se as pontes levadiças e baixam-se as grades.
Por vezes é suficiente colocar correntes atravessando as ruas, o que tem igualmente a vantagem, nos bairros mal afamados, de cortar a retirada aos malandros.
Só permanecem iluminados os pavios que dia e noite pestanejam diante das estatuetas da Virgem e dos santos abrigadas em nichos na esquina das casas, e diante dos Cristos no cruzamento das ruas.
Fora da cidade, nos portos, irradiam os faróis que marcam a entrada do ancoradouro e os principais recifes.
Os viajantes retardatários só têm direito de circular munidos de uma tocha.
Nas cidades marítimas, toleram-se as idas e vindas dos que estão à espera de embarque.
Em tempo de alarme, ou quando se declara um sinistro qualquer — incêndio, avaria grave num navio, perigo de naufrágio — as autoridades mandam colocar tochas na equina das ruas, para permitir socorros rápidos e prevenir os acidentes.
A corte do senhor retira-se então para o interior da casa, cujas paredes teve-se a precaução de construir bem espessas, servindo de muralhas contra o frio, o calor e os ruídos importunos.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Grandes montanhas, solitárias e sublimes, que parecem convidar os homens para o recolhimento e a serenidade das mais altas contemplações.
Ao pé do sublime, num vivo e agradável contraste, sorri e floresce o gracioso: uma aldeinha de encanto quase convencional.
Nela se sente a pulsação compassada mas juvenil de uma vida cheia de paz, de pureza, de alegria e de atividade.
A um tempo sublime por seu significado e sua sobranceria, graciosa por sua harmonia e sua beleza.
Unindo, condensando em si e elevando a um plano superior todas as notas da paisagem da qual é ponto central, vê-se a igrejinha barroca.
Este quadro é, por exemplo, o da aldeia de Mittenwald, na Baviera, Alemanha.
A cidade vive de uma atividade artesanal que exige todo um ambiente de harmonia.
Esta atividade, por seu turno é uma fonte de harmonia: os habitantes produzem violinos famosos no mundo inteiro.
O objetivo das presentes observações não é apenas mostrar aos internautas um panorama encantador, típico da católica Baviera.
Mas sim pôr em realce quanto convém à produção artesanal ou artística um ambiente de arte e de poesia.
Máxime quando é vivificado pela presença irradiante da Igreja.
Não será por falta disto que hoje se produzem nas grandes cidades super dinâmicas, super excitadas, super tumultuosas, verdadeiros monstros "artísticos"?
Em Direito podem-se distinguir duas espécies de pessoas jurídicas: as associações e as fundações. Associação é, pelo menos na prática, um conjunto de pessoas que são ou podem vir a ser coletivamente proprietários de um determinado patrimônio, conforme a sociedade possua ou não bens.
O direito de propriedade de cada um dos membros da associação sobre esse patrimônio é tal, que podem, em determinadas condições, dissolver a sociedade por mútuo acordo, dividindo os bens entre si.
Se quiserem, podem também fazer doação do patrimônio para outra sociedade, e se lhes aprouvesse poderiam até queimá-lo. Isto porque os membros de uma sociedade, coletivamente falando, exercem sobre o patrimônio social a plenitude da propriedade.
A configuração jurídica da fundação, porém, é diferente. Ela é um conjunto de bens, doados ou legados por um instituidor, acrescido muitas vezes por doações sucessivas, e que constituem um só patrimônio.
Mas este patrimônio não pertence a ninguém. Não há quem dele possa dizer-se dono. Há os beneficiários do patrimônio, que são as pessoas em vantagem de quem este último existe.
Há ainda os que dirigem o patrimônio, não como quem é dono, mas como em-pregado, sem retirar para si nenhuma vantagem pessoal. Podem receber um ordena-do, mas não podem enriquecer-se com aqueles bens.
Pelo Direito moderno, quem governa situa-se, em relação ao Estado, como o gestor de uma fundação em relação aos bens desta.
Um presidente de República, ou mesmo um rei, segundo a mentalidade mo-derna, não tem o direito de usar ou de reger os negócios sociais em proveito próprio, mas apenas em benefício do Estado.
Ele percebe um ordenado, como um empregado, presta determinados serviços e se retira. Não tem nenhum direito de propriedade sobre o cargo ou sobre o patrimônio do Estado. Nada há que o ligue a esse patrimônio por espécie alguma de propriedade.
Isto se dá de alto a baixo na escala social. Desde um rei ou um presidente de República, até um contínuo de repartição, todos estão em face do Estado, segundo o pensamento moderno, mais ou menos como os gerentes ou os empregados de uma fundação em face desta.
A característica do direito medieval era inteiramente outra. O governador de um Estado, o senhor feudal, o dirigente da cidade, colocavam-se em face do bem público, não como um simples terceiro, mas de maneira tal que houvesse um certo direito de propriedade sobre a função pública de que eram detentores.
A concepção medieval não era portanto a de um Estado gerido à maneira de uma fundação, e em relação à qual todos são terceiros, mas sim a de um Estado entendido como uma sociedade, na qual todos têm um tal ou qual direito de proprieda-de.
Mas havia os que tinham sobre o Estado uma maior participação na propriedade. Isto se dava, ora graças a um direito histórico, ora a grandes feitos, grandes habilidades, grande dedicação na defesa dos bens públicos, ou ainda a qualquer daquelas razões pelas quais um homem se afirma e sobrepuja os demais.
Esses eram os que constituíam as famílias, e os homens mais importantes e graduados. Eles dirigiam o Estado à maneira de co-proprietários.
O rei e o senhor feudal não eram simples titulares do cargo que ocupavam, mas sim os eminentes, dentre os inúmeros proprietários do reino ou do feudo. Os demais tinham um direito de propriedade menor.
A ideia de tudo se considerar como propriedade era tal que, na casa real, até os empregos eram considerados como sendo de propriedade. Assim é que se chegou a mencionar em alguns documentos uma pessoa “que tinha por feudo a cozinha real”.
Temos disto, no direito brasileiro, uma revivescência muito pálida, mas ainda viva: os cartórios de notas.
O tabelião não é propriamente um funcionário público, mas sim o proprietário do cartório; ele presta determinado serviço ao público, credenciado pelo Estado.
