Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
Origens do regime feudal
Para compreender a Idade Média, temos de nos representar uma sociedade que vive de modo totalmente diferente, da qual a noção de trabalho assalariado, e mesmo em parte a de dinheiro, estão ausentes ou são muito secundárias.
O fundamento das relações de homem para homem é a dupla noção de fidelidade, por um lado, e por outro a de proteção.
Assegura-se devoção a qualquer pessoa, e dela espera-se em troca a segurança.
Não se compromete a atividade em função de um trabalho preciso, de uma remuneração fixa, mas a própria pessoa, ou melhor, a sua fé, e em troca se requer subsistência e proteção, em todos os sentidos da palavra.
Tal é a essência do vínculo feudal.
Esta característica da sociedade medieval explica-se, ao considerarmos as circunstâncias que presidiram à sua formação.
A origem encontra-se nessa Europa caótica do século V ao século VIII. O Império Romano desmoronava-se sob o duplo efeito da decomposição interior e da pressão das invasões.
Tudo em Roma dependera da força do poder central. A partir do momento em que esse poder foi ultrapassado, a ruína era inevitável. Nem a cisão em dois impérios nem os esforços de recuperação provisória poderiam travá-la.
Nada de sólido subsiste nesse mundo em que as forças vivas foram pouco a pouco esgotadas por um funcionalismo sufocante, onde o fisco oprime os pequenos proprietários.
Em breve estes não têm outro recurso senão ceder as suas terras ao Estado para pagar os impostos. O povo abandona os campos, e para o trabalho dos campos apela voluntariamente a esses mesmos bárbaros que dificilmente são contidos nas fronteiras.
É assim que na Gália os borguinhões se instalam na região Sabóia-Franco-Condado e se tornam os rendeiros dos proprietários galo-romanos, cujo domicílio partilham.
Sucessivamente, pacificamente ou pela espada, as hordas germânicas ou nórdicas assomam no mundo ocidental.
Roma é tomada e retomada pelos bárbaros, os imperadores são eleitos e destituídos conforme o capricho dos soldados. A Europa não é mais que um vasto campo de batalha, onde se enfrentam as armas, as raças e as religiões.
Como poderá alguém defender-se numa época em que a agitação e a instabilidade são a única lei?
O Estado encontra-se distante e impotente, senão inexistente, cada um move-se por isso naturalmente em direção à única força que permaneceu realmente sólida e próxima: os grandes proprietários fundiários, que podem assegurar a defesa do seu domínio e dos seus rendeiros.
Fracos e pequenos recorrem a eles, confiam-lhes a sua terra e a sua pessoa, com a condição de se verem protegidos contra os excessos fiscais e as incursões estrangeiras.
Por um movimento que se tinha esboçado a partir do Baixo Império, e não tinha parado de se acentuar nos séculos VII e VIII, o poderio dos grandes proprietários aumenta com a fraqueza do poder central.
Cada vez mais se procura a proteção do “senhor” (senior), a única ativa e eficaz, que protegerá não só da guerra e da fome, mas também da ingerência dos funcionários reais.
Assim se multiplicam as cartas de vassalagem, pelas quais a arraia-miúda se liga a um “senhor” para garantir a sua segurança pessoal.
Os reis merovíngios tinham o hábito de se cercar de uma corte de “fiéis” (fideles), homens devotados à sua pessoa, guerreiros ou outros, o que por imitação levará os poderosos da época a agruparem à sua volta os “vassalos” (vassi) que julgaram bom recomendarem-se a eles.
Enfim esses próprios reis, cada vez mais desprovidos de autoridade face aos grandes proprietários, contribuíram muitas vezes para a formação do poder dominial distribuindo terras aos seus funcionários, para retribuir os seus serviços.
Quando os carolíngios chegaram ao poder, a evolução estava quase terminada.
Em toda a extensão do território, senhores mais ou menos poderosos, agrupando à sua volta os seus homens, os seus fiéis, administravam os feudos mais ou menos extensos.
Sob a pressão dos acontecimentos, o poder central tinha dado lugar ao poder local, que tinha absorvido pacificamente a pequena propriedade, e afinal de contas permanecia a única força organizada.
A hierarquia medieval, resultado dos fatos econômicos e sociais, tinha-se formado a partir de si própria; e os seus usos, nascidos sob a pressão das circunstâncias, manter-se-iam pela tradição. Não tentaram lutar contra o estado dos acontecimentos.
A dinastia de Pepino tinha chegado ao poder porque os seus representantes se contavam entre os mais fortes proprietários da época.
Contentaram-se em canalizar as forças das quais faziam parte, e em aceitar a hierarquia feudal tirando dela o partido que podiam tirar.
Tal é a origem do estado social da Idade Média, cujas características são completamente diferentes das que se conheceram até então.
A autoridade, em lugar de estar concentrada num só ponto (indivíduo ou organismo), encontra-se repartida pelo conjunto do território.
A grande sabedoria dos carolíngios foi de não tentarem ter nas mãos toda a máquina administrativa, mantendo a organização empírica que tinham encontrado.
A sua autoridade imediata se estendia apenas a um pequeno número de personagens, que possuíam elas próprias autoridade sobre outros, e assim sucessivamente até às camadas sociais mais humildes.
De degrau em degrau, uma ordem do poder central podia assim transmitir-se ao conjunto do país, e aquilo que não controlavam diretamente podia ser atingido indiretamente.
Em lugar de combatê-la, Carlos Magno contentou-se em disciplinar a hierarquia que deveria impregnar tão fortemente os hábitos franceses.
Reconhecendo a legitimidade do duplo juramento que todo homem livre devia a si próprio e ao seu senhor, ele consagrou a existência do vínculo feudal.
Tal é a origem da sociedade medieval, e também a da nobreza fundiária, não a militar, ao contrário do que se julgou demasiadas vezes.
Desta formação empírica, modelada pelos fatos, pelas necessidades sociais e econômicas, (Citemos a excelente fórmula de Henri Pourrat: “O sistema feudal foi a organização viva imposta pela terra aos homens da terra” (L’homme à la bêche. Histoire du paysan, p. 83) decorre uma extrema diversidade na condição das pessoas e dos bens.
A diversidade provinha do fato que a natureza dos compromissos que uniam o proprietário ao seu rendeiro variava segundo as circunstâncias, a natureza do solo e o modo de vida dos habitantes.
Toda sorte de fatores entram em jogo, os quais tornam diferentes as relações e a hierarquia de uma província para outra, ou mesmo de um domínio para outro.
Mas o que permanece estável é a obrigação recíproca: fidelidade por um lado, proteção pelo outro. Por outras palavras, o vínculo feudal.
Normandos: re-encenação da batalha de Hastings |
Sobre essas ruínas lançaram-se em novas e devastadoras incursões os bárbaros, os normandos, os húngaros e os sarracenos.
Não podiam as populações, assim acometidas de todos os lados, resistir a tantas calamidades com o mero recurso ao já muito debilitado poder central dos reis.
Voltaram-se, muito naturalmente, para os respectivos proprietários de terras, em demanda de quem as comandasse e as governasse em tão calamitosa circunstância.
Acedendo ao pedido, os proprietários construíram fortificações para si e para os “seus”.
Com a designação “seus”, o espírito do tempo, profundamente cristão, incluía, paternalmente, não só os familiares, mas a chamada sociedade heril.
