domingo, 30 de julho de 2023

Das abadias medievais: criação e impulso aos licores espirituosos

Abadia de Hautvilliers, onde nasceu o champagne
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs






Pouco se fala do impulso decisivo dado pelos monges medievais para a criação e/ou requinte de aguardentes, licores, vinhos, cerveja, sidra e outras bebidas alcoólicas hoje muito apreciadas.

A tradição continuou introduzindo nos mosteiros após a Idade Média sucessivos aperfeiçoamentos e novos requintes, como o champanhe.

Os inventos dos monges passaram rapidamente aos leigos, que seguindo o impulso primeiro das abadias adquiriram voo próprio na elaboração de refinadas bebidas.

Dom Perignon, abade a quem se atribui o champagne
O colunista Reinaldo Paes Barreto, especialista em vinhos, escreveu interessante matéria da qual reproduzimos alguns excertos.

Na Idade Média, o clero atuou em todos os campos da atividade política, social e pessoal dos seus contemporâneos.

Inclusive, que é o que nos interessa aqui, na produção de vinhos, cervejas, “eau-de-vies” e licores.

Foi no silêncio dos monastérios, ou nas experiências dos laboratórios improvisados, que os monges, com a participação de “alquimistas” (químicos), procuraram obstinadamente soluções medicinais que prolongassem a vida.

Como colocar ‘espírito’ nas bebidas para que elas transmitissem vigor, alegria e energia vital.

Mas só por volta do século XIV, na França, eles começaram a macerar plantas e frutas para fabricar os primeiros licores.

E só quatro séculos depois, com a chegada à Europa do açúcar de cana, vindo das Antilhas, é que os produtores de licor definiram a fórmula – no mais das vezes secreta – com a qual produzem, até hoje, os emblemáticos digestivos que são servidos mundo afora.

Chartreuse: um dos licores mais premiados do mundo
Essas bebidas “espirituosas” devem ser apreciadas em pequenas quantidades junto com o café ou após a refeição.

E além de se dirigirem “ao espírito” elas também falam ao coração.

Existem dois processos para a fabricação de licores de qualidade:

Destilação – as frutas, ervas e outros ingredientes são macerados em álcool e a mistura então é destilada.

Este processo é mais usado para especiarias voláteis (hortelã, laranja, tomilho);

Infusão – é o processo de adição de frutas e outras especiarias ao álcool, cujo produto é filtrado e, depois, adocicado.

Os licores mais conhecidos são:

Amaretto (licor com sabor de amêndoas, produzido originalmente na Itália com caroços de abricó.

O amaretto Disaronno vem sendo produzido desde 1525).

Tia Maria (licor de café, à base de rum aromatizado com especiarias típicas da Jamaica).

Cointreau (licor incolor produzido com a casca de pequenas laranjas verdes originárias da ilha de Curaçau, Antilhas Holandesas).

Destilaria dos monges cartuxos faz Chartreuse
Chartreuse (o verde é produzido pelos monges cartuxos, perto de Grenoble, na França.

Chamado de “liqueur de santé” (licor da saúde), quase teve a sua fórmula destruída pela Revolução Francesa.

Mas ela foi salva, ainda uma vez, por um monge.

Composto por álcool, açúcar e 130 plantas, não contém nenhum produto químico e é o único licor verde no mundo, de cor natural).

Quarenta e três (43 ingredientes entram nesse licor espanhol, feito à base de brandy com ligeiro sabor de baunilha).

Drambuie (antigo e famoso licor de uísque, produzido com “highland malt whisky” e mel de urze).

Grand Marnier (licor de laranja do tipo curaçau macerada no conhaque).

Beirão (licor português com base em diversas plantas – entre as quais o eucalipto, a canela, o alecrim e a alfazema – e sementes aromáticas).




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domingo, 23 de julho de 2023

Como comiam os medievais

Refeição num lar nobre
Refeição num lar nobre
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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A maior parte dos pratos não são postos em cima da mesa. As carnes põem-se num pequeno trinchante, e o mesmo se passa com as bebidas.

O escudeiro trinchador, em geral um jovem gentilhomem, tem a função de cortar para cada convidado porções de carne. Nos romances de cavalaria — como Jean de Dammartin et Blonde d'Oxford, obra de Beaumanoir — o cavaleiro servidor da dama cumpre esse papel.

