domingo, 25 de setembro de 2022

O projeto monástico de São Bento
e o nascimento da cultura e da civilização

Ora et labora ("reza e trabalha") é o leimotiv beneditino
Ora et labora ("reza e trabalha") é o leitmotiv beneditino
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs






Continuação do post anterior: Dos licores aos Hospitais: os frutos incontáveis da obra de São Bento




É curioso que o projeto beneditino se mostra especialmente criativo no domínio do quotidiano, do corpo, dos sentidos, da cultura material e profana, com as quais se propõe precisamente romper.

Mais: nos séculos XI e XII os mosteiros beneditinos de homens e de mulheres foram mesmo criadores de valores profanos tipicamente europeus e ocidentais, que depois a sociedade fez seus.

Os monges e o corpo

O aspecto mais importante: a alimentação. Numa abadia, isso pode ser complicado, mesmo triplamente complicado: porque é preciso preparar diariamente comida para um grande grupo, pela imposição estrita da proibição de carne de quadrúpedes e pelos frequentes jejuns.

A comunidade tem que resolver muitos e difíceis problemas:

– a produção de matérias primas em autarquia;

– a preparação e a transformação dessas matérias primas em alimentos comestíveis;

– a conservação e a armazenagem em stock dos produtos.

Repare-se nisto: é preciso dispor em permanência, e em grande quantidade, de substitutos para a alimentação à base de carne; é preciso investir nas frutas, nos legumes, nos derivados de leite, na criação de capoeira e na piscicultura.

Monges na colheita de trigo
Monges na colheita de trigo
Na piscicultura houve realizações verdadeiramente espetaculares: arranjo de enormes tanques; construção de barragens ou de viveiros, em cascata ou alimentados por água corrente (por vezes constituindo conjuntos luxuosos e monumentais); técnicas sofisticadíssimas de repovoamento de peixes, de fecundação artificial (nomeadamente na Borgonha), de criação de determinadas espécies (as carpas da Alemanha e da Polônia), de maneiras de pescar (o salmão na Irlanda).

Entremos nas cozinhas e observemos as experiências de organização do espaço, os fornos, as chaminés, os esgotos, por vezes conduzindo a resultados extraordinários: Alcobaça, é claro, mas também Fontevrault, Glastonbury, Villers-la-Ville. Mas podíamos falar também na organização do trabalho, nos utensílios...

Centremo-nos na preparação e transformação dos alimentos.

Celeiro de Cluny: tão grande que hoje abriga um museu
Celeiro de Cluny: tão grande que hoje abriga um museu
no 40% dele que ficou!
Como já foi observado por historiadores da alimentação e do quotidiano, quase todos os progressos realizados, desde os inícios da Idade Média, nos diversos setores da economia e da tecnologia alimentares, são devidos aos esforços metódicos e perseverantes dos estabelecimentos religiosos; a cozinha dos religiosos está, involuntariamente, na origem da gastronomia.

A proibição da carne e os jejuns estimulam a criatividade, as experiências dietéticas e culinárias, a exploração das virtualidades de outros produtos alimentares diferentes da carne vermelha.

É preciso armazenar grandes stocks e conservá-los em bom estado, para ter sempre disponível uma reserva alimentar para um grupo numeroso.

Não é só um problema para o cozinheiro, é também para o celeiro, que cuidará dos edifícios e das condições de armazenagem, da gestão de stocks, do tratamento de excedentes.

Muitos celeiros cistercienses ficaram famosos (Pontigny, Longpont, Royaumont, Noirlac, Clermont, Villers).

O celeiro de Claraval, do fim do século XII, tinha 75 m de comprimento; o de Vauclair, do século XIII, 70x15m, o que dá 1050 m2; o de Eberbach, construído pelo ano de 1200, media 93x16 m (=1488 m2). Seria interessante saber como é que eles eram aproveitados interiormente.

Lembremo-nos, além disso, das granjas monumentais, ou da famosa fábrica de cerveja de Villers-la-Ville (1270-1276), com as dimensões de 42X12 m (=504 m2).