Essa era formada pelos empregados domésticos, trabalhadores manuais e respectivas famílias, que habitavam as terras do proprietário.
Essas fortificações, com o tempo, se foram transformando nos altaneiros castelos senhoriais, de que restam hoje tantos exemplares.
E, no recinto desses castelos, cabiam por vezes até os bens móveis e o gado que cada família de camponeses conseguia subtrair assim à cupidez dos invasores.
Na reação militar, o proprietário rural e os seus familiares eram os primeiros combatentes.
O dever deles era comandar, estar na vanguarda, na perigosa direção das ofensivas mais arriscadas, das defensivas mais obstinadas.
À condição de proprietário somou-se assim a de chefe militar e de herói.
Muito naturalmente, todas essas circunstâncias revertiam, nos intervalos de paz, em poder político local sobre as terras circundantes.
Esse poder político fazia do proprietário um senhor, um Dominus no sentido pleno da palavra, com funções de legislador e juiz.
E, enquanto tal, um traço de união com o rei.
transição para o homem livre
Um ponto que serve para mostrar o tipo de tratamento reinante entre os diversos graus da hierarquia social é a comparação entre os escravos da Antiguidade e os servos da gleba na época medieval.
Na Antiguidade pagã o escravo não tinha qualquer direito, nem mesmo o da vida.
Podia ser morto por seu dono, que tinha direito de vida e de morte sobre ele.
Não tinha direito a constituir família.
Se alguma escrava tinha um filho, este podia ser vendido e mandado para longe da mãe, como um animal.
Ao final do Império Romano, quando este já se havia tornado cristão, foi reconhecido aos escravos o direito ao matrimônio.
Este processo fazia parte daquilo que se chamou de humanização do Direito Romano, atribuída à influência cristã.
Tal direito ao matrimônio, porém, não impedia que o casal pudesse ser separado, vendido, etc.
Não era ainda o direito ao matrimônio do homem livre.
Foi somente com a instauração da Cristandade medieval na Europa que se conheceu, pela primeira vez na História, um continente inteiro sem a escravidão.
O servo da gleba era um servidor que não tinha o direito de sair do lugar onde trabalhava.
Era ligado à gleba, não sendo, portanto, um homem livre em toda a força do termo.
Porém, apesar de não ser totalmente livre, desfrutava de muitos direitos.
Inerente à sua própria condição, tinha o direito de permanecer na terra onde trabalhava, não podendo ser expulso dela pelo seu senhor.
Exercia também uma espécie de direito de propriedade sobre a casa onde morava e sobre uma parte das terras que cultivava.
Seu tempo era dividido entre o trabalho nas terras do senhor e em suas próprias terras, de cujos frutos ele vivia.
Algumas vezes beneficiava-se ainda de uma porcentagem do que produzia nas terras do senhor.
Seu contrato de trabalho era hereditário e intocável.
Tinha direito a constituir família e só podia ser castigado fisicamente em caso de comprovado mau comportamento.
Se o senhor vendia as terras que possuía, estas eram alienadas junto com o servo, que não podia ser mandado embora.
A servidão da gleba era um estado intermediário entre a escravidão e a liberdade.
Quando terminou a Idade Média quase não havia mais servos da gleba na Europa.
Na Idade Média, sob a influência da Igreja, constituiu-se uma classe dos homens livres, classe esta muito menos numerosa na Antiguidade, época histórica em que uma parcela considerável da população era constituída por escravos.
A expressão servo da gleba continuou em uso até a Revolução Francesa.
Mas então os que se denominavam servos eram os descendentes dos antigos servos da gleba, sendo proprietários das terras que cultivavam, pagando aos nobres um pequeno imposto pelo fato de, outrora, tais terras terem pertencido à nobreza.
A origem histórica dos servos da gleba remonta à época das invasões dos bárbaros, nos séculos IV e V, quando o Império Romano do Ocidente se desagregou.
Os proprietários de terras, que possuíam certos recursos, começaram a construir fortificações para se abrigar contra os invasores.
Então muitos homens, que não tinham condições para se defender dos ataques dos bárbaros, pediam licença para se refugiar nas fortificações daqueles proprietários, as quais constituíam a forma primitiva do que foi mais tarde o castelo medieval.
Os proprietários geralmente impunham como condição aos abrigados, que estes cultivassem as terras no tempo de paz e os ajudassem na luta contra os invasores, em época de guerra.
Formou-se assim um contrato do servo com o proprietário.
Na época em que foi instituída, a servidão da gleba foi aceita como algo natural, fruto das circunstâncias.
Porque um senhor, diante das grandes hordas que se deslocavam, precisava ter certeza de que sua propriedade teria um número suficiente de homens para defendê-la.
Era-lhe vantajoso estabelecer um contrato vitalício, e mesmo hereditário.
Do mesmo modo, era vantajoso para os servos, os quais, muitas vezes não eram homens livres, mas antigos escravos romanos.
Sua situação foi suavizada, pela influência da Igreja, mediante a condição de servos da gleba, antes de ser totalmente abolida a escravidão.
nasceram naturalmente e sem planificação
Senhores feudais: pequenos reis com poder desdobrado do monarca. Iluminura de: Manessische Liederhandschrift, Der Schenke von Limburg |
Eles então lançavam mão da mesma fórmula, recorrendo aos senhores feudais menores, por um processo análogo: nomeando ou reconhecendo situações criadas.
Esses senhores feudais tinham certa analogia com os “coronéis” da história brasileira, ou certos grandes proprietários nas regiões que outrora estavam sendo desbravadas.
Os senhores feudais de categoria secundária têm um desdobramento do poder do primeiro senhor feudal, e assim, de participação em participação, chegamos às últimas escalas da hierarquia feudal.
Partimos de uma grande fonte de poder que é o rei e encontramos, nas várias escalas da hierarquia feudal, participações sucessivas, que se assemelham aos galhos de uma árvore.
O rei seria o tronco e as várias categorias de nobreza seriam os galhos, sucessivamente mais delgados, até constituir o cimo da copa da árvore, toda alimentada por uma mesma seiva, que é o poder real, do qual tudo emana e para o qual tudo tende.
La Bourbansais, pequeno castelo na Bretanha, França |
Pelo contrário, deita galhardamente seus inúmeros galhos em todas as direções, vendo com alegria que se desenvolvem autonomamente.
A participação no poder real levava a reconhecer em cada homem a dignidade que lhe confere a função ou o cargo que ocupa.
O rei tem uma tal grandeza que chamaríamos de majestade.
A majestade é o pináculo da grandeza humana e corresponde ao poder real.
Abaixo do rei seria impróprio dizer que um duque, por exemplo, tem majestade.
Diríamos que ele tem elevação, alteza, distinção, eminência, mas não majestade.
Respeitabilidade e veneração em todos os niveis sociais. Oculista pinga colírio em paciente, Biblioteca Municipal de Besançon, ms 475 folio 1. |
Do mesmo modo, não podemos nos referir a um conde, a um marquês, dizendo alteza ou eminência.
A expressão seria demasiada. Poderíamos dizer que um conde tem saliência, relevo, destaque, projeção, mas não alteza ou eminência. É, portanto, mais uma redução.
De um nobre menos elevado poderíamos dizer simplesmente que tem fidalguia.
Isto é, ele é um homem um pouco mais saliente, um pouco mais distinto, um pouco mais elevado, mas que já toca na massa geral dos outros homens.