Depõem-se os pedaços diretamente sobre o prato ou sobre fatias de um pão especial, conhecido como pão de trinchar, mais compacto que o pão corrente.

Este costume subsistiu em algumas regiões de Inglaterra, onde os pratos de carne não aparecem à mesa.

Com relação às bebidas, os jarros que as contêm estão sobre um aparador, e o copeiro enche jarros e taças uns após outros, à vontade dos convivas.

Todas as cenas de banquete representam assim escudeiros e servidores indo e vindo durante a refeição, enquanto as damas permanecem sentadas, tal como os senhores de alta posição e os hóspedes familiares da casa.

Galgos de formas esguias ou pequenos caniches volteiam à procura de um pedaço para comer.

Banquete de casamento
Banquete de casamento
Os festins são muitas vezes separados por entremezes, no decurso dos quais os jograis recitam poemas ou executam números de acrobacia.

Por vezes é mesmo toda uma pantomima ou uma peça de teatro que se desenrola aos olhos dos convivas.

Põe-se cuidado extremo na apresentação dos pratos: pavões e faisões são postos de pé, revestidos com as suas penas; nas geleias, traça-se toda sorte de cenários.

O serviço compreende em primeiro lugar as sopas, de grande variedade.

Há desde os caldos complicados, muitas vezes temperados com ovos batidos, pedaços de pão torrado e condimentos inesperados como o verjus (licor de uva), até às papas de farinha, de sêmola ou de cevada, que se comem ainda nos nossos campos, e que formavam o fundo da alimentação dos camponeses.

Os franceses eram reputados como grandes comedores de sopas, tal como hoje em dia. Eram igualmente famosos pela excelência dos seus patês e das suas tartes.

A corporação dos pasteleiros de Paris alcançou justa reputação pelos patês de montaria ou de aves, que se vendiam quentinhos na rua, tartes de legumes ou de compotas, realçadas com ervas aromáticas, tomilho, rosmaninho, louro.

Nos festins dados pelos príncipes por ocasião de qualquer recepção, sobretudo a partir do século XVI, certos patês monstruosos encerram cabritos-monteses inteiros, sem prejuízo dos capões, pombos e coelhos que o temperam, entremeados de gordura de porco, temperados com cravinho e açafrão.

Eram também muito apreciadas as carnes grelhadas e assadas.

Dos molhos, cada cozinheiro possuía uma especialidade, sendo o mais apreciado o de alho, vendido já preparado para uso das donas de casa.

Cremes e pratos doces terminam a refeição. Alguns bolos como as filhoses, bolos de amêndoa e o maçapão, contam-se entre aqueles que ainda hoje apreciamos.

Como presente, gostava-se de oferecer compotas de frutas, sobretudo a muito apreciada marmelada e bombons. Eram as guloseimas mais correntes, juntamente com as compotas e os xaropes.

Uma refeição num ambiente popular.
Uma refeição num ambiente popular.
Tudo isto está evidentemente a léguas das “ervas e raízes”.

Varia com o grau de fortuna a alimentação e o refinamento que nela se põe, é claro, mas está fora de dúvida que não se venderiam nas ruas coscorões, patês e produtos exóticos como os figos de Malta, se não houvesse ninguém que os comprasse, ou se só estivessem ao alcance dos ricos burgueses.

O abastecimento destes se fazia em outra escala, e eles tinham em casa os seus cozinheiros.

Nos romances de ofício veem-se jovens aprendizes comprar regularmente pequenos patês quando vão de manhã buscar água na fonte para o consumo da casa, o que quer dizer que o seu preço não era inabordável para a sua bolsa.

E a vida no campo, embora talvez menos variada, não devia ter menos largueza que na cidade, muito pelo contrário, pois a cultura dos campos e a criação do gado davam aos camponeses facilidades que o citadino não tinha.

Quando se quer criar uma cidade, é necessário prometer isenções e privilégios para atrair habitantes.

Isso não seria necessário se o camponês fosse miserável ou desfavorecido em relação ao citadino, como nos nossos dias.

Há todas as razões para crer que da Idade Média datam as sãs tradições gastronômicas que estabeleceram tão solidamente em todo o mundo a reputação da cozinha francesa.


(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)




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domingo, 16 de julho de 2023

As refeições medievais: imensa variedade
aproveitando os recursos regionais

Peregrinos rumo a Compostela sentados na mesa de uma taverna da estrada
Peregrinos rumo a Compostela sentados na mesa de uma taverna da estrada
Luis Dufaur
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O regime geral das refeições variava muito com as regiões, estando muito mais dependente dos recursos locais do que hoje em dia.

