domingo, 26 de maio de 2024

Assombrosa e deleitável desigualdade entre as cidades

A cidade medieval ideal

Com excessiva frequência as cidades modernas passam uma sensação de monotonia. Elas parecem quase idênticas.

A historiadora Regine Pernoud, especializada na Idade Média, descreve uma realidade absolutamente diferente que existiu naquela época.

A França conservou durante todo o Ancien Régime um caráter muito especial, derivado dos costumes particulares de cada cidade, fruto empírico das lições do passado e fixados independentemente pelo poder local, tendo em vista as necessidades de cada uma.

Esta variedade de uma cidade para outra dava ao nosso país uma fisionomia muito atraente e muito simpática.

A monarquia absoluta teve a sabedoria de não tocar nos usos locais, de não impor um tipo de administração uniforme.

Esta foi uma das forças e um dos encantos da antiga França.

Cada cidade possuía, num grau difícil de se imaginar em nossos dias, sua personalidade própria, não somente exterior mas interior, em todos os detalhes de sua administração, em todas as modalidades de sua existência.

As muralhas eram um símbolo e uma garantia da autonomia da cidade, inclusive face aos reis
As muralhas garantiam a autonomia da cidade, inclusive face ao poder real ou feudal

Em geral elas são, pelo menos no sul, dirigidas por cônsules, cujo número varia: dois, seis, e algumas vezes doze; ou ainda um só reitor reúne o conjunto dos encargos em suas mãos, sendo assistido por um juiz representante do senhor, quando a cidade não possui a plenitude das liberdades políticas.

Muitas vezes ainda, nas cidades mediterrâneas, recorre-se ao sistema de alcaides, instituição muito curiosa.

Bergheim, Alsacia, França
Bergheim, na Alsácia, França, é uma outra cidade inteiramente diferente
O alcaide é sempre um estrangeiro (os de Marseille são todos italianos), ao qual confia-se o governo da cidade por um período de um ou dois anos. Em toda parte onde foi empregado, este regime foi satisfatório.

Em todo caso, a administração da cidade compreende um conselho eleito pelos habitantes — geralmente por sufrágio restrito ou a vários graus — e por assembléias plenárias, reunindo o conjunto da população, mas cujo papel é sobretudo consultivo.

As representações das corporações possuem sempre um lugar importante, e sabe-se bem qual foi o papel desempenhado pelo representante dos comerciantes em Paris nos movimentos populares do século XIV.

Obernai, Alsácia, França
Obernai, na Alsácia, França, ainda conserva sinais de sua originalidade
A grande dificuldade encontrada pelas comunas são os problemas financeiros.

Quase todas se mostram incapazes de assegurar uma boa gestão das riquezas, e além disso o poder é logo monopolizado por uma oligarquia burguesa, que se mostra mais dura para com o povo miúdo do que os antigos senhores feudais.

Daí a rápida decadência das comunas. Muitas vezes elas são agitadas por tumultos populares, e periclitam desde o século XIV, ajudadas nisso, é verdade, pelas guerras da época e pela enfermidade geral do reino.

(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge” - Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)



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domingo, 19 de maio de 2024

A vida urbana e a origem da burguesia medieval

Budapest medieval
Budapest, hoje capital da Hungria, na Idade Média
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs





Desde quando acabaram as invasões dos bárbaros, a vida organizada ultrapassou os limites do domínio senhorial.

As famílias não se bastavam mais a si próprias.

Toma-se então o caminho da cidade, o tráfico comercial se organiza, e logo, vencendo as muralhas, surgem os burgos.

É então, a partir do século XI, o período de grande atividade urbana. Dois fatores de vida econômica, até aqui secundários, vão tomar uma importância de primeiro plano: o artesanato e o comércio.

Paris medieval
Paris medieval

Com eles surgirá uma classe — a burguesia — cuja influência sobre os destinos da França será capital. Mas sua ascensão ao poder efetivo só começa na Revolução Francesa, da qual será ela a única a tirar benefícios reais.

No entanto, o poder da burguesia se origina muito anteriormente, pois desde o começo ela manteve um lugar preponderante no governo das cidades, uma vez que os reis, sobretudo a partir de Filipe o Belo, voluntariamente tornavam procuradores os burgueses, com seus conselhos, administradores e agentes do poder central.

Ela deve sua grandeza à expansão do movimento comunal, do qual foi o principal motor.

Nada de mais vivo e dinâmico do que esse impulso irresistível que, do século XI ao começo do século XIII, incita as cidades a se libertarem da autoridade dos senhores.

A burguesia foi a categoria social dominante nas cidades
A burguesia foi a categoria social dominante nas cidades
E nada mais ciumentamente guardado do que as liberdades comunais, uma vez adquiridas.

Os direitos devidos aos barões tornavam-se insuportáveis a partir do momento em que não se tinha mais necessidade da sua proteção.

Nos tempos de perturbações, outorgas e pedágios, eram justificados, pois representavam o gasto do policiamento das estradas.

Um comerciante espoliado nas terras de um senhor podia ser indenizado por ele; mas, nos tempos novos e melhores, devia haver um reajustamento, que foi obra do movimento comunal.