E analisando mais profundamente este conceito, vemos que essas ideias de dignidade, de majestade, de distinção, de elevação, tão frequentes na Idade Média, se aplicavam também, embora com menor plenitude, às pessoas da plebe.
Juízes, professores, mestres de ofício, pequenos proprietários de terra, pais de família, etc., também tinham um proporcionado e análogo reconhecimento, respeito e veneração.
Relações recíprocas entre nobre e vassalos: baseadas na proteção e fidelidade |
No plano econômico, as relações de homem para homem reduzem-se às relações do capital e do trabalho.
Executar um trabalho determinado, receber em troca uma certa soma, tal é o esquema das relações sociais.
O dinheiro é o nervo essencial delas, pois com raras exceções uma atividade determinada se transforma de início em numerário, antes de se transformar novamente em objeto necessário à vida.
Para compreender a Idade Média, é preciso se afigurar uma sociedade vivendo de modo totalmente diverso, em que a noção de trabalho assalariado, e em parte até mesmo a do dinheiro, são ausentes ou secundárias.
O fundamento das relações de homem a homem é a dupla noção de fidelidade e proteção.
Assegura-se a alguém seu devotamento, e em troca espera-se dele segurança.
Não se contrata sua atividade, tendo em vista um trabalho determinado com remuneração fixa, mas sua pessoa, ou antes sua fidelidade.
Proteção até contra animais perigosos |
Tal é a essência do liame feudal.
Durante toda a Idade Média, sem esquecer sua origem territorial, senhorial, a nobreza teve uma conduta sobretudo militar.
É que, de fato, seu dever de proteção comportava de início uma função guerreira: defender seu domínio contra as invasões possíveis.
Apesar dos esforços em reduzir o direito de guerra privada — tais guerras foram mitigadas pela ação da Igreja, mediante a trégua de Deus e a quarentena — ele ainda subsistia, e a solidariedade familiar podia implicar a obrigação de vingar pelas armas as injúrias feitas a um dos seus.
Acrescenta-se ainda uma questão de ordem material. Detendo a principal, senão a única fonte de riqueza, que era a terra, apenas os senhores tinham a possibilidade de equipar um cavalo de guerra e de armar escudeiros e oficiais.
O serviço militar será, pois inseparável do serviço de um feudo, e a fidelidade prestada pelo vassalo nobre supõe auxílio de suas armas, todas as vezes que for necessário.
Casas populares perto do castelo para nele se refugiar |
A espada diz:
“É minha justiça e encargo guardar os clérigos da Santa Igreja e aqueles que produzem o alimento”.
Os mais antigos castelos, aqueles que foram construídos nas épocas de turbulência e invasões, trazem a marca visível dessa necessidade.
A aldeia e as habitações dos camponeses estão nos arredores da fortaleza, em cujo recinto toda a população irá se refugiar por ocasião de perigo, e onde ela encontrará auxílio e mantimentos em caso de sítio.
homenagem ao senhor, proteção ao vassalo
A Idade Média é uma época em que triunfa o rito, em que tudo o que se realiza na consciência deve passar obrigatoriamente a ato.
Isto satisfaz uma necessidade profundamente humana: a do sinal corporal, à falta do qual a realidade fica imperfeita, inacabada, fraca.
O vassalo presta “fidelidade e homenagem” ao seu senhor.
Fica na sua frente de joelhos, com o cinturão desfeito, e coloca a mão na dele — gestos que significam o abandono, a confiança, a fidelidade.
Declara-se seu vassalo e confirma-lhe a dedicação da sua pessoa. Em troca, e para selar o pacto que doravante os liga, o suserano beija o vassalo na boca.
Este gesto implica mais e melhor que uma proteção geral, é um laço de afeição pessoal que deve reger as relações entre os dois homens. Segue-se a cerimônia do juramento, cuja importância não é demais sublinhar.
É preciso entender juramento no seu sentido etimológico de sacramentum, coisa sagrada. Jura-se sobre os Evangelhos, realizando assim um ato sagrado que compromete não só a honra, mas a fé, a pessoa inteira.
O valor do juramento é tão grande, e o perjúrio tão monstruoso, que não se hesita em manter a palavra dada em circunstâncias extremamente graves — por exemplo, para atestar as últimas vontades de um moribundo com o testemunho de uma ou duas pessoa.
Renegar um juramento representa na mentalidade medieval a pior das desonras.
Uma passagem de Joinville manifesta de maneira muito significativa que se trata de um excesso, porque um cavaleiro não pode decidir-se, mesmo que a sua vida esteja em jogo.
Quando do seu cativeiro, os drogomanos do sultão do Egito vieram oferecer a libertação a ele e aos companheiros, e perguntaram-lhe se daria para a sua libertação algum dos castelos que pertencem aos barões de além-mar.
O conde respondeu que não tinha poder, porque eles pertenciam ao imperador da Alemanha, ainda vivo.
Perguntaram se entregaríamos algum dos castelos do Templo ou do Hospital, para a nossa libertação.
E o conde respondeu que não podia ser, pois quando aí se nomeava um castelão, faziam-no jurar pelos santos que não entregaria castelo algum para libertação de corpo de homem.
E eles manifestaram que parecia não termos talento para nos libertarmos, e que se iriam embora e nos enviariam aqueles que nos lançariam espadas, como tinham feito aos outros (isto é, que os massacrariam como aos outros).
A cerimônia completa-se com a investidura solene do feudo, feita pelo senhor ao vassalo.
Confirma-lhe a posse desse feudo por um gesto de traditio, entregando-lhe geralmente uma vara ou um bastonete, símbolo do poder que deve exercer no domínio desse senhor.
É a investidura cum baculo vel virga, para empregar os termos jurídicos em uso na época.
Desse cerimonial, das tradições que ele supõe, decorre a elevada concepção que a Idade Média fazia da dignidade pessoal.
Durante a maior parte da Idade Média, a principal característica do vínculo feudal é ser pessoal.
Um vassalo preciso e determinado recomenda-se a um senhor igualmente preciso e determinado, decide vincular-se a ele, jura-lhe fidelidade e espera em troca subsistência material e proteção moral.
Quando Roland morre, evoca “Carlos, meu senhor que me alimentou”, e esta simples evocação diz bastante da natureza do vínculo que os une.
Somente a partir do século XIV o vínculo se tornará mais real que pessoal.
Ligar-se-á à posse de uma propriedade e decorrerá das obrigações fundiárias que existem entre o senhor e os seus vassalos, cujas relações se assemelharão desde então muito mais às de um proprietário com os seus locatários.
É a condição da terra que fixa a condição da pessoa.
Mas, para todo o período medieval propriamente dito, os vínculos criam-se de indivíduo para indivíduo: Nihil est preter individuum (nada existe fora do indivíduo).
O gosto de tudo o que é pessoal e preciso, o horror da abstração e do anonimato são características da época.
Este vínculo pessoal que liga o vassalo ao suserano é proclamado no decorrer de uma cerimônia em que se afirma o formalismo, caro à Idade Média, porque qualquer obrigação, transação ou acordo deve traduzir-se por um gesto simbólico, forma visível e indispensável do assentimento interior.
Quando se vende um terreno, por exemplo, o que constitui o ato de venda é a entrega pelo vendedor ao novo proprietário de um pouco de palha ou um torrão de terra proveniente do seu campo.
Se a seguir se faz uma escritura — o que nem sempre ocorre —, servirá apenas para memória.