É certo que as trocas eram numerosas, mais extensas do que se poderia acreditar, uma vez que os figos de Malta e a uva da Armênia eram apregoados em Paris.

Os comerciantes italianos e provençais traziam para as grandes feiras da Champagne e da Flandres os produtos exóticos.

Num plano mais restrito, os mercados atraíam negociantes de quase todas as regiões de França.

Mas essas trocas eram naturalmente menos generalizadas do que nos nossos dias, e se excetuarmos o movimento comercial criado em torno do castelo senhorial, vivia-se no campo à base das produções locais.

Não eram utilizados processos de cultura artificiais para fazer avançar as estações.

Por outro lado, os dias de jejum e abstinência eram muito numerosos, e a alimentação mudava de época para época muito mais do que hoje em dia.

Durante toda a Quaresma, compunha-se unicamente de legumes, peixes e caças de água, temperados com azeite.

O mesmo acontecia nas vigílias ou nas vésperas de dias santos, significando uma quarentena de dias por ano.

Deve-se observar que essas prescrições eclesiásticas estavam perfeitamente de acordo com os preceitos da higiene: o jejum da primavera e o das mudanças de estação corresponde a uma necessidade de saúde, enquanto a grande época das festas, que se traduzem inevitavelmente em comezainas, se situa nos meses mais frios do inverno, quando o organismo sente necessidade de uma alimentação rica.

Em qualquer dos casos, com base nos tratados de cozinhas guardados nas nossas bibliotecas e em obras tais como esse precioso Ménagier de Paris, conclui-se que a mesa era na Idade Média muito cuidada, para não dizer muito refinada.

Dá-se grande importância à apresentação dos pratos e à ordenação geral das refeições. Nas residências senhoriais, os convivas sentam-se em mesas compridas, apoiadas em cavaletes e recobertas de toalhas brancas.

O chão está muitas vezes, nos dias de festa, juncado de flores e de folhagens recém-apanhadas.

Serviço doméstico da mesa no tempo do rei João da Inglaterra, 1199-1216
Serviço doméstico da mesa no tempo do rei João da Inglaterra (1199-1216)
As mesas são dispostas em quadrado ao longo das paredes, não existindo portanto o face-a-face, de modo que o pessoal doméstico possa ir e vir e pôr diante de cada conviva aquilo de que este necessitar.

Os convidados são sempre numerosos, pois é hábito de todos os barões ter mesa aberta.

Robert de Blois indigna-se com o pensamento de que alguns senhores mandam fechar as portas das salas onde comem, em vez de as manterem abertas a quem chega.

A hospitalidade é então um dever sagrado, estende-se tanto à populaça como aos iguais.

Por outro lado, a corte do senhor compreende todos os escudeiros ligados ao seu serviço, os filhos dos seus vassalos, grande parte dos seus parentes.

De tal modo que, ao lado da grande mesa onde o suserano se senta em lugar de honra há toda uma multidão de comensais, mais ou menos bem colocados segundo os seus títulos de precedência.

Este costume explica por que os cavaleiros do rei Artur, entre os quais reina uma perfeita igualdade, se sentam em redor de uma mesa redonda ou desenhando uma espécie de ferradura, de modo que todos os lugares sejam igualmente honrosos, sem no entanto se tornar impossível servir os convivas.


(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)


Veja também: O que comiam os medievais? Passavam fome?



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domingo, 9 de julho de 2023

O que comiam os medievais? Passavam fome?

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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Uma lenda tenazmente arraigada fez do homem da Idade Média um perpétuo morto-de-fome, a ponto de se poder perguntar como é que uma raça subalimentada durante oito séculos e, o que é mais, periodicamente devastada pelas guerras, fomes e epidemias conseguiu sobreviver e produzir ainda rebentos razoavelmente vigorosos.

Em grande parte o erro provém de má interpretação dos termos então em uso.

É exato que na Idade Média as pessoas se alimentavam de ervas e raízes — mas sempre assim foi, pois se designa então por erva tudo o que cresce sobre a terra: couves, espinafres, alfaces, alhos-porros, acelgas, etc.

E por raiz se entende tudo o que cresce dentro da terra: cenouras, nabos, rabanetes, rábanos, etc. Este pormenor foi já posto em relevo, nomeadamente por Funck Brentano.