(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge” - Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)




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domingo, 5 de maio de 2024

Melhores vinhos atuais: herdeiros das abadias medievais

Abbaye Sylva Plana, Le Songe de l'Abbé, faugères; Domaine de l'abbaye du Petit Quincy, chablis; Le Clos du Cellier aux Moines. Fundo: antiga abadia de Paray-le-Monial
Abbaye Sylva Plana, Le Songe de l'Abbé, faugères;
Domaine de l'abbaye du Petit Quincy, chablis;
Le Clos du Cellier aux Moines
Fundo: antiga abadia de Paray-le-Monial
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs






Os vinhedos da Gália do tempo dos romanos – que inclui a França, mas partes de outros – foram plantados pelos legionários durante suas guerras de conquista no século I.

Eles tinham uma muito grande sofisticação na produção, escreveu o especialista em vinhos Marcel Larchiver em seu livro de referência “Vinhos, vinhas e vinhateiros”:

“Para os romanos, o vinho era ao mesmo tempo um objeto de comércio e de luxo, mas também um néctar divino do qual lhes parecia impossível renunciar. Por isso, o vinhedo era rodeado de todos os cuidados”.

Porém, o Império Romano veio abaixo no século V e a anarquia e os saques das hordas bárbaras destruiram a plantação.

Foi nessa época de caos, morte e destruição que se desenvolveu o apostolado da Igreja Católica.

Já desde o século IV a Igreja estimulava o desenvolvimento das vinhas. Em primeiro lugar porque o vinho era necessário para a consagração na Missa e para a Comunhão.

Os bispos fundaram importantes vinhedos, e esta obra contribuiu a fortalecer sua imagem ante o povo.

Mas vieram também os mosteiros. Na França medieval havia mais de um milhar de mosteiros masculinos entre os quais 250 abadias cistercienses e mais de 400 abadias beneditinas.

O vinho também era necessário para fortalecer os numerosos peregrinos que batiam nas portas das abadias para pedir hospedagem e alimentação gratuita após longas jornadas de caminhada.

O vinho que os medievais apreciavam também tinha efeitos benéficos para a saúde e era usado para tratar os doentes.

A abadia de Cîteaux foi fundada em 1098 e adquiriu em 1100 um terreno então desconhecido, mas onde hoje se faz o famosíssimo Vougeot. Ali, os monges plantaram uma vinha hoje universalmente cobiçada.

Abbaye de Valmagne, Coteaux du Languedoc; Domaine da abadia du Petit Quincy;  Corbières Deo Gratias, abadia de Corbières. Fundo: abadia na Aquitânia
Abbaye de Valmagne, Coteaux du Languedoc; Domaine da abadia du Petit Quincy;
Corbières Deo Gratias, abadia de Corbières. Fundo: abadia na Aquitânia
Eles coletaram, uma a uma, as pedras brancas que impediam a plantação e as usaram para fazer cercas de pedra que delimitavam a propriedade, afastavam os ladrões e concentravam o calor do sol.

Nasceu assim o Clos (fechado) de onde o nome Clos Vougeot.

Os leigos intercalavam as vinhas com árvores frutíferas para completar os lucros.

Mas, os monges interditaram absolutamente esse costume para não empobrecer a terra e evitar a sombra sobre as uvas.

Eles se empenharam em selecionar as melhores cepas, requintar o processo de vinificação e definir os melhores locais.

Nasceram assim mais de uma centena de “appellations” francesas que são de origem puramente monástico.

Os monges viajavam muito e trocavam informações sobre técnicas por via oral, por isso faltam registros sobre o assunto.

Eles ensinavam aos populares como fazer sem receber nada em troca, salva a gratidão que o povo foi manifestando a seus benfeitores.

O prestígio dos vinhedos monacais atravessou as fronteiras francesas. Um certo Dom Denise, monge italiano ingressou num mosteiro da Borgonha só para roubar o segredo do vinho.

O fruto de sua espionagem ficou registrado numa “Memória” que acabou sendo descoberta numa biblioteca de Florença há uma década.

O documento demostra que os eclesiásticos reclusos haviam desenvolvido a ponta da técnica e que seus métodos não perderam um milímetro de atualidade.

Le Clos du Cellier aux Moines; Abbaye de Valmagne, Coteaux du Languedoc;  Deo Gratias, abadia de Corbières; Abbaye Sylva Plana, Le Songe de l'Abbé.  Fundo: abadia de Royaumont, Ile de France.
Le Clos du Cellier aux Moines; Abbaye de Valmagne, Coteaux du Languedoc;
Deo Gratias, abadia de Corbières; Abbaye Sylva Plana, Le Songe de l'Abbé.
Fundo: abadia de Royaumont, Ile de France.
Acresce que as propriedades dos monges possuíam uma estabilidade de séculos, e os vinhos, portanto, herdavam séculos de requintes.

Porém, a torpeza da Revolução Francesa golpeou a própria base desta paciente construção: a propriedade.

As abadias de Cluny e Cîteaux foram arrasadas e todos os bens da Igreja foram confiscados, depredados e vendidos a vil preço.

Alguns desses vinhedos haviam sido vendidos a particulares em tempos anteriores em circunstâncias diversas.

Foi o caso do vinhedo que produz um vinho cujo simples nome faz sonhar os especialistas: o de Romanée cedido em 1631, e o de Clos de Bèze em 1651.

Ainda hoje há vinhos abaciais produzidos por sucessores dos compradores dos vinhedos monásticos durante os desmandos democráticos revolucionários.

Os dias atuais exigem objetivos de rentabilidade que nem passavam pela cabeça dos monges que aspiravam à eternidade.

Mas, o exemplo dos religiosos medievais ainda exerce boa influência.

Como diz um dos atuais proprietários, citado por “Le Figaro”: “num local como este não há opção: nós temos a obrigação de fazer o melhor”.




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