O ato essencial é a traditio, como nos nossos dias é o aperto de mão em alguns mercados.
Diz o Ménagier de Paris:
“Como sinal deste grande acontecimento (por exemplo, uma transação importante), entregar-lhe-ei um pouco de palha, ou um prego velho, ou uma pedra que me foram entregues”.
Nenhuma época esteve mais pronta do que a Idade Média para afastar as abstrações, os princípios, para se entregar unicamente às convenções de homem para homem; e também nenhuma fez apelo a mais elevados sentimentos como base dessas convenções.
Era prestar uma magnífica homenagem à pessoa humana.
Conceber uma sociedade fundada sobre a fidelidade recíproca, era indubitavelmente audacioso.
Como se pode esperar, houve abusos, faltas, e as lutas dos reis contra os vassalos recalcitrantes são a prova disso.
Resta dizer que durante mais de cinco séculos a fé e a honra permanecem a base essencial, a armadura das relações sociais.
Quando estas foram substituídas pelo princípio de autoridade, no século XVI e sobretudo no século XVII, não se pode pretender que a sociedade tenha ganho com isso.
Em qualquer dos casos, a nobreza, já enfraquecida por outras razões, perdeu a sua força moral essencial.
O povo de Gante rende homenagem a Luis de Male |
Eles matavam os trabalhadores manuais ou os reduziam a escravos.
Então, os camponeses pediam aos patrões para recebê-los na casa deles. E os patrões de pena deles e achando que era justo protegê-los, pois eram católicos, começaram a construir em torno de suas casas recintos muito grandes com muralhas de pedra.
Em cima das muralhas, instalaram um passadiço por onde os guerreiros podiam ver de longe. Se viam chegar os invasores, eles batiam um sino e todos os homens vinham guarnecer a parte alta da muralha.
De cima, eles atiravam flechas ou esperavam que os atacantes subissem em escadas. Quando a escada estava cheia de atacantes, eles pegavam a ponta da escada apoiada na muralha e jogavam no chão. Eles jogavam também água fervendo.
Os patrões, aos poucos, construíram torres e portas fortificadas. A porta era especialmente preparada com toras de madeira ligadas por placas de metal.
No teto da porta eles punham frestas e em cima tachos com fogueiras que eles acendiam óleo ardente.
Quando os invasores entravam, dessas frestas caía óleo em ebulição, e com isso eles continham a invasão.
Eles fizeram também grades que desciam por máquinas. Limar as grades com óleo caindo o tempo inteiro junto era impraticável. Em última análise a casa do senhor ficava fortificada.
A casa do patrão deixou de ser exclusivamente dele para ser um enorme braço paterno segurando em torno de si toda a população local.
Para construir tudo isso era preciso ter cabeça. Os patrões naturalmente tinham, os empregados não tinham.
Quem dirigia a defesa era o patrão. Depois, o patrão era homem de combate, porque em época de paz quem matava as feras que haviam no mato para os camponeses trabalharem livremente eram os patrões.
Em época de paz, os patrões viviam em luta contra javalis e animais selvagens de toda ordem das florestas profundas da Europa. Os empregados não eram homens de guerra, eles eram homens de trabalho.
Os patrões no tempo de guerra comandavam porque sabiam como dirigir uma guerra e eles não sabiam. Então as relações entre patrões e empregados acabaram sendo relações de pais e filhos inteiramente.
Capela do castelo de Lourdes. A entrada é pela porta lateral |
Durante o ataque, os capelães não podiam combater, porque era missão deles não usar as armas, mas eles estavam junto aos defensores incitando: "Coragem, Deus o quer!"
Mostravam um crucifixo e iam para frente. "Vamos salvar a cruz"! Os homens do povo iam todos. O senhor feudal ia à frente, com espada, couraça, elmo, montando a cavalo.
Ele era o chefe e o pai daquele povo.
Como é que isso nasceu? Alguém fez um bonito plano? Não!
Foi espontaneamente, as circunstâncias obrigaram a que isso fosse assim. Assim nasceu na era medieval a maior parte dos castelos da Europa.
Castelos com altas torres e muralhas, lindas portas.
No centro do castelo a torre de menagem, mais alta do que todas, e de onde eles podiam soltar pombos correio para avisar aos aliados: "Nós estamos sitiados venha nos ajudar."
Dessa torre partiam subterrâneos para lugares onde os donos e os empregados podiam fugir, caso estivessem perdendo a batalha em cima, porque os subterrâneos percorriam uma zona grande e iam abrir lá longe onde o adversário nem imaginava que abrisse. Essa defesa os empregados deviam aos patrões.
Isso criou uma mudança radical nas relações dos patrões com os empregados.
Antes das invasões havia apenas o patrão e o empregado.
Depois, o empregado ficou dependendo da direção do patrão para fazer uma guerra de defesa eficaz.
E o patrão ficou chefe militar, não apenas o chefe econômico.
Era portanto, muito mais admirado e respeitado do que um simples chefe civil.
Ele passou a ser uma espécie de reizinho do lugar: o senhor feudal do lugar.
É natural que o senhor feudal do lugar se traje melhor, tome uma melhor educação, coma melhor, enfim, se esplendorize e enriqueça.
Por essa razão eles passaram a ser os chefes respeitados, os nobres.
Enquanto o operário, o camponês e o trabalhador manual ficaram plebeus.
Não tinham os sinais externos esplendorosos, mas tampouco tinham as obrigações complicadas e dolorosas dos nobres.
A diferença entre as duas classes se fez normalmente.
O nobre foi produto de uma germinação local e que deu na linda nobreza europeia.
No Brasil, coisa análoga se deu nos tempos da evangelização e conquista do país para a civilização em torno das primeiras fazendas e engenhos.
Não se trata aqui de fazer a apologia do feudalismo sob os dois pontos de vista — o social e o político.
Mas o passado pertence à justiça, e a justiça impõe aos homens imparciais e sinceros o dever de reconhecer uma verdade tão brilhante quanto a luz do dia, declarando que a época feudal foi, de todas as fases percorridas até agora pela sociedade temporal, a mais constantemente favorável ao desenvolvimento da Igreja.
Após um estudo mais consciencioso dos fatos, não temos receio de proclamar: de todas as potências que reinaram sobre o mundo antes ou depois da aristocracia feudal da Idade Média, nenhuma atribuiu à Igreja tão grande porção de autoridade, de riquezas, de honra, e sobretudo de liberdade, tão prodigamente espalhadas sobre a face da Terra.
Nenhuma escutou de modo tão respeitoso a sua voz, dedicada à defesa de suas liberdades e de seus direitos, com tão numerosos e tão valentes exércitos; nenhuma, enfim, povoou seus santuários com tão grande número de fiéis e de santos.
Atacar o feudalismo em nome da Igreja, esse sistema que obteve para ela tudo o que a monarquia e a democracia tomaram para si, é ao mesmo tempo o cúmulo da ignorância e da ingratidão.
Carcassonne, fortaleza construída pelo rei São Luís IX |
Pelo contrário, existia abaixo do monarca, sob a sua égide tutelar e sob o seu poder supremo, para conservar em seu favor esse grande todo orgânico de regiões e de localidades autónomas, que era então uma Nação.
Mesmo nas épocas em que o esfacelamento de facto do poder real fora levado mais longe, jamais se contestou o princípio monárquico unitário.