Houve quem se impressionasse pelo fato de o cardo (chardon) passar então por um prato apreciado, mas na realidade trata-se de alcachofra (cardon), e assim o assunto se torna apenas uma questão de gosto!

Se o camponês ia muitas vezes colher bolota, não era por se mostrar interessado nela para seu próprio alimento, mas para alimentar os seus porcos.

É possível que em certos períodos de excepcional penúria — por exemplo, durante as lutas franco-inglesas, que marcaram o declínio da Idade Média, quando a peste negra veio acrescentar os seus horrores aos da guerra e os bandos devastavam o país cuja defesa deixara de estar organizada — a farinha de bolota tenha servido, como nos nossos dias, como produto de substituição.

Mas nenhum texto nos permite pensar que isso tenha acontecido frequentemente.

Não seria crível que a fome tivesse reinado em estado endêmico na Idade Média.

A fazer fé em Raoul Glaber, cronista de imaginação febril, e que cede facilmente aos efeitos de estilo, tem-se tendência para acreditar que não se passava quase ano nenhum em que, para apaziguar a fome, não se tivesse de recorrer à carne humana e aos cadáveres de crianças recentemente desenterrados.

O monge medieval, ao relatar tais fatos monstruosos, tem o cuidado de não assumir a responsabilidade da afirmação, acrescentando prudentemente: diz-se.

É certo que houve fomes na Idade Média, e que essas fomes foram numerosas, mas a nossa experiência pessoal esclarece-nos plenamente como isso acontece sempre que a ausência ou a insuficiência dos meios de transporte impede que se preste rapidamente auxílio a uma região ameaçada e se permutem os produtos.

Durante a alta Idade Média em particular, quando cada domínio formava pela força das coisas um circuito fechado, as estradas eram ainda pouco seguras, e para garantir a sua manutenção eram exigidas portagens muitas vezes onerosas. Nesses casos, bastava um ano de seca para a penúria se fazer sentir.

É igualmente certo que essas fomes eram localizadas, e em geral não ultrapassavam a extensão de uma província ou de uma diocese.

Mesmo durante o período áureo da Idade Média no século XIII, quando a autarquia dominial foi substituída por trocas fecundas e a circulação se tornou fácil em toda a França, observam-se variações por vezes muito importantes no preço dos gêneros, sobretudo do trigo.

Cada província, cada cidade fixa a sua tarifa de acordo com a colheita local.

Os quadros traçados por Avenel e Wailly mostram, no interior de uma mesma região econômica, oscilações que vão do simples ao dobro, ou mesmo ao triplo, como aconteceu em 1272 no Franco Condado, onde o preço do hectolitro de trigo variou de 4 a 13 francos.

É preciso ainda que nos entendamos sobre o que se designa por fome.

Um texto citado por Luchaire (pouco suspeito de indulgência em relação à Idade Média), de numa obra onde acumula expressamente documentos mostrando a época com características das mais sombrias, pode deixar perplexos os leitores atuais:

“Conta o cronista de Liège que nesse ano (1197) faltou o trigo. Da Epifania até agosto, tivemos de gastar mais de cem marcos para obter pão. Não tivemos nem vinho nem cerveja. Quinze dias antes da colheita, ainda comíamos pão de centeio”. (La société française au temps de Philippe-Auguste, p. 8.)

Se a penúria, para eles, consistia em ter somente pão de centeio, quanto não invejaríamos nós, durante a Segunda Guerra Mundial, a sorte dos nossos antepassados da Idade Média.

Na realidade, a alimentação medieval não era muito diferente da nossa em épocas normais. Naturalmente a base era o pão.

De acordo com a riqueza da região, era de trigo candial, de centeio ou de mistura de trigo e centeio, mas verifica-se que mesmo regiões não produtoras, como o sul da França, utilizam o pão de trigo candial.

Em Marselha, onde o terreno é pobre em trigo e as medidas de exceção para abastecer a cidade são frequentes, a regulamentação muito minuciosa da panificação não prevê farinhas secundárias.

Fabricam-se três espécies de pão: o pão branco, o pão méjan mais grosseiro e o pão integral.

Os preços são fixados segundo uma tarifa rigorosa, estabelecida após exames feitos por três mestres padeiros assistidos por um perito e por homens bons designados pela comuna, tendo em conta os detritos resultantes da moedura, a malaxagem da massa e a cozedura.