(Autor: (excertos de) Luís Miguel Duarte, Professor Catedrático de História Medieval na Faculdade de Letras da Universidade do Porto)



Continua no próximo post: Requintes temporais frutos abençoados dos monges que renunciaram ao mundo




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domingo, 18 de setembro de 2022

Dos licores aos Hospitais:
os frutos incontáveis da obra de São Bento

São Bento, Biblioteca Nacional de Budapest
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
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“Fuit vir...era uma vez um homem, Bento por graça e de nome, que desde os primeiros anos da sua infância mostrou sensatez de velho”.

Assim começa a “Vida e Milagres do Venerável Bento”, escrita pelo papa Gregório Magno em 593 ou 594, e a única fonte propriamente dita de que dispomos (para além da Regra), se quisermos saber algo da existência do patriarca dos monges do Ocidente, ou do pai da Europa.

Os santos eram assim: nasciam sábios e maduros, não brincavam, não eram irrequietos, não faziam as tropelias que todos os miúdos de todas as épocas fazem.

Gregório podia ter elaborado uma biografia bem mais completa, para nosso esclarecimento; não o fez porque o que lhe interessava era sim escrever uma hagiografia edificante para o povo de Deus.

Não sabemos quando morreu São Bento. Com toda a certeza após 547. Gregório conta que o velho monge viu a morte chegar: seis dias antes mandou que lhe abrissem a sepultura.

Quando sentiu o fim próximo, pediu aos companheiros para o levarem para o oratório: “e sustentando os membros debilitados nos braços dos seus discípulos, de pé, mãos erguidas para o céu, entre palavras de oração exalou o último suspiro.”

São Bento com sua Regra, afresco medieval
Nesse momento, dois irmãos perceberam que o seu abade tinha morrido, pois viram, do mosteiro até ao céu [a cella in coelum] estender-se uma estrada coberta de alcatifas e iluminada por lâmpadas sem conta.

No topo estava um personagem de aspecto venerável e cercado de luz, que lhes perguntou que caminho era aquele. Responderam que não sabiam.

Então ele disse-lhes: Este é o caminho pelo qual sobe ao céu Bento, amado do Senhor.

Quando, na segunda metade do século VI, o Ocidente sucumbia sob a anarquia política, a regressão da cultura erudita, o desaparecimento de formas mais complexas de governo, só uma entidade estava em condições de liderar a reorganização política e moral: a Igreja, que contava nas suas fileiras com os homens mais sábios e com as instituições mais fortes da época.

Separada de Roma, pela primeira vez sozinha a contas com o seu destino, a igreja amadureceu rapidamente. E apoiou-se em dois pilares: o papado e os monges.

Quando dizemos o papado estamos a falar de Gregório Magno, quando dizemos os monges estamos a pensar em São Bento de Núrcia. Foi com eles que a igreja pôde exercer uma indiscutível liderança da Europa ocidental.

1. No campo da cultura

Os mosteiros tinham escolas, nas quais aprenderam a ler e a escrever quase todos aqueles que, antes do século XII, sabiam fazê-lo; e tinham scriptoria, nos quais se copiaram alguns dos mais preciosos monumentos do pensamento clássico.

2. Na economia

À frente do mosteiro, o abade dirigia uma verdadeira multidão de camponeses dependentes. Um senhor, portanto. Mas um senhor que foi quase sempre um administrador mais eficaz dos seus domínios do que os seus correspondentes laicos; e que foi, muitas vezes, um pioneiro nos métodos de cultivo.

Quatro séculos após a morte de São Bento, os seus monges eram os melhores agricultores da Europa ocidental.
Monjas  beneditinas vivem hoje Regra medieval

3. Na religião

O essencial dos mosteiros beneditinos era a procura de uma ligação íntima com Deus.

O mundo à volta do mosteiro pressionava a todo o tempo os monges para que eles, com as suas orações e missas, obtivessem para senhores, cavaleiros ou homens mais humildes, a salvação que a vida que haviam levado pressagiava duvidosa.

Por exigência da sociedade laica, o tempo dos monges passou a estar ocupado quase em permanência com a oração.

No templo multiplicaram-se as capelas; os oficiantes revezavam-se, faziam turnos.

Nas grandes abadias do Ocidente – em Saint Gall ou no Monte de Saint Michel – rezava-se noite e dia.