Uma nostalgia da unidade régia – e até, em muitos lugares, da unidade imperial carolíngia, abarcativa de toda a Cristandade – jamais cessou de existir na Idade Média.
Assim, à medida que os reis foram recuperando os seus meios de exercer um poder efetivamente abrangente de todo o reino e representativo do bem comum deste, o foram exercendo.
Claro está que esse imenso processo de fixação, de definição e de organização, em nível local e depois regional, seguido de um não menor processo de rearticulação unificadora e centralizadora nacional, não se operou sem que aparecessem aqui ou acolá reivindicações excessivas, unilateral e apaixonadamente formuladas, da parte dos que representavam justas autonomias ou promoviam necessárias rearticulações.
E tudo isto conduzia, em geral, a guerras feudais que eram por vezes longas e entrelaçadas com conflitos internacionais.
Tal era o duro tributo assim pago pelos homens em razão do pecado original, dos pecados atuais, da moleza ou da maior complacência com que resistem ao espírito do mal, ou então a este se entregam.
Sem embargo de todos estes obstáculos, o sentido profundo da história do feudalismo e da nobreza não se explica sem tomar em consideração o que ficou dito.
Camponeses cultivam a terra protegidos pelo senhor feudal e pela Igreja |
Na realidade, as origens e o desenvolvimento do regime feudal e da hierarquia que o caracterizava deram-se aqui e lá de modos diversos, sob a acção de circunstâncias também diferentes, não se aplicando a todos os Estados europeus, mas a vários deles.
A título exemplificativo, entretanto, pode-se descrever como acima o processo constitutivo desse regime.
Muitos traços desse quadro encontram-se na história de mais de um reino que, entretanto, não teve um regime feudal no sentido pleno do termo. Exemplos frisantes de tal, são as duas nações ibéricas, Portugal e Espanha.
Muitos historiadores vêem no feudalismo instituído em certas regiões da Europa, e nas situações fundiárias para-feudais formadas em outras, perigosos factores de desunião.
Entretanto, a experiência tem mostrado que a autonomia, considerada em si mesma, não é necessariamente factor de desunião.
Por exemplo, ninguém vê hoje em dia, na autonomia dos Estados integrantes das repúblicas federativas existentes no Continente americano, factores de desunião; pelo contrário, modos de relacionamento ágeis, plásticos, fecundos, de uma união entendida com inteligência.
Porque regionalismo não quer dizer hostilidade entre as partes, ou destas com o todo, mas autonomia harmónica, como também riqueza de bens espirituais e materiais, tanto nos traços comuns a todas as regiões, quanto nas características peculiares a cada uma delas.
Reunião dos Estados Gerais (Assembleia dos representantes de todas as classes sociais) na França |
Pelo contrário, o rei estava em relação ao senhor feudal como um original está para a sua miniatura, mas uma miniatura viva, dotada de verdadeira iniciativa e poder efetivo próprio.
Um príncipe de Condé, por exemplo, era uma miniatura de rei da França.
Quer dizer, as autoridades locais eram, em ponto pequeno, reis locais com larguíssima dose de autonomia.
Como se fez isso?
Na França, por exemplo, o rei desmembrava o seu reino em feudos, e dava a cada senhor feudal uma parcela do poder real.
Desse modo o senhor feudal não era apenas uma miniatura do rei, mas participante do poder do rei.
Carlos Magno é beijado pelo seu filho Luis, o Piedoso |
Ela era, por assim dizer, uma extensão do rei. É miniatura no sentido de que é uma parcela, e não porque possua tamanho
menor e se lhe pareça.
Essa ligação que o senhor feudal tem com o rei faz dele uma espécie de desdobramento do próprio rei.
Os senhores feudais de categoria secundária têm um desdobramento do poder do primeiro senhor feudal. Assim, de participação em participação, chegamos às últimas escalas da hierarquia feudal.
Partimos de uma grande fonte de poder, que é o rei, e encontramos nas várias escalas da hierarquia feudal participações sucessivas, que se assemelham aos galhos de uma árvore.
O rei seria o tronco, e as várias categorias de nobreza seriam os galhos, sucessivamente menores e sucessivamente mais delgados, até constituir o cimo da copa da árvore.
E a árvore toda é alimentada por uma mesma seiva, que é o poder real, do qual tudo emana e para o qual tudo tende.
Entretanto não é absorvente. Pelo contrário, deita seus inúmeros galhos em todas as direções.
Eis aí configurada a ideia da participação do poder feudal, um dos aspectos originalíssimos do feudalismo.
Custa-nos compreender isso no nosso século onde tudo é planificado por governos que pairam sobre os cidadãos a anos-luz de distanciamento psicológico.
E onde parlamentos e organizações mundiais decidem sobre o destino do simples cidadão, sem interpretar bem o que ele quer, e sem que ele saiba o que se passa de fato nesses cenáculos, como também não entende o que acontece dentro de um OVNI, se é que existe.
A classe nobre formou-se como uma participação subordinada no poder real.
Estava a cargo dela o bem comum de ordem privada, que era a conservação e o incremento da agricultura e da pecuária, das quais viviam tanto nobres quanto plebeus.
E também estava a cargo dela o bem comum de ordem pública – decorrente da representação do rei na zona – mais elevado, de natureza mais universal, e por isso intrinsecamente nobre.
Por fim, tinha a nobreza alguma participação no exercício do próprio poder central do monarca, pois os nobres de categoria mais elevada eram, em mais de um caso, conselheiros normais dos reis.
E nobres eram, na maior parte, os ministros de Estado, os embaixadores e os generais, cargos indispensáveis para o exercício do governo supremo do País.
Ou seja, o nexo entre as altas funções públicas e a condição nobiliárquica era tal que, mesmo quando ao bem comum convinha que pessoas da plebe fossem elevadas a essas funções, geralmente acabavam por receber do rei títulos nobiliárquicos que as alçavam, e muitas vezes também aos seus descendentes, à condição de nobres.
O proprietário, colocado pela força das circunstâncias em missão mais elevada do que a da mera produção fundiária, isto é, a de certa tutela da salus publica na guerra como na paz, assim se achava investido de poderes normalmente governamentais, de extensão local.
Desse modo, ascendia ele ipso facto a uma condição mais alta, na qual lhe cabia ser como que uma miniatura do rei.
A sua missão era, pois, intrinsecamente participativa da nobreza da própria missão régia.
A figura do proprietário-senhor nobre nascia assim da espontânea realidade dos factos.
Essa missão, a um tempo privada e nobre, comportou uma ampliação paulatina quando as circunstâncias – mais desafogadas de apreensões e perigos externos – iam permitindo à Europa cristã conhecer mais longos períodos de paz.
E por muito tempo não cessou de ampliar-se.
Das obrigações militares da nobreza decorre a maior parte dos seus costumes.
O direito de primogenitura vem, em parte, da necessidade de confiar ao mais forte a herança que ele deve garantir, muitas vezes pela espada.
A lei sálica se explica também por isso, pois só um homem pode assegurar a defesa de um castelo (donjon).
Assim pois, quando uma mulher se torna a única herdeira de um feudo, o suserano tem o dever de casá-la.
Eis por que a mulher apenas sucederá após seus filhos mais jovens, e estes após o primogênito.
Estes só receberão apanágios, e ainda assim muitos desastres ocorridos pelo fim da Idade Média tiveram por origem os demasiados apanágios deixados a seus filhos por João, o Bom.
O poder foi para eles uma tentação perpétua, e para todos uma fonte de desordem durante a minoridade de Carlos VI.
Os nobres têm igualmente o dever de fazer justiça a seus vassalos de todas as condições e de administrar o feudo.
Trata-se precisamente do exercício de um dever, e não de um direito, implicando em responsabilidades bastante pesadas, pois cada senhor deve dar contas de seu domínio, não somente à sua linhagem, mas também a seu suserano.
Etienne de Fougères descreve a vida do senhor de um grande domínio como cheia de preocupações e de cansaços:
Cá e lá vai, muitas vezes volta,
Não repousa nem descansa.
Perto dos castelos ou longe deles,
Às vezes alegre, quase sempre triste.
Cá e lá vai, não dorme,
Para que seu caminho não se interrompa.
Longe de ser ilimitado, como geralmente se acreditou, seu poder é bem menor do que o de um industrial ou qualquer proprietário de nossos dias, porque ele jamais tinha a propriedade absoluta de seu domínio.
Dependia sempre de um suserano, e os suseranos, mesmo os mais poderosos, dependiam do rei.
Em nossos dias, segundo a concepção romana, o pagamento de uma terra dá pleno direito sobre ela.
Na Idade Média não era assim. No caso de má administração, o senhor incorria em penas que podiam chegar ao confisco de seus bens.
Assim, ninguém governa com autoridade completa e não escapa ao controle direto daquele de quem ele depende.
Essa repartição da propriedade e da autoridade é um dos traços mais característicos da sociedade medieval.
tinha que fazer a guerra
Durante toda a Idade Média a nobreza, sem esquecer a sua origem fundiária, dominial, teve um modo de viver sobretudo militar.
Efetivamente o seu dever de proteção comportava em primeiro lugar a função guerreira de defender o seu domínio contra as possíveis usurpações.
Embora se esforçassem por reduzir o direito de guerra privada, ele subsistia e a solidariedade familiar podia implicar a obrigação de vingar pelas armas as injúrias feitas a um dos seus.
Uma questão de ordem material se lhe acrescentava, pois detendo com exclusividade a posse da terra, que era a principal fonte de riqueza, senão a única, os senhores eram os únicos com a possibilidade de equipar um cavalo de guerra, armar escudeiros e sargentos.
E o serviço militar será portanto inseparável do serviço do feudo.
A fé prestada pelo vassalo nobre supõe o contributo das suas armas, sempre que “disso for mester”.
É o primeiro encargo da nobreza, e um dos mais onerosos, é essa obrigação de defender o domínio e os seus habitantes.
Assim se vê num poema de Carité, de Reclus de Molliens:
L'épée dit: C'est ma justice
Garder les clercs de Saint Église
Et ceux par qui viandes est guise.
A espada disse: é meu dever
Manter os clérigos da Santa Igreja
E aqueles por quem os alimentos são obtidos.
As praças-fortes mais antigas, que foram construídas nas épocas de perturbação e de invasões, mostram a marca visível dessa necessidade.
A aldeia, as casas dos servos e dos camponeses, estão ligadas às encostas da fortaleza, onde toda a população irá refugiar-se em caso de perigo, e onde encontrará ajuda e abastecimento em caso de cerco.
Das obrigações militares da nobreza decorre a maior parte dos seus hábitos.
O direito de morgadio vem em parte da necessidade de confiar ao mais forte a herança que ele deve garantir, muitas vezes pela espada.
A lei de herança por masculinidade explica-se também dessa forma, pois só o homem pode assegurar a defesa de um torreão.
Por isso também, quando um feudo “cai em roca” (quando uma mulher é a única herdeira), o suserano sobre o qual recai a responsabilidade desse feudo, que ficou assim em estado de inferioridade, sente-se no dever de casá-la.
Por isso a mulher não sucederá senão após os filhos mais novos, e estes após o mais velho.
Eles só receberão apanágios, daí os desastres que ocorreram no fim da Idade Média terem tido como origem os apanágios excessivamente importantes deixados aos filhos por João, o Bom.
O poder que receberam tornou-se para eles uma tentação perpétua, e para todos uma fonte de desordens durante a menoridade de Carlos VI.
Os nobres têm o dever de proporcionar a justiça aos seus vassalos de qualquer condição, e igualmente o de administrar o feudo.
Trata-se do exercício de um dever, e não de um direito.
Implica responsabilidades muito pesadas, já que cada senhor deve dar conta do seu domínio não só à sua linhagem, mas também ao seu suserano.
Étienne de Fougères descreve a vida do senhor de um grande domínio como cheia de preocupações e de fadigas:
Cà et là va, souvent se tourne,
Ne repose ni ne séjourne:
Château abord, château aourne,
Souvent haitié, plus souvent mourne.
Cà et là va, pas ne repose
Que sa marche ne soit déclose.
Anda de cá para lá, muitas vezes muda de direção,
Não repousa nem se detém:
Castelo dentro, castelo fora,
Muitas vezes alegre, mais vezes triste.
Anda de cá para lá, não repousa
Senão quando o seu caminho está aberto.
O seu poder, longe de ser ilimitado como de maneira geral se julgou, é bem menor que o de um chefe de indústria ou de qualquer proprietário nos nossos dias.
Nunca tem a propriedade absoluta dos seus domínios, depende sempre de um suserano, e no fim das contas os suseranos mais poderosos dependem do rei.
Nos nossos dias, de acordo com a concepção romana, o pagamento de uma terra confere pleno direito sobre ela.
Na Idade Média não é assim.
Em caso de má administração, o senhor sofre penalidades que podem ir até à confiscação dos seus bens.
Deste modo, ninguém governa com autoridade total nem escapa ao controle direto daquele de quem depende.
Esta repartição da propriedade e da autoridade é um dos traços mais característicos da sociedade medieval.
As obrigações que ligam o vassalo ao seu senhor implicam reciprocidade:
“Tanto o senhor deve fé e lealdade ao seu homem como o homem ao seu senhor”, diz Beaumanoir.
Esta noção de dever recíproco, de serviço mútuo, encontra-se muitas vezes, tanto nos textos literários como jurídicos.
Étienne de Fougères observa, no Livre des manières:
Graigneur fait a sire à son homme
Que l'homme à son seigneur et dome.
O senhor deve mais reconhecimento ao seu vassalo
Do que ele próprio deve ao senhor.
Apoiando esta constatação, Philippe de Novare nota:
“Aqueles que recebem serviço e nunca o recompensam bebem o suor dos seus servos, que é veneno mortal para o corpo e para a alma”.
Donde também a máxima: A bien servir convient eür avoir (Para bem servir, convém bom ter).
O castelo era a segunda casa dos populares, sua segurança e sede da igrejinha. Castelo de Hirschhorn |
Constituíram-se então regiões modeladas frequentemente por fatores locais diversos
como:
● as características geográficas,
● as necessidades militares,
● os intercâmbios de interesse,
● o afluxo de multidões de peregrinos a santuários com muita atração, até em zonas distantes;
●
o afluxo de estudantes a universidades de grande renome
● e de comerciantes a feiras mais reputadas.
Contribuíram também para caracterizar tais regiões afinidades psicológicas peculiares, decorrentes dos mais variados fatores: a tradição de lutas conduzidas em comum, às vezes por muito tempo, contra um adversário externo; as semelhanças de linguagem, de costumes, de expressões artísticas, etc.
O bem comum regional abarcava assim os diversos bens comuns mais estritamente locais. Era, por isso mesmo, mais alto e mais nobre.
Berna, Suíça |
A esse senhor regional – ele próprio miniatura do rei na região, como o simples senhor-proprietário o era na localidade mais restrita – tocava assim uma situação, com um conjunto de direitos e deveres intrinsecamente mais nobres.
Tomar, Portugal |
No topo da hierarquia social ia-se formando desse modo uma hierarquia nobiliárquica.
João II, rei da França, aduba cavaleiros, iluminura século XIV-XV, BNF |
Foi o que aconteceu em grande escala pelos fins do século XIII.
Numerosos tinham sido os nobres mortos ou arruinados nas grandes expedições, então muitos tornaram-se nobres, fato que deu origem a uma reação da nobreza.
A cavalaria enobrecia aquele a quem ela era conferida.
E com o correr dos tempos surgiram os títulos de nobreza, que na verdade foram distribuídos muito parcimoniosamente.
Podia-se adquirir a nobreza, mas também podia-se perdê-la por decadência, como decorrência de uma condenação infamante.
A vergonha de uma hora apaga bem quarenta anos de honra — dizia-se.
Ela se extinguia ainda pela derrogação, quando um nobre confessava ter exercido um ofício plebeu ou um tráfico qualquer.
Com efeito, era proibido sair do papel que lhe fora conferido. Ele não devia mais procurar se enriquecer, assumindo cargos que lhe poderiam fazer negligenciar aqueles aos quais dedicou sua vida.
Adubação de um cavaleiro, Roman de Troyes |
O tráfico marítimo era permitido aos nobres porque exige, além de capitais, um espírito de aventura, que não seria conveniente coibir.
No século XVIII Colbert alargará os campos de atividade econômica da nobreza, para dar mais impulso ao comércio e à indústria.
Ato de vassalagem de Carlos o Mau, rei de Navarra, a Carlos V da França. Grandes Chroniques de France, BnF. |
Quer dizer, uma vida interior que forjava em inúmeros vassalos a dedicação absoluta pelo seu senhor, razão de ser essencial da instituição.
O caráter religioso da fidelidade jurada contribuiu imensamente para alimentar essa chama.
Belo exemplo dessa fidelidade pode ser ler na exortação dirigida em 843, por uma mulher de alto nascimento e grande cultura, Dhuoda, esposa do Marquês Bernardo de Septimania, a Guilherme, seu filho mais velho.
Dhuoda exorta-o à fidelidade para com o senhor, a quem o seu pai decidiu que viesse a ser recomendado.
Não há dúvida de que esse senhor é o próprio rei Carlos, o Calvo. Mas é um rei cujo poder é contestado.
Todo o texto mostra que a apaixonada dedicação que a mãe exige de seu filho para com Carlos é a dedicação do vassalo para com o seu senhor.
Reproduzimos a continuação algumas passagens desse texto:
"Uma vez que Deus e Bernardo, teu pai, te escolheram para servires a Carlos, a quem tens por senhor, na flor da tua juventude, sustenta o que é da tua raça, ilustre pelos dois ramos.
"Não sirvas de maneira a agradar somente pela vista ao teu senhor, mas conserva-lhe, em tudo, com todo senso, uma fidelidade intacta e pura de corpo e alma.
"É por isso, meu filho, que eu te exorto a que mantenhas fielmente de corpo e alma, durante toda a tua vida, aquilo cujo encargo tens; que nunca possas ser acusado da loucura da infidelidade; que nunca o mal crie raízes no teu coração, a ponto de te tornares infiel ao teu senhor, seja no que for.
Vassalagem, Glória da Idade Média
"Não creio seja de recear uma traição da tua parte ou da parte daqueles que contigo servem.
"Portanto, que tu, meu filho Guilherme, vindo da tua raça, sejas para com teu senhor, como te disse, sincero, vigilante, útil e o mais pronto ao seu serviço.
"Em todas as questões que interessem o poder do Rei, procura dar mostra de senso, em toda a medida das forças que Deus te deu.
"Lê as vidas ou as sentenças dos santos padres de outros tempos, e aí acharás como deves servir o teu senhor e ser-lhe útil em todas as coisas.
"Em tudo que puderes, aplica-te a executar fielmente as ordens do teu senhor. Toma em consideração também e contempla aqueles que deram mostras de maior fidelidade em servi-lo com perseverança, e aprende com eles a maneira de servir".
Homenagem de Eduardo I a Felipe o Belo da França |
Esta noção de dever recíproco, de serviço mútuo, se encontra muitas vezes em textos, tanto literários como jurídicos.
“O senhor deve mais reconhecimento a seu vassalo do que este a seu senhor” — observa Etienne de Fougères no seu “Livre des Manières”.
Philippe de Novare comenta em apoio dessa constatação:
“Aqueles que recebem serviços e jamais o recompensam bebendo de seus servos o suor, que lhes é veneno mortal ao corpo e à alma”.
De onde vem a máxima: “Ao bem servir convém recompensar”.
Exige-se da nobreza mais compostura e retidão moral que dos outros membros da sociedade.
Por uma mesma falta, a pena aplicada a um nobre será muito superior à de um plebeu.
Carlos de Orleans recebe homenagem de um vasalo |
Segundo os Établissements de Saint Louis, a falta pela qual um homem costumeiro — isto é, um plebeu — pagava 50 soldos de multa acarretava para um nobre o confisco de todos os seus bens móveis.
Isto se encontra também nos estatutos de diversas cidades.
Os de Pamier fixam assim a tarifa de multas em caso de roubos: vinte libras para o barão, dez para o cavaleiro, cem soldos para o burguês, vinte soldos para o vilão.
ônus pesados e custosos
A nobreza é uma classe privilegiada. Seus privilégios são, antes de mais nada, honoríficos: direitos de precedência, etc. Alguns decorrem de encargos que a nobreza possui.
Assim, apenas o nobre tem direito à espora, ao cinturão e ao estandarte, o que lembra que originalmente só os nobres tinham possibilidade de equipar um cavalo de guerra.
Ao lado disso ele goza de exceções, que no princípio eram comuns a todos os homens livres.
Tal é a exceção da “taille” (imposto sobre o vinho) e de certos impostos indiretos, cuja importância, nula na Idade Média, não cessou de crescer no século XVI, e sobretudo no século XVIII.
A nobreza possui direitos precisos e substanciais, que são todos aqueles decorrentes do direito de propriedade: direito de arrecadar as rendas, direito de caça e outros.
Os tributos e as rendas pagos pelos camponeses são apenas o aluguel da terra sobre a qual tiveram a permissão de se instalar, ou que seus ancestrais julgaram bom abandonar a um proprietário mais poderoso que eles mesmos.
Corvéia: trabalho obrigatório |
A longínqua origem desse direito de propriedade se apagou pouco a pouco, e na época da Revolução Francesa o camponês se julgou o legítimo proprietário de uma terra da qual era locatário desde muitos séculos.
O mesmo aconteceu com relação a esse famoso direito de caça, que comumente é apontado como sendo um dos abusos mais berrantes de uma época de terror e de tirania.
O que de mais legítimo para um homem que aluga um terreno a um outro, do que reservar para si o direito de aí caçar?
Proprietário e arrendatários, ambos sabem a que ponto devem se ater, no momento em que estipulam obrigações recíprocas, e este é um aspecto essencial.
O senhor não deixa de estar sobre sua terra, quando caça perto da habitação de um camponês.
Do "Livro da Caça", de Gaston Phebus, conde de Foix. |
Mas não se pode conceber que eles o tenham feito sistematicamente, pois boa parte das suas rendas eram resultantes de quotas nas colheitas, e portanto o senhor era diretamente interessado em que as colheitas fossem abundantes.
A questão é idêntica com relação às “banalidades”.
O forno ou a prensa senhorial são, em sua origem, comodidades oferecidas aos camponeses, em troca das quais era normal receber-se uma retribuição.
Tudo como atualmente se faz em certas comunas, ao alugar-se ao camponês uma debulhadeira ou outros instrumentos agrícolas.
Escudo do conde de Shrewsbury |
A coroa começa no visconde. O visconde porta uma coroa com incontáveis pérolas; o conde, uma coroa de pérolas sobre pontas entremeadas com folhas de groselha, mais baixas; o marquês, pérolas e folhas de igual altura; o duque real, um círculo de cruzes e de flores de lis; o príncipe de Gales, uma coroa semelhante à do rei, mas não fechada.
O duque é ‘muito alto e muito poderoso príncipe’; o marquês e o conde, ‘muito nobre e poderoso senhor’; o visconde, ‘nobre e poderoso senhor’; o barão, ‘verdadeiramente senhor’.
O duque é ‘graça’; os outros pares são ‘senhoria’.
Os lordes são invioláveis.
Os pares são câmara e corte, ‘concilium et curia’, legislatura e justiça.
‘Most honourable’ é mais do que ‘right honourable’.
Os lordes pares são qualificados de ‘lordes de direito’; os lordes não pares são ‘lordes de cortesia’; não há, pois, lordes propriamente a não ser os pares.
Escudo de Beaufort |
As comunas, convocadas à barreira dos lordes, apresentam-se humildemente, cabeça descoberta, diante dos pares cobertos.
As comunas enviam aos lordes os ‘bills’ (projetos de lei) por quarenta membros, que apresentam o ‘bill’ com três reverências profundas.
Os lordes enviam às comunas os ‘bills’ por meio de um simples funcionário.
Em caso de conflito, as duas câmaras conferenciam dentro da câmara pintada, os pares sentados e cobertos, as comunas em pé de cabeça descoberta.
Os barões têm o mesmo rango que os bispos.
Para ser barão par, é preciso ser vassalo do rei ‘per baroniam integram’, por baronia inteira.
A sede da baronia, ‘caput baroniae’, é um castelo hereditariamente regido como o é a própria Inglaterra; ou seja, não pode ser transferido às filhas a não ser por falta de descendentes varões, e nesse caso passa para a filha primogênita, ‘caeteris filiabus aliunde satisfactis’ (prover-se-á às outras filhas como se puder.).
Os barões têm a qualidade de ‘lord’, do saxão ‘laford’, do latim culto ‘dominus’ e do baixo latim ‘lordus’.
Os filhos primogênitos e segundos dos viscondes e barões são os primeiros escudeiros do reino.
Os filhos primogênitos dos pares têm a precedência sobre os cavaleiros da Jarreteira; os segundos, não.
O filho primogênito de um visconde vai detrás de todos os barões e na frente de todos os baronetes.
Toda filha de lorde é ‘lady’. As outras senhoritas inglesas são ‘miss’.
Todos os juízes são inferiores aos pares. O oficial de justiça tem um capuz de pele de cordeiro; o juiz tem um capuz de ‘menu vair’ (Pele de coloração cinza claro; algumas vezes branca com partes acinzentadas.), ‘de minuto vario’, numerosas pequenas peles brancas de toda sorte, fora o arminho. O arminho está reservado para os pares e o rei.
Escudo real inglês |
Um lorde chamado junto ao rei tem o direito de caçar um gamo ou dois no parque real.
O lorde mantém no seu castelo corte de barão.
É indigno de um lorde andar pelas ruas com um manto seguido de dois lacaios. Ele somente pode ser visto com um grande séqüito de gentilhomens domésticos.
Os pares dirigem-se ao parlamento em carruagens; os comuns, não. Alguns pares vão a Westminster em liteiras. A forma dessas liteiras e carruagens com brasões gravados e coroadas somente é permitida aos lordes e faz parte de sua dignidade.
Um lorde somente pode ser multado por lordes.
Um lorde pode ter em casa seis estrangeiros. Os outros ingleses só podem ter quatro.
Um lorde pode ter oito tonéis de vinho sem pagar impostos.
O lorde é o único isento de se apresentar ante o delegado de sua circunscrição.
O lorde não pode ser convocado para a milícia.
Escudo da familia De Mowbray, barões de Melton |
O lorde somente depende dos lordes. Nos processos de interesse civil, ele pode pedir adiamento da sua causa, se não houver pelo menos um cavaleiro entre os juízes.
O lorde nomeia seus capelães.
Um barão nomeia três capelães; um visconde, quatro; um conde e um marquês, cinco; um duque, seis.
Um duque faz-se acompanhar por um pálio onde quer que o rei não esteja presente; um visconde tem um pálio na sua casa.
Um plebeu que bate num lorde terá o punho cortado.
O lorde é quase rei. O rei é quase divino.
A terra é uma ‘lordship’.
Os ingleses chamam a Deus de ‘milord’.
Os costumes geralmente praticados viravam leis sagradas |
Consuetudo é uma palavra latina que significa costume. A lei consuetudinária não era feita por legisladores encerrados num Parlamento.
Ela era a codificação dos costumes que todas as categorias sociais tinham elaborado.
Essas leis eram guardadas na mente dos populares. Os anciões eram seus guardiões mais zelosos.
Quando a necessidade impunha elas eram transcritas em pergaminhos. Estes eram guardados como tesouros.
As leis consuetudinárias eram verdadeiros compêndios de sabedoria popular.
Nem o rei, nem o nobre, nem os eclesiásticos podiam ir contra o costume, desde que não violasse a Lei de Deus e os demais costumes já existentes.
Na vida quotidiana de um povo que aspirava à perfeição o bom costume aceito pelo conjunto virava lei. Violar essa lei, ainda no período que não estava transcrita, era uma coisa que soava a coisa de insensato.
Não havia oposição entre os costumes de todos e a lei |
Esta variava de feudo para feudo, como por exemplo, o modo de passar recibo, de legar herança, como também as leis de compra e venda de mercadorias, etc.; porque tudo nascia dos costumes do povo.
As leis sobre comércio, indústria e trabalho nasciam das relações de trabalho.
Dessa maneira, a lei estava adaptada à realidade e todos se sentiam a vontade praticando-a até de modo exemplar.
O povo então amava a lei e até se regozijava com ela ponderando sua cordura, moderação e seus infinitos jeitinhos.
Os Reis apenas ordenavam que fossem escritas, reviam e corrigiam o que fosse injusto ou contrário à doutrina e à lei da Igreja.
Era uma participação efetiva no direito de legislar, de que gozava o povo na Idade Média.
A lei era amada e respeitada porque era amável e respeitosa |
O menosprezo aumentou com os déspotas esclarecidos inspirados pelo Iluminismo revolucionário após a Idade Média.
A Revolução Francesa consagrou o sistema de legisladores e teorizadores democráticos que legislam longe da realidade.