Conheciam-se em Paris múltiplas variedades de pães “de fantasia”, dos quais eram mais estimados o de Chilly, o de Gonesse ou pãozinho mole.

Nos locais muito pobres comia-se bolo de aveia, ainda hoje caro aos escoceses, ou de trigo-mouro.

Mas não havia região completamente desamparada, pois a economia de então — a do vasto domínio, cobrindo uma grande região — favorece a policultura.

Não se vê na Idade Média nenhuma região unicamente consagrada à cultura do trigo ou da vinha, e que importe o resto dos produtos de que necessita.

O regime de vastas explorações permite variar suficientemente as culturas, ao mesmo tempo que são consagradas a cada uma delas porções de terra equilibradas.

Roupnel, no seu estudo dos campos franceses (Histoire de la campagne française, p. 366.), observa que o manso (uma ordem de grandeza local, que varia de 10 a 12 hectares modernos segundo a riqueza das regiões) é quase sempre composto de três elementos: campos aráveis, prados, bosques.

Estes apenas representam uma porção muito reduzida, cerca de um décimo da exploração total. A extensão das terras cultivadas é o dobro das terras de pastagens.

Diz ele:

“Este pequeno domínio manifesta-se como um conjunto, e aparece-nos construído à imagem reduzida e completa do próprio território. Não é só a sua imagem, tem ainda a sua vitalidade e duração”.

Os manuscritos de miniaturas, que se inspiram na realidade, são a este respeito muito reveladores, pois em toda parte vemos uma proporção sensivelmente igual de prados, campos e vinhas.

A vinha é cultivada por toda parte em França, o que responde a uma necessidade religiosa tanto como econômica, pois os fiéis, até meados do século XIII, comungam sob as duas espécies, de tal modo que o consumo de vinho para a missa é muito maior do que nos nossos dias.

Algumas das nossas colheitas são, desde essa época, particularmente estimadas: Beaune, Saint-Emilion, Chablis, Epernay. Outras perderam nos nossos dias o renome que outrora possuíam, por exemplo o vinho de Auxerre ou de Mantes-sur-Seine.

Quase em toda parte torna-se necessário defender a produção local contra a importação estrangeira.

Numa cidade como Marselha são tomadas medidas draconianas contra a importação de vinhos ou de uvas provenientes de outros territórios.

Só os condes tinham direito de os importar para seu consumo pessoal. Neste caso, tratava-se provavelmente de vinhos finos da Espanha ou da Itália.

Um navio que entrasse no porto com um carregamento de vinhos ou de uvas expunha-se a vê-lo atirado ao chão, e as uvas espezinhadas.

Nas feitorias ou entrepostos estabelecidos no estrangeiro, é igualmente proibido introduzir vinho da região antes de os mercadores marselheses terem vendido o seu.

A cultura da vinha estava pois muito mais desenvolvida na região marselhesa do que nos nossos dias, e os estatutos da cidade asseguram-lhe uma proteção muito particular: proibição de caçar nas vinhas, exceto para o seu proprietário; proibição de o lavrador levar mais de cinco cachos por dia para seu consumo pessoal, etc.

O vinho foi a bebida essencial da Idade Média. Conhecia-se a cerveja, principalmente a gaulesa de cevada, já fabricada por gauleses e germanos, e também o hidromel.

Mas nada era mais apreciado que o vinho, presente em todas as mesas desde a do senhor à dos criados.

O vinho é ao mesmo tempo um prazer e um remédio. São-lhe reconhecidas toda espécie de virtudes fortificantes, e entra na composição de inúmeros elixires e produtos farmacêuticos, geleias e xaropes.

São também muito apreciados os diversos vinhos licorosos ou licores, em que se puseram a macerar plantas aromáticas: absinto, hissopo, rosmaninho, mirto, a que se adiciona açúcar ou mel.

Antes de se deitarem, era corrente beber uma mistura escaldante de vinho e leite coalhado, que na Inglaterra e na Normandia se chamava posset.

A literatura gaulesa do tempo lhe atribuía toda espécie de poderes, cuja enumeração faria corar as pessoas pudibundas, em todo caso fornecia o calor que faltava então aos apartamentos.

Com exercícios violentos tais como a caça, é certo que o vinho permitia suprir a insuficiência dos meios de aquecimento, no entanto não parece que se tenham feito sentir os males do alcoolismo nem a degenerescência que o acompanha.