Mas sendo ele o proprietário de seu cartório, sua posição é por isso profundamente diferente da de um funcionário público, que não é o proprietário da repartição onde trabalha, como por exemplo um secretário da repartição de Águas e Esgotos.
Este é apenas um funcionário que dirige uma máquina anônima.
Como é o tabelião para seu cartório, assim era o funcionário na concepção medieval. O reino poderia ser considerado como um grande cartório, onde o rei seria o tabelião-mor; os nobres seriam oficiais graduados e co-participantes dos lucros; e por fim a plebe, que também participaria desses lucros.
Ao contrário, no Estado moderno, monárquico ou republicano, impera o ano-nimato, a pura repartição pública, semelhante à organização de uma fundação, constituindo-se portanto num Estado completamente despersonalizado.
Na Idade Média, quando se fala de Estado, fala-se de dinastia.
E quando se fala de dinastia, fala-se do rei que personifica a dinastia e o Estado. Em relação aos dias de hoje, não poderíamos dizer o mesmo. Tomemos ao vivo um exemplo.
Ninguém poderia dizer, hoje em dia, que a rainha Elisabeth II é a Inglaterra.
Ela é uma inglesa bem situada, de muito prestígio social, simpática, esperta, como uma magnífica atriz num grande palco, vivendo como se fosse rainha, usando jóias dignas de uma antiga rainha.
Mas, na ordem concreta dos fatos, a Inglaterra praticamente não tem rainha.
Na Idade Média, pelo contrário, o Estado era personificado pelo rei e por todos aqueles que participavam do poder real, fazendo assim com que o Estado fosse profundamente pessoal.
Nos dias de hoje ele é inteiramente impessoal. Algo de análogo poderia dizer-se de vários dos Estados não monárquicos da Idade Média.
Na Idade Média, como dissemos, o rei era a personificação de todo o Estado, de toda a sociedade feudal.
Mas quando comparamos o rei com um nobre – o rei da França, por exemplo, com o duque da Normandia ou com o duque da Bretanha – vemos nesses duques uma miniatura do rei.
Eles são, em âmbito menor, tudo aquilo que o rei é num âmbito maior. E se considerarmos um nobre de categoria inferior, ele é uma miniatura do duque da Normandia.
Por esse processo, de miniatura em miniatura, chegaríamos até o último grau da hierarquia feudal.
Poder-se-ia simplesmente afirmar que o rei está para um senhor feudal como um original está, em ponto grande, para a sua miniatura?
Ou há nisto alguma realidade mais profunda? Poder-se-ia dizer que um príncipe de Condé era uma miniatura de rei da França?
O fato de se afirmar que é uma miniatura não mostra algo de mais profundo, que é a existência entre eles de um laço feudal? No que consiste propriamente este laço feudal?
Um rei de França desmembra o seu reino em feudos, e dá a cada senhor feudal uma parcela do poder real, de que ele é detentor.
Desse modo o senhor feudal não é apenas uma miniatura do rei, mas participante do poder do rei.
Ele tem parte no poder real; ele é, por assim dizer, uma extensão do rei. É miniatura no sentido de que é uma parcela, e não porque possua tamanho menor e se lhe pareça.
Essa ligação que o senhor feudal tem com o rei faz dele uma espécie de desdobramento do próprio rei.
Os senhores feudais de categoria secundária têm um desdobramento do poder do primeiro senhor feudal, e assim, de participação em participação, chegamos às últimas escalas da hierarquia feudal.
Partimos de uma grande fonte de poder, que é o rei, e encontramos nas várias escalas da hierarquia feudal participações sucessivas, que se assemelham aos galhos de uma árvore.
O rei seria o tronco, e as várias categorias de nobreza seriam os galhos, sucessivamente menores e sucessivamente mais delgados, até constituir o cimo da copa da árvore, toda alimentada por uma mesma seiva, que é o poder real, do qual tudo emana e para o qual tudo tende.
Entretanto não é absorvente. Pelo contrário, deita seus inúmeros galhos em todas as direções.
Eis aí configurada a ideia da participação do poder feudal.
Essa grandeza pessoal, como afirmamos, provém da consciência da dignidade humana levada ao seu mais alto grau.
Quando, porém, além de ter em si a dignidade comum a todos os homens e própria a todo católico, a pessoa acrescenta a isto um outro título – senhora, por exemplo, de um reino, de um Estado, de uma instituição – algo se lhe acrescenta que a engrandece ainda mais.
O mesmo não acontece quando alguém é um mero funcionário de um Reino ou de uma República, pois ao deixar o cargo torna-se apenas um ex-presidente, por exemplo, e nada mais.
É preciso que a pessoa esteja fundida em determinada coletividade humana, e seja pessoalmente a proprietária da direção dessa coletividade, por vinculação pessoal, para que acresça realmente sua pessoa de uma dignidade, que é uma participação da dignidade daquela coletividade humana.
Quanto maior e mais ilustre é essa coletividade à testa da qual está, tanto mais se lhe acrescenta uma nova dignidade. É a dignidade do poder público, fundida na sua pessoa, constituindo-se assim na nota própria da nobreza.
Temos assim, além da nobreza pessoal, moral, a nobreza funcional, que seria essa espécie de encarnação, em um determinado indivíduo, de toda uma coletividade humana e do seu poder.
O homem, tendo disso consciência e elevando sua estatura pessoal à altura dessa dignidade, faz surgir a nota da nobreza em seus vários graus: a distinção, a grandeza, a eminência, a alteza, a majestade.
Príncipes houve, contudo, que não estiveram à altura do cargo que exerceram nem da posição que ocuparam, e por isso ficaram muito abaixo da posição que deveriam ter.
Qual a razão de dizermos que Carlos Magno, com sua pessoa, encheu a história de seu tempo?
É que tinha ele uma personalidade tão inteiramente à altura do cargo que ocupava, que o próprio cargo foi uma decorrência de sua pessoa.
Tornou-se necessária a criação do cargo de imperador, pois ele não cabia na categoria de rei.
A majestade se realiza plenamente num homem quando, além da dignidade da pessoa humana, ele eleva sua personalidade à grandeza que compete à sua função.
A majestade plena lhe advém quando ele encarna o poder supremo, o detém a título de propriedade pessoal e o exerce. Isto é propriamente a majestade.
Poder-se-ia perguntar se é possível ter majestade sem auxílio da graça.
Esta grandeza pessoal, inerente à personificação de uma grande condição, é uma virtude.
Para o homem praticar as virtudes duravelmente e na sua totalidade, precisa necessariamente da colaboração da graça.
A colaboração da grandeza não é necessária, no entanto, para praticar uma ou outra virtude.
Compreende-se portanto que esta virtude possa ser praticada por um homem, sem que para isto tenha colaborado a graça.
Esta é a razão por que encontramos esta majestade realizada a seu modo, e que não é um modo artificial, em grandes personagens pagãos da Antiguidade, como por exemplo o faraó Ramsés II, que é considerado o Luís XIV do Egito.
Contudo, a nobreza, a dignidade, a majestade, alcançam sempre uma realização mais profunda quando resultam de uma colaboração da graça.
A nobreza está associada ao castelo que habita.
A família nobre porta o mesmo nome que é usado para identificar indiferente um ou outro, ou os dois ao mesmo tempo.
O castelo tinha nas origens uma missão militar e a nobreza exercia os deveres militares para proteger a região contra invasores, bandos de criminosos e outros perigos que exigiam o uso das armas.
Por isso era também conhecida como nobreza de sangue, pois o derramava abundantemente para salvar o bem comum, e transmitia a missão pela hereditariedade, quer dizer o sangue, a seus descendentes.
Com a pacificação dos costumes bárbaros por efeito da Igreja e também pela ação da mesma nobreza, as cidades puderam se desenvolver, enriquecer e adquirir peso político.
Nelas apareceu naturalmente uma nobreza da cidade, muitas vezes aparentada com a nobreza do castelo: filhos ou netos dos castelões que mudaram para as cidades e levaram uma vida esplêndida.
Outras vezes não: tratou-se de ricos comerciantes, juízes, literatos ou personalidades que adotaram os estilos dos nobres. E acabaram sendo reconhecidos como verdadeiros aristocratas.
Frequentemente os filhos das duas nobrezas passaram a casar entre si e a se inter-relacionarem profundamente.
A razão de ser dessa nova nobreza não estava mais nas armas, embora fornecesse numerosos e excelentes oficiais para os exércitos do rei e heróis na defesa da região.
Qual era sua razão de ser?
Na verdade, a nobreza urbana tem uma missão, e muito importante.
Ela tem a função, segundo diz Pio XII numa de suas alocuções, empregando um provérbio francês muito bonito — de ser la cloche qui donne le son au village. Deve ser o sino que dá o tom à aldeia.
Ou seja, concretamente, nas cidades deve haver uma nobreza que dê o tom à vida social.
Mas não é só o tom da vida social como modas e costumes.
O tom social, em última análise, exprime a vontade, o modo de ser e de entender de toda a cidade.
Ao mesmo tempo, ela deve ter um poder político na cidade.
Como é que se pode conceber esse poder político? De um modo simples.
Mesmo num regime democrático, em que, portanto, os cargos do poder político são eletivos, se a nobreza que dá o tom sabe influenciar devidamente o povo, ela, independente de mídia, tem uma força de direção, de persuasão, de tração, de levar as pessoas e as coisas atrás de si, e tem uma larga medida de influência.
Se a nobreza da cidade guarda esta influência e sabe exercê-la sobre o geral do povo, ela tem um papel parecido com o do patriciado nas cidades livres da Alemanha, da Suíça, e em geral das cidades livres que pertenceram ao reino de Lotário.
Quer dizer, a faixa de terra opulenta, cheia de história e cheia de futuro, que se estende desde a desembocadura do Reno até à Calábria.
Em linha mais ou menos reta, passando pela Suíça, pelo Luxemburgo, pela Bélgica, atingindo depois o norte da Itália, e descendo a península italiana até o fim.
Essa nobreza de cidade deve caracterizar-se por algumas notas especiais.
Ela deve ter uma certa opulência.
Com essa opulência, ela deve ter um certo brilho de vida.
Com essa opulência e esse brilho de vida, ela deve dar aos habitantes da cidade uma ideia de como é que a vida na cidade — e, portanto, também as mentalidades e os costumes — devem ser.
O tom da cidade é dado por essa nobreza.
(Autor: Plinio Corrêa de Oliveira, palestra em 8/4/94, sem revisão do autor)
Como era a sacralidade de um homem que exercia uma profissão civil na Idade Média – por exemplo, o habitante da cidade?
Na ordem medieval, a mais bela condição civil para o homem era ser professor universitário.
Porque o professor universitário era uma espécie de cavaleiro andante no mundo do pensamento.
Ele ia refutar os sofismas abomináveis, esmagar os hereges, mostrando que estavam falsos nisso, naquilo, naquilo outro, e passava a vida pensando nisto e combatendo os inimigos de Cristo com o pensamento.
O arquétipo do professor e mestre é São Tomás de Aquino. Na Idade Média ele era um ideal que muitos professores universitários procuravam seguir.
O professor universitário não vara com a espada os inimigos da fé como faz o cavaleiro.
Mas vara com a argúcia da inteligência os erros contrários à fé, e forma alunos que são por sua vez capazes de perfurar as heresias, e assim construir as muralhas de pensamento que defendem a fé.
Então, ele é mais ou é menos do que o guerreiro?
Em geral as iluminuras da Idade Média representam um operário trabalhando no seu métier, uma dona de casa cozinhando ou costurando, ou um calígrafo no seu pupitre desenhando uma letra.
Em cima tem um passarinho com um rolozinho de pergaminho meio desenrolado no qual se encontra um trecho da Escritura.
O professor é representado com uma coisa que eu não me farto de admirar: o sossego, a estabilidade, a tranquilidade e o gosto de viver na repetição das mesmas coisas, no interior do mesmo ambiente, fazendo o mesmo trabalho que leva longos dias, meses, e às vezes anos, executado sem pressa, contanto que saia perfeito.
Representa mais ou menos o que na ordem material representa a lei da gravidade.
Sem a gravidade o mundo todo estaria louco. E sem este gênero de gente o mundo enlouqueceria.
(Autor: Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, 28/2/91. Sem revisão do autor)
Na Idade Média descia uma luz sobrenatural sobre o bom senso do pequeno burguês, do operário qualificado ou não qualificado, do pedreiro que passa cinco anos cinzelando uma volta de uma coluna, sem pressa, sem aflição, sem nada, e que termina na hora em que se reza o Angelus.
Ele termina, guarda seus instrumentos de trabalho, vai para casa direto, sem ficar borboleteando pelas ruas nem indo atrás de mulhericas, encontra sua esposa que está preparando o jantar.
Ele se senta, os filhos se põem em torno dele, trazem-lhe uns chinelões bons para pés de elefantes, ele calça aquilo e começa então a doutorar lá, e contar; depois lê um trecho da Escritura, etc.
Uma coisa tocante que naquele tempo se fazia: toda casa, por mais modesta que fosse a família, escrevia seu livro de história, em que se registrava o que aconteceu.
Então, hoje nasceu Carlinhos, filho da Maria e do Pedro pedreiro, ele é forte, tem não sei o quê... mas nasceu com o nariz torto. Não tinha remédio.
Mais adiante: “Fulano e o irmão dele foram despedidos do emprego. Ele foi ato contínuo contratado para ir servir em Valença, no condado de Barcelona. Mas antes de ir ele quer fazer uma peregrinação a tal lugar assim da Itália, depois voltará e deve estar em Barcelona em tal data”.
De tudo que acontecia iam tomando nota, e de vez em quando, nas longas noites de inverno em que anoitecia cedo, e levava muito tempo para o pessoal dormir — não tinha televisão — lia-se o livro de memórias familiares do passado.
Eu acho muito bonito. Essa estabilidade eu acho maravilhosa.
Eu ainda peguei muito a estabilidade do povinho, porque em frente de minha casa na rua Barão de Limeira, no início do século XX, havia todo um renque de casas operárias misturadas com as casas das melhores famílias de São Paulo.
Eu via os operários viverem. E achava a vida deles muito mais sossegada que a nossa.
Sempre que eles entravam em casa, entravam pé ante pé, devagar.
Em geral eu entrava na minha casa, subia a escada de dois em dois, e mal chegava em cima já ia tirando a chave e abrindo para fazer não sei o quê, porque tinha não sei o quê. E eu que sou amigo do sossego, suspirava e dizia: “Afinal, aqueles homens lá não ficam com o melhor da vida?”
No fundo era uma forma de recolhimento. E esse recolhimento estabelecia um nexo do que há de mais alto, de mais sobrenatural com as coisas menores e mais sem importância.
Vamos dizer, uma dona de casa preparando as malas dela para ir passar uma temporada de férias na casa de uma prima. E ela, enquanto se prepara, se lembra de Nossa Senhora preparando a viagem para visitar Santa Isabel e fica pensando na Visitação.
Depois, antes de ir embora, pede a Santa Isabel que proteja a viagem e sai. Tudo isso é densamente impregnado de perfume sobrenatural.
Imaginemos um homem que, por exemplo, frita linguiças na porta de entrada de algum local para vender ao público.
Qual é a diferença entre o medieval e o homem moderno?
É que o medieval, enquanto fritava a linguiça, no interior da alma ficava considerando horizontes internos, proporcionados ao trabalhador manual, mas sempre mais amplos, e nisto era insaciável.
Do meio desse povo, Nossa Senhora selecionava e chamava para horizontes mais insaciáveis alguns que não necessariamente iam ser mártires, mas poderiam ser professores, ou pregadores como São Luís Grignion de Montfort!
Então, o que é que era necessário em qualquer uma das categorias da ordem medieval?
O que era preciso é que cada um na sua condição, sem ter a ambição de se promover, cultivasse as mais altas cogitações e quisesse fazer do modo mais perfeito aquilo que é próprio à sua profissão.
Mas os desentendimentos entre uns e outros não eram pequenos.
A nobreza da cidade tinha como objetivo a cultura, o brilho e a delicadeza, enquanto a nobreza do campo privilegiava a força, a capacidade de dirigir, de administrar, de conduzir com respeito cerimonioso toda uma população de uma aldeia.
Para a guerra, uns e outros competiam, arriscavam a vida com uma audácia que poderia quase ser chamada de loucura. E que representava, em última análise, a velha tradição heroica da Idade Média.
Para a guerra, nobres do campo e da cidade se vestiam como para as mais belas festas, sabendo que muitos iam morrer. E aqueles que daqui a pouco seriam cadáveres, eram sóis partindo a cavalo para o ataque do adversário.
Reencenação histórica no castelo de Fontaine-Henry, França |
Os franceses, vestidos com a graça e elegância que todos sabem que é a deles, faziam a chamada guerre en dentelles. Dentelles é renda. Guerras de renda.
Eram muitas vezes ainda couraças, porque as armas de fogo da época eram mais fracas e ainda justificavam o uso de couraças refulgentes.
Mas, por cima delas, os nobres usavam golas de seda e rendas, que saíam da altura do pescoço como uma cascata que cobria o aço, cuja refulgência se via através dos movimentos do tecido.
O que é o papel dessas duas nobrezas? Era fazer notar o verso e o reverso da medalha.
O nobre deve ser fino, elegante e leão. Ele deve ser culto, distinto, bon causeur, sabendo conversar agradavelmente.
Mas, ao mesmo tempo, deve ter uma presença que impõe respeito e até medo.
Em volta dos castelos, a nobreza promoveu uma agricultura de grande qualidade |
A nobreza da força sabia entrar em discussão, em confronto, luta, com a nobreza da diplomacia, da política, da vida de corte e da direção administrativa dos altos cargos e altos feudos do reino.
Então, como não cabe reunir todas essas qualidades a não ser em pessoas excepcionais, era preciso que houvesse duas nobrezas. E que cada uma tomasse sobre si alguma coisa.
E o conjunto constituía la noblesse d'épée du royame de France.
O país que com mais harmonia soube unir as qualidades da nobreza da terra e da nobreza de cidade foi a Alemanha.
Milhares de nobres com castelos ainda da Idade Média muito conservados e habitados por seus antigos donos, tinham um mundo de pequenos estados em que cada nobre era soberano e vivia quase como um pequeno rei dentro dele.
Não havia apenas pequenos reis, havia nobres de categorias intermediárias.
Festa no castelo de Vaux-le-Vicomte, França |
E reunindo numa espécie de miniatura encantadora os traços distintivos de uma nobreza e de outra.
Quem quiser ter ideia como se vivia nesses feudos pode ler um livro francês, escrito por uma fidalga alemã horrivelmente protestante, a Baronesa de Oberkirch.
Essa baronesa fez uma viagem à França de Luís XVI como dama de honra da princesa casada com o príncipe herdeiro da Rússia, portanto, o futuro Czar.
E antes de visitar a França, ela escreveu um pouco sobre Oberkirch e sobre Würtemberg, no qual Oberkirch era uma coisa um pouco mais ou menos como um enclave com certa autonomia própria.
Então ali ela descreve a pequena nobreza alemã vivendo num misto de campo, castelo e palácio que é verdadeiramente um encanto.
(Autor: Plinio Corrêa de Oliveira, palestra em 8/4/94, sem revisão do autor)
A realeza era a grande protetora dos privilégios burgueses e camponeses
A realeza dá o exemplo desse movimento pela outorga de liberdades às comunas rurais.
A “Carta de Lorris”, concedida por Luís VI, suprime as “corvées”, a servidão; reduz as contribuições, simplifica o processo de justiça; e estipula além disso a proteção dos mercados e das feiras:
A pequena vila de Beaumont recebe pouco depois os mesmos privilégios, e logo o movimento se delineia por todo o reino.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Os ritmos da vida e horários ditados pelos sinos religiosos e públicos
Relógio público na cidade de Rouen, França. |
O ângelus — de manhã, ao meio-dia e à noite — marca as horas de trabalho e de repouso, desempenhando o papel das modernas sirenes de fábrica.
O sino anuncia os dias de festa, chama por socorro em caso de alarme, convoca o povo para a assembleia geral, ou os almotacés para o conselho restrito, toca a rebate de incêndio, dobre de finados, carrilhões de festas.
Pela sua voz, pode-se seguir a vida da cidade durante todo o dia, até soar à noite o recolher.
Extinguem-se então as luzes das lojas, os clarões dos assadores; recolhem-se os telheiros, fecham-se os portões; quando se teme qualquer surpresa, fecha-se a cidade e as suas portas, levantam-se as pontes levadiças e baixam-se as grades.
Por vezes é suficiente colocar correntes atravessando as ruas, o que tem igualmente a vantagem, nos bairros mal afamados, de cortar a retirada aos malandros.
Só permanecem iluminados os pavios que dia e noite pestanejam diante das estatuetas da Virgem e dos santos abrigadas em nichos na esquina das casas, e diante dos Cristos no cruzamento das ruas.
Fora da cidade, nos portos, irradiam os faróis que marcam a entrada do ancoradouro e os principais recifes.
Os viajantes retardatários só têm direito de circular munidos de uma tocha.
Nas cidades marítimas, toleram-se as idas e vindas dos que estão à espera de embarque.
Em tempo de alarme, ou quando se declara um sinistro qualquer — incêndio, avaria grave num navio, perigo de naufrágio — as autoridades mandam colocar tochas na equina das ruas, para permitir socorros rápidos e prevenir os acidentes.
A corte do senhor retira-se então para o interior da casa, cujas paredes teve-se a precaução de construir bem espessas, servindo de muralhas contra o frio, o calor e os ruídos importunos.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
Produção artesanal ou artística, e meio ambiente
Torre da igrejinha de Mittenwald, Alemanha. A igreja dá o tom à cidade e ao meio ambiente. |
Ao pé do sublime, num vivo e agradável contraste, sorri e floresce o gracioso: uma aldeinha de encanto quase convencional.
Nela se sente a pulsação compassada mas juvenil de uma vida cheia de paz, de pureza, de alegria e de atividade.
A um tempo sublime por seu significado e sua sobranceria, graciosa por sua harmonia e sua beleza.
Unindo, condensando em si e elevando a um plano superior todas as notas da paisagem da qual é ponto central, vê-se a igrejinha barroca.
Este quadro é, por exemplo, o da aldeia de Mittenwald, na Baviera, Alemanha.
Num contexto natural de sonho, um a cidadinha de sonho, arte, artesanato e música. Na sociedade orgânica, vida, progresso e natureza se harmonizam instintivamente. |
Esta atividade, por seu turno é uma fonte de harmonia: os habitantes produzem violinos famosos no mundo inteiro.
O objetivo das presentes observações não é apenas mostrar aos internautas um panorama encantador, típico da católica Baviera.
Mas sim pôr em realce quanto convém à produção artesanal ou artística um ambiente de arte e de poesia.
Mittenwald: o museu do violino |
Máxime quando é vivificado pela presença irradiante da Igreja.
Não será por falta disto que hoje se produzem nas grandes cidades super dinâmicas, super excitadas, super tumultuosas, verdadeiros monstros "artísticos"?
Plinio Corrêa de Oliveira, CATOLICISMO, dezembro de 1962
Os cargos pertenciam a uma família diversamente do atual funcionalismo público
Em Direito podem-se distinguir duas espécies de pessoas jurídicas: as associações e as fundações. Associação é, pelo menos na prática, um conjunto de pessoas que são ou podem vir a ser coletivamente proprietários de um determinado patrimônio, conforme a sociedade possua ou não bens.
O direito de propriedade de cada um dos membros da associação sobre esse patrimônio é tal, que podem, em determinadas condições, dissolver a sociedade por mútuo acordo, dividindo os bens entre si.
Se quiserem, podem também fazer doação do patrimônio para outra sociedade, e se lhes aprouvesse poderiam até queimá-lo. Isto porque os membros de uma sociedade, coletivamente falando, exercem sobre o patrimônio social a plenitude da propriedade.
A configuração jurídica da fundação, porém, é diferente. Ela é um conjunto de bens, doados ou legados por um instituidor, acrescido muitas vezes por doações sucessivas, e que constituem um só patrimônio.
Mas este patrimônio não pertence a ninguém. Não há quem dele possa dizer-se dono. Há os beneficiários do patrimônio, que são as pessoas em vantagem de quem este último existe.
Há ainda os que dirigem o patrimônio, não como quem é dono, mas como em-pregado, sem retirar para si nenhuma vantagem pessoal. Podem receber um ordena-do, mas não podem enriquecer-se com aqueles bens.
Estado-fundação e Estado-propriedade
Pelo Direito moderno, quem governa situa-se, em relação ao Estado, como o gestor de uma fundação em relação aos bens desta.
Um presidente de República, ou mesmo um rei, segundo a mentalidade mo-derna, não tem o direito de usar ou de reger os negócios sociais em proveito próprio, mas apenas em benefício do Estado.
Ele percebe um ordenado, como um empregado, presta determinados serviços e se retira. Não tem nenhum direito de propriedade sobre o cargo ou sobre o patrimônio do Estado. Nada há que o ligue a esse patrimônio por espécie alguma de propriedade.
Isto se dá de alto a baixo na escala social. Desde um rei ou um presidente de República, até um contínuo de repartição, todos estão em face do Estado, segundo o pensamento moderno, mais ou menos como os gerentes ou os empregados de uma fundação em face desta.
A característica do direito medieval era inteiramente outra. O governador de um Estado, o senhor feudal, o dirigente da cidade, colocavam-se em face do bem público, não como um simples terceiro, mas de maneira tal que houvesse um certo direito de propriedade sobre a função pública de que eram detentores.
A concepção medieval não era portanto a de um Estado gerido à maneira de uma fundação, e em relação à qual todos são terceiros, mas sim a de um Estado entendido como uma sociedade, na qual todos têm um tal ou qual direito de proprieda-de.
Mas havia os que tinham sobre o Estado uma maior participação na propriedade. Isto se dava, ora graças a um direito histórico, ora a grandes feitos, grandes habilidades, grande dedicação na defesa dos bens públicos, ou ainda a qualquer daquelas razões pelas quais um homem se afirma e sobrepuja os demais.
Esses eram os que constituíam as famílias, e os homens mais importantes e graduados. Eles dirigiam o Estado à maneira de co-proprietários.
O rei e o senhor feudal não eram simples titulares do cargo que ocupavam, mas sim os eminentes, dentre os inúmeros proprietários do reino ou do feudo. Os demais tinham um direito de propriedade menor.
A ideia de tudo se considerar como propriedade era tal que, na casa real, até os empregos eram considerados como sendo de propriedade. Assim é que se chegou a mencionar em alguns documentos uma pessoa “que tinha por feudo a cozinha real”.
Temos disto, no direito brasileiro, uma revivescência muito pálida, mas ainda viva: os cartórios de notas.
O tabelião não é propriamente um funcionário público, mas sim o proprietário do cartório; ele presta determinado serviço ao público, credenciado pelo Estado.
Mas sendo ele o proprietário de seu cartório, sua posição é por isso profundamente diferente da de um funcionário público, que não é o proprietário da repartição onde trabalha, como por exemplo um secretário da repartição de Águas e Esgotos.
Este é apenas um funcionário que dirige uma máquina anônima.
Como é o tabelião para seu cartório, assim era o funcionário na concepção medieval. O reino poderia ser considerado como um grande cartório, onde o rei seria o tabelião-mor; os nobres seriam oficiais graduados e co-participantes dos lucros; e por fim a plebe, que também participaria desses lucros.
Ao contrário, no Estado moderno, monárquico ou republicano, impera o ano-nimato, a pura repartição pública, semelhante à organização de uma fundação, constituindo-se portanto num Estado completamente despersonalizado.
São Luís, rei da França. |
Graus diversos de participação na propriedade
Na Idade Média, quando se fala de Estado, fala-se de dinastia.
E quando se fala de dinastia, fala-se do rei que personifica a dinastia e o Estado. Em relação aos dias de hoje, não poderíamos dizer o mesmo. Tomemos ao vivo um exemplo.
Ninguém poderia dizer, hoje em dia, que a rainha Elisabeth II é a Inglaterra.
Ela é uma inglesa bem situada, de muito prestígio social, simpática, esperta, como uma magnífica atriz num grande palco, vivendo como se fosse rainha, usando jóias dignas de uma antiga rainha.
Mas, na ordem concreta dos fatos, a Inglaterra praticamente não tem rainha.
Na Idade Média, pelo contrário, o Estado era personificado pelo rei e por todos aqueles que participavam do poder real, fazendo assim com que o Estado fosse profundamente pessoal.
Nos dias de hoje ele é inteiramente impessoal. Algo de análogo poderia dizer-se de vários dos Estados não monárquicos da Idade Média.
Na Idade Média, como dissemos, o rei era a personificação de todo o Estado, de toda a sociedade feudal.
Mas quando comparamos o rei com um nobre – o rei da França, por exemplo, com o duque da Normandia ou com o duque da Bretanha – vemos nesses duques uma miniatura do rei.
Eles são, em âmbito menor, tudo aquilo que o rei é num âmbito maior. E se considerarmos um nobre de categoria inferior, ele é uma miniatura do duque da Normandia.
Por esse processo, de miniatura em miniatura, chegaríamos até o último grau da hierarquia feudal.
O conceito do laço feudal
Poder-se-ia simplesmente afirmar que o rei está para um senhor feudal como um original está, em ponto grande, para a sua miniatura?
Ou há nisto alguma realidade mais profunda? Poder-se-ia dizer que um príncipe de Condé era uma miniatura de rei da França?
O fato de se afirmar que é uma miniatura não mostra algo de mais profundo, que é a existência entre eles de um laço feudal? No que consiste propriamente este laço feudal?
Um rei de França desmembra o seu reino em feudos, e dá a cada senhor feudal uma parcela do poder real, de que ele é detentor.
Desse modo o senhor feudal não é apenas uma miniatura do rei, mas participante do poder do rei.
Ele tem parte no poder real; ele é, por assim dizer, uma extensão do rei. É miniatura no sentido de que é uma parcela, e não porque possua tamanho menor e se lhe pareça.
Essa ligação que o senhor feudal tem com o rei faz dele uma espécie de desdobramento do próprio rei.
Os senhores feudais de categoria secundária têm um desdobramento do poder do primeiro senhor feudal, e assim, de participação em participação, chegamos às últimas escalas da hierarquia feudal.
Partimos de uma grande fonte de poder, que é o rei, e encontramos nas várias escalas da hierarquia feudal participações sucessivas, que se assemelham aos galhos de uma árvore.
O rei seria o tronco, e as várias categorias de nobreza seriam os galhos, sucessivamente menores e sucessivamente mais delgados, até constituir o cimo da copa da árvore, toda alimentada por uma mesma seiva, que é o poder real, do qual tudo emana e para o qual tudo tende.
Entretanto não é absorvente. Pelo contrário, deita seus inúmeros galhos em todas as direções.
Eis aí configurada a ideia da participação do poder feudal.
A personalização dos cargos enchia de dignidade todas as classes sociais
Essa grandeza pessoal, como afirmamos, provém da consciência da dignidade humana levada ao seu mais alto grau.
Quando, porém, além de ter em si a dignidade comum a todos os homens e própria a todo católico, a pessoa acrescenta a isto um outro título – senhora, por exemplo, de um reino, de um Estado, de uma instituição – algo se lhe acrescenta que a engrandece ainda mais.
O mesmo não acontece quando alguém é um mero funcionário de um Reino ou de uma República, pois ao deixar o cargo torna-se apenas um ex-presidente, por exemplo, e nada mais.
É preciso que a pessoa esteja fundida em determinada coletividade humana, e seja pessoalmente a proprietária da direção dessa coletividade, por vinculação pessoal, para que acresça realmente sua pessoa de uma dignidade, que é uma participação da dignidade daquela coletividade humana.
Quanto maior e mais ilustre é essa coletividade à testa da qual está, tanto mais se lhe acrescenta uma nova dignidade. É a dignidade do poder público, fundida na sua pessoa, constituindo-se assim na nota própria da nobreza.
Temos assim, além da nobreza pessoal, moral, a nobreza funcional, que seria essa espécie de encarnação, em um determinado indivíduo, de toda uma coletividade humana e do seu poder.
O homem, tendo disso consciência e elevando sua estatura pessoal à altura dessa dignidade, faz surgir a nota da nobreza em seus vários graus: a distinção, a grandeza, a eminência, a alteza, a majestade.
Príncipes houve, contudo, que não estiveram à altura do cargo que exerceram nem da posição que ocuparam, e por isso ficaram muito abaixo da posição que deveriam ter.
Qual a razão de dizermos que Carlos Magno, com sua pessoa, encheu a história de seu tempo?
É que tinha ele uma personalidade tão inteiramente à altura do cargo que ocupava, que o próprio cargo foi uma decorrência de sua pessoa.
Tornou-se necessária a criação do cargo de imperador, pois ele não cabia na categoria de rei.
A majestade se realiza plenamente num homem quando, além da dignidade da pessoa humana, ele eleva sua personalidade à grandeza que compete à sua função.
A majestade plena lhe advém quando ele encarna o poder supremo, o detém a título de propriedade pessoal e o exerce. Isto é propriamente a majestade.
Poder-se-ia perguntar se é possível ter majestade sem auxílio da graça.
Esta grandeza pessoal, inerente à personificação de uma grande condição, é uma virtude.
Para o homem praticar as virtudes duravelmente e na sua totalidade, precisa necessariamente da colaboração da graça.
A colaboração da grandeza não é necessária, no entanto, para praticar uma ou outra virtude.
Compreende-se portanto que esta virtude possa ser praticada por um homem, sem que para isto tenha colaborado a graça.
Esta é a razão por que encontramos esta majestade realizada a seu modo, e que não é um modo artificial, em grandes personagens pagãos da Antiguidade, como por exemplo o faraó Ramsés II, que é considerado o Luís XIV do Egito.
Contudo, a nobreza, a dignidade, a majestade, alcançam sempre uma realização mais profunda quando resultam de uma colaboração da graça.
A nobreza urbana: “o sino que dá o tom na cidade”
Cortejo histórico na cidade de Asti, Itália |
A família nobre porta o mesmo nome que é usado para identificar indiferente um ou outro, ou os dois ao mesmo tempo.
O castelo tinha nas origens uma missão militar e a nobreza exercia os deveres militares para proteger a região contra invasores, bandos de criminosos e outros perigos que exigiam o uso das armas.
Por isso era também conhecida como nobreza de sangue, pois o derramava abundantemente para salvar o bem comum, e transmitia a missão pela hereditariedade, quer dizer o sangue, a seus descendentes.
Com a pacificação dos costumes bárbaros por efeito da Igreja e também pela ação da mesma nobreza, as cidades puderam se desenvolver, enriquecer e adquirir peso político.
Nelas apareceu naturalmente uma nobreza da cidade, muitas vezes aparentada com a nobreza do castelo: filhos ou netos dos castelões que mudaram para as cidades e levaram uma vida esplêndida.
Outras vezes não: tratou-se de ricos comerciantes, juízes, literatos ou personalidades que adotaram os estilos dos nobres. E acabaram sendo reconhecidos como verdadeiros aristocratas.
Frequentemente os filhos das duas nobrezas passaram a casar entre si e a se inter-relacionarem profundamente.
A razão de ser dessa nova nobreza não estava mais nas armas, embora fornecesse numerosos e excelentes oficiais para os exércitos do rei e heróis na defesa da região.
Qual era sua razão de ser?
Cortejo histórico em Asti, Itália |
Ela tem a função, segundo diz Pio XII numa de suas alocuções, empregando um provérbio francês muito bonito — de ser la cloche qui donne le son au village. Deve ser o sino que dá o tom à aldeia.
Ou seja, concretamente, nas cidades deve haver uma nobreza que dê o tom à vida social.
Mas não é só o tom da vida social como modas e costumes.
O tom social, em última análise, exprime a vontade, o modo de ser e de entender de toda a cidade.
Ao mesmo tempo, ela deve ter um poder político na cidade.
Cortejo Histórico na cidade de Florença, Itália |
Mesmo num regime democrático, em que, portanto, os cargos do poder político são eletivos, se a nobreza que dá o tom sabe influenciar devidamente o povo, ela, independente de mídia, tem uma força de direção, de persuasão, de tração, de levar as pessoas e as coisas atrás de si, e tem uma larga medida de influência.
Se a nobreza da cidade guarda esta influência e sabe exercê-la sobre o geral do povo, ela tem um papel parecido com o do patriciado nas cidades livres da Alemanha, da Suíça, e em geral das cidades livres que pertenceram ao reino de Lotário.
Quer dizer, a faixa de terra opulenta, cheia de história e cheia de futuro, que se estende desde a desembocadura do Reno até à Calábria.
Em linha mais ou menos reta, passando pela Suíça, pelo Luxemburgo, pela Bélgica, atingindo depois o norte da Itália, e descendo a península italiana até o fim.
Essa nobreza de cidade deve caracterizar-se por algumas notas especiais.
Ela deve ter uma certa opulência.
Com essa opulência, ela deve ter um certo brilho de vida.
Com essa opulência e esse brilho de vida, ela deve dar aos habitantes da cidade uma ideia de como é que a vida na cidade — e, portanto, também as mentalidades e os costumes — devem ser.
O tom da cidade é dado por essa nobreza.
(Autor: Plinio Corrêa de Oliveira, palestra em 8/4/94, sem revisão do autor)
Dignidade sobrenatural do professor medieval
Como era a sacralidade de um homem que exercia uma profissão civil na Idade Média – por exemplo, o habitante da cidade?
Na ordem medieval, a mais bela condição civil para o homem era ser professor universitário.
Porque o professor universitário era uma espécie de cavaleiro andante no mundo do pensamento.
Ele ia refutar os sofismas abomináveis, esmagar os hereges, mostrando que estavam falsos nisso, naquilo, naquilo outro, e passava a vida pensando nisto e combatendo os inimigos de Cristo com o pensamento.
O arquétipo do professor e mestre é São Tomás de Aquino. Na Idade Média ele era um ideal que muitos professores universitários procuravam seguir.
O professor universitário não vara com a espada os inimigos da fé como faz o cavaleiro.
Mas vara com a argúcia da inteligência os erros contrários à fé, e forma alunos que são por sua vez capazes de perfurar as heresias, e assim construir as muralhas de pensamento que defendem a fé.
Então, ele é mais ou é menos do que o guerreiro?
Em geral as iluminuras da Idade Média representam um operário trabalhando no seu métier, uma dona de casa cozinhando ou costurando, ou um calígrafo no seu pupitre desenhando uma letra.
Em cima tem um passarinho com um rolozinho de pergaminho meio desenrolado no qual se encontra um trecho da Escritura.
O professor é representado com uma coisa que eu não me farto de admirar: o sossego, a estabilidade, a tranquilidade e o gosto de viver na repetição das mesmas coisas, no interior do mesmo ambiente, fazendo o mesmo trabalho que leva longos dias, meses, e às vezes anos, executado sem pressa, contanto que saia perfeito.
Representa mais ou menos o que na ordem material representa a lei da gravidade.
Sem a gravidade o mundo todo estaria louco. E sem este gênero de gente o mundo enlouqueceria.
(Autor: Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, 28/2/91. Sem revisão do autor)
A maravilhosa estabilidade do povinho medieval, fundamento para a vida sobrenatural
Cozinheiros. Vitral da catedral de Chartres |
Ele termina, guarda seus instrumentos de trabalho, vai para casa direto, sem ficar borboleteando pelas ruas nem indo atrás de mulhericas, encontra sua esposa que está preparando o jantar.
Ele se senta, os filhos se põem em torno dele, trazem-lhe uns chinelões bons para pés de elefantes, ele calça aquilo e começa então a doutorar lá, e contar; depois lê um trecho da Escritura, etc.
Uma coisa tocante que naquele tempo se fazia: toda casa, por mais modesta que fosse a família, escrevia seu livro de história, em que se registrava o que aconteceu.
Então, hoje nasceu Carlinhos, filho da Maria e do Pedro pedreiro, ele é forte, tem não sei o quê... mas nasceu com o nariz torto. Não tinha remédio.
Mais adiante: “Fulano e o irmão dele foram despedidos do emprego. Ele foi ato contínuo contratado para ir servir em Valença, no condado de Barcelona. Mas antes de ir ele quer fazer uma peregrinação a tal lugar assim da Itália, depois voltará e deve estar em Barcelona em tal data”.
De tudo que acontecia iam tomando nota, e de vez em quando, nas longas noites de inverno em que anoitecia cedo, e levava muito tempo para o pessoal dormir — não tinha televisão — lia-se o livro de memórias familiares do passado.
Eu acho muito bonito. Essa estabilidade eu acho maravilhosa.
Eu ainda peguei muito a estabilidade do povinho, porque em frente de minha casa na rua Barão de Limeira, no início do século XX, havia todo um renque de casas operárias misturadas com as casas das melhores famílias de São Paulo.
Tintureiros. O aprendiz aprende o ofício auxiliando o mestre. Vitral dos Apóstolos, catedral de Chartres, França. |
Sempre que eles entravam em casa, entravam pé ante pé, devagar.
Em geral eu entrava na minha casa, subia a escada de dois em dois, e mal chegava em cima já ia tirando a chave e abrindo para fazer não sei o quê, porque tinha não sei o quê. E eu que sou amigo do sossego, suspirava e dizia: “Afinal, aqueles homens lá não ficam com o melhor da vida?”
No fundo era uma forma de recolhimento. E esse recolhimento estabelecia um nexo do que há de mais alto, de mais sobrenatural com as coisas menores e mais sem importância.
Vamos dizer, uma dona de casa preparando as malas dela para ir passar uma temporada de férias na casa de uma prima. E ela, enquanto se prepara, se lembra de Nossa Senhora preparando a viagem para visitar Santa Isabel e fica pensando na Visitação.
Depois, antes de ir embora, pede a Santa Isabel que proteja a viagem e sai. Tudo isso é densamente impregnado de perfume sobrenatural.
Imaginemos um homem que, por exemplo, frita linguiças na porta de entrada de algum local para vender ao público.
Qual é a diferença entre o medieval e o homem moderno?
É que o medieval, enquanto fritava a linguiça, no interior da alma ficava considerando horizontes internos, proporcionados ao trabalhador manual, mas sempre mais amplos, e nisto era insaciável.
Do meio desse povo, Nossa Senhora selecionava e chamava para horizontes mais insaciáveis alguns que não necessariamente iam ser mártires, mas poderiam ser professores, ou pregadores como São Luís Grignion de Montfort!
Então, o que é que era necessário em qualquer uma das categorias da ordem medieval?
O que era preciso é que cada um na sua condição, sem ter a ambição de se promover, cultivasse as mais altas cogitações e quisesse fazer do modo mais perfeito aquilo que é próprio à sua profissão.
(Autor: Plinio Corrêa de Oliveira, 28/2/91. Sem revisão do autor)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo comentário! Escreva sempre. Este blog se reserva o direito de moderação dos comentários de acordo com sua idoneidade e teor. Este blog não faz seus necessariamente os comentários e opiniões dos comentaristas. Não serão publicados comentários que contenham linguagem vulgar ou desrespeitosa.