4. Na política

Os seus monges iriam ser braços direitos de reis e príncipes, ou poderosos senhores locais com competências políticas e judiciais sobre populações dependentes.

Mas foi isso mesmo que aconteceu e, perdoe-se o determinismo do raciocínio, nem poderia ter sido de outra maneira. Estes monges tinham uma série de capacidades e talentos que faziam imensa falta aos reis da Alta Idade Média – e que quase mais ninguém tinha (à exceção de alguns bispos).

Podiam servir como escrivães, como professores, como chanceleres, como conselheiros...e assim foram utilizados em todas as monarquias do ocidente.

5. Na sociedade

É José Mattoso quem melhor explica o importante papel social desempenhado pelos monges a diminuir antagonismos, a pacificar estratos mais belicistas, a ajudar a integrar minorias desenraizadas, a reafetar ao usufruto dos mais pobres terras que estes haviam perdido.



(Autor: (excertos de) Luís Miguel Duarte, Professor Catedrático de História Medieval na Faculdade de Letras da Universidade do Porto)



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domingo, 11 de setembro de 2022

A Igreja não só contribuiu mas fez a civilização ocidental

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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O Prof. Thomas Woods conclui em "A Igreja não apenas contribuiu para a civilização ocidental, mas Ela construiu essa civilização" (How the Catholic Church built Western Civilization, Regnery Publishing Inc., Washington D. C., 2005, p. 219):  

"Pensamento econômico, lei internacional, ciência, vida universitária, caridade, idéias religiosas, arte, moralidade — estes são os verdadeiros fundamentos de uma civilização, e no Ocidente cada um deles emergiu do coração da Igreja Católica" (p. 221).


Woods constata que as escolas revolucionárias, que dizem ser a fonte da civilização, na realidade trabalharam pela sua demolição.

Abadia de Dryburgh, Inglaterra
As escolas literárias revolucionárias conceberam enredos bizarros que refletem um universo anárquico e irracional.

Na música, o mesmo espírito anticristão criou ritmos caóticos como os de Igor Stravinsky.

Na arquitetura produziu a degeneração, hoje evidente, em edifícios destinados a serem igrejas progressistas. 

Em filosofia, caiu-se a ponto de o existencialismo propor que o universo é absurdo, que a vida carece de significado e que a única razão de viver é enfrentar o vácuo (p. 222-223).

A Renascença e o Romantismo levaram o homem a voltar-se sobre si próprio.

Esta tendência desordenada resultou na preocupação obsessiva consigo mesmo e, por fim, no narcisismo e niilismo da arte moderna.

O artista londrino Tracey Emim, por exemplo, criou a absurda "obra de arte" My Bed: uma cama desfeita e suja, com garrafas de vodka, preservativos usados e roupas ensangüentadas.

Hotel Marqués de Riscal: nihilismo da arte moderna
Numa exposição na Tate Gallery, em 1999, vândalos nus pularam na "obra" e beberam o vodka.

O público aplaudiu. Emim ganhou o posto de professor na European Graduate School.

Estas são amostras do abismo em que caiu este mundo, que negou até a possibilidade de aspirar pela restauração da Cristandade.

* * *

São Pio X

Bem ensinou São Pio X que a Civilização Cristã não é um sonho nem uma utopia que está para ser descoberta.

Ela existiu, como está consignada em inúmeros testemunhos históricos.

E autores novos, como os que acabamos de citar, os redescobrem hoje com surpresa e admiração.

Mais ainda, ela existe em germe nas almas que, enfadadas pela anarquia e a cacofonia hodiernas, andam à procura da ordem ideal.

Com certeza, a Cristandade voltará a tornar-se realidade mais uma vez, e ainda mais esplendorosa, após o triunfo do Imaculado Coração de Maria, previsto em 1917 por Nossa Senhora em Fátima.
Notas:
1. Rodney Stark, The Victory of Reason — How Christianity Led to Freedom, Capitalism and Western Sucess, Random House, 2005, 281 pp.
2. Stark, op. cit., p. 7.
3. Thomas E. Woods, Jr. Ph. D., How the Catholic Church built Western Civilization, Regnery Publishing Inc., Washington D. C., 2005, 280 pp. As demais citações são deste livro, salvo indicação em contrário.




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