Isso deve-se sem dúvida ao fato de nenhuma preparação química e nenhum subproduto adulterado ser então servido como bebida, como também à observação geral das leis eclesiásticas, que permitiam o uso e reprimiam o abuso.

Com o pão e o vinho, havia aquilo a que no Midi catalão se chamava o acompanhamento, isto é, todos os outros alimentos. Contrariamente à opinião generalizada, o consumo de carne era então abundante.

Das investigações levadas a cabo, conclui-se que o gado francês era no século XIII sensivelmente mais importante do que hoje em dia.

Uma pequena localidade pirenaica, que hoje não conta mais de uma dezena de animais de chifres, contava outrora duzentos e cinquenta.

Se bem que as proporções não sejam as mesmas em toda parte, não restam dúvidas de que a criação de gado era praticada de modo muito mais intensivo em França até o dia em que a introdução do gado da América, de menor custo, tornou impossível a concorrência para os nossos criadores.

No que diz respeito ao carneiro, não havia então quinta que não tivesse o seu rebanho, tanto mais que este fornecia aos campos um adubo natural, que hoje se julgou mais cômodo substituir por adubos químicos, o que teve como consequência reduzir consideravelmente o nosso gado ovino.

Sobretudo os porcos eram muito numerosos. Tanto na cidade como no campo, não havia família, por mais pobre, que não criasse pelo menos um ou dois para seu consumo.

A matança do porco fornecia carne e gordura para o ano inteiro, e é uma cena tradicional nos calendários dos meses, tantas vezes esculpidos nos pórticos das nossas igrejas ou pintados nos nossos manuscritos.

Eram conhecidos os processos de salga e defumação, ainda hoje utilizados. Matar o porco era a tal ponto um acontecimento da vida familiar, que só muito tarde se vê aparecerem os salsicheiros.

Mesmo assim, no princípio estes não passam de comerciantes de “pratos preparados”, antes de se especializarem na confecção de salsichas e presuntos.

A corporação dos açougueiros é poderosa desde o início da Idade Média, e é sabido o papel por ela desempenhado nos movimentos populares dos séculos XIV e XV.

Segundo o Ménagier de Paris, o consumo semanal nesta cidade ter-se-ia elevado a 512 bois, 3.130 carneiros, 528 porcos e 306 veados, sem contar o consumo dos palácios reais e principescos, os abatimentos familiares e as diversas feiras de presuntos e outras, que tinham lugar na capital e suas redondezas imediatas.

Também em Marselha é surpreendente o número de prescrições relativas aos animais pertencentes a proprietários da cidade, ou destinados ao consumo dos burgueses.

A isto teremos de acrescentar as aves de capoeira, que eram engordadas como se fazia desde a mais alta Antiguidade: os fígados de ganso e as carnes em conserva faziam então parte dos menus de festa, tal como hoje.

A caça fornecia abundantes recursos, em florestas mais extensas do que hoje em dia e muito ricas em caça.

Há uma infinidade de processos para apanhar a caça, desde os laços ou vulgares anéis até às aves de rapina especialmente treinadas, passando pelas diversas armadilhas, redes e engenhos tais como o arco, a sarabatana, a arbaleta.

Apanhavam-se também as perdizes com isca, e caçavam-se com cães o veado e o javali. Assim, a montaria fazia parte da alimentação corrente.

Em fins da Idade Média o senhor tende a reservar para si o direto de caça no seu domínio, como hoje em dia fazem os proprietários e o próprio Estado.

Mas o pessoal que o auxilia durante as grandes batidas — monteiros, falcoeiros, criados e camponeses — participa dos benefícios das suas realizações. Isso vê-se correntemente nos romances e quadros da época.

Os laticínios fazem igualmente parte da alimentação, e as nossas manteigas e queijos adquirem já desde então o seu renome: queijos gordos de Champagne ou de Brie, anjinhos da Normandia.

Nesta região, a manteiga é praticamente a única matéria gorda usada na cozinha. Como o uso de toda gordura animal é proibido durante a Quaresma, os habitantes obtêm dispensas especiais, por não lhes ser possível obter óleo em quantidade suficiente.

As esmolas prescritas para garantir essa dispensa serviram por vezes para a edificação das igrejas — esta a origem do nome que tem em Rouen a Torre da Manteiga.

Mas trata-se de um caso particular, pois a oliveira encontra-se aclimatada quase em todo a França, o azeite é muito apreciado e entra na composição de vários remédios, como o vinho.

Só ele é autorizado nos dias magros então numerosos, de severa abstinência que se estende igualmente aos ovos.

Durante a Quaresma endurecem-se os ovos que as galinhas põem, para os conservar, e são apresentados à bênção do padre durante as cerimônias de Sexta-Feira Santa, costume que deu origem aos ovos da Páscoa.

As mesmas necessidades da abstinência conduziam os nossos antepassados a consumirem muito peixe. Todos os castelos possuem então um viveiro anexo onde percas, tencas, enguias e cadozes são objeto de uma autêntica cultura.

Também os lagos são cultivados, tal como ainda hoje se pratica numa província como Brenne, e a pesca é seguida por um repovoamento metódico.

A pesca marítima nas costas é uma indústria muito viva, e as associações de pescadores desempenham um papel importante quase em toda parte.

Nas margens do Mediterrâneo, numerosas prescrições asseguram-lhes uma espécie de monopólio da venda do peixe, para proteger o seu comércio contra o dos simples revendedores.

Em Marselha, por exemplo, os revendedores só podem oferecer as suas mercadorias a partir do meio-dia.

É deixada livre a venda dos pequenos peixes, pescados com uma rede de malha fina chamada bourgin — sardinhas, girelas, que se distinguem dos peixes maiores como a cavala ou a dourada, e sobretudo o atum, cuja pesca é muito abundante nas redondezas imediatas do porto.

Sabe-se conservar o peixe e a carne, e os “mercadores de água” que remontam o Sena trazem todos os dias para Paris barris cheios de arenques salgados ou defumados. Um prato comum na época é o craspois, sem dúvida uma variedade de baleia.

Vêm por fim os legumes, que lisonjeiam menos o palato e são por isso a alimentação mais ou menos exclusiva dos monges, a quem o seu estado prescreve a sobriedade e as mortificações.

Comia-se então muitas favas e ervilhas, que desempenhavam o papel das nossas batatas. Para se queixar do seu mau casamento e exprimir a malignidade da sua mulher, Mahieu de Boulogne não sabe dizer nada de melhor que a estrofe seguinte:

Nous sommes comme chien et leu [loup]
Qui s'entrerechignent ès bois,
Et si je veux avoir des pois
Elle fera de la purée!

Somos como cão e lobo
Que se engalfinham nos bosques,
E se eu quero comer ervilhas
Ela fará purê!

São conhecidas diversas variedades de couves: brancas, repolhos, orelha-de-burro. De alfaces, o Ménagier de Paris cita a de França e a de Avignon como sendo as mais apreciadas. Espinafres, azedas, acelgas, abóboras, alho-poró, nabos, rábanos fazem parte da alimentação corrente.

Temos de lhes acrescentar as plantas condimentares, então muito utilizadas para realçar o sabor das carnes e dos legumes: salsa, manjerona, segurelha, basilisco, funcho, hortelã, sem contar as especiarias encomendadas do Oriente em quantidades cada vez maiores, sobretudo a pimenta, tão preciosa que servirá por vezes como uma espécie de moeda.

Algumas comunas mercantis se servirão dela para fazer os seus pagamentos, por exemplo, às casas das ordens militares.

As frutas são então muito apreciadas: peras e maçãs, das quais se sabe extrair a cidra e a perada.

O marmelo passa por ser uma planta medicinal, e dele se faz uma refinada compota. Sobretudo em Orleans, as cerejas e ameixas se põem a secar, tal como as uvas e os figos, e são usadas nos patês e nas conservas de carne, costume que se manteve até aos nossos dias em algumas regiões, principalmente no norte de França.

O pêssego e o damasco, introduzidos pelos árabes, eram já muito apreciados no tempo das cruzadas, mas os morangos e as framboesas permaneceram por muito tempo selvagens e só foram cultivados a partir do século XVI.

Muito antes já se vendiam castanhas nas ruas de Paris, e desde o século XIV se tentava aclimatar as laranjeiras ao nosso solo. Também as amêndoas, nozes e avelãs tinham especial preferência e serviam para a preparação de manjares.

Enfim, desde a Antiguidade eram apreciados os recursos da floresta: castanhas, frutos da faia-do-norte, morangos, abrunhos, etc.

(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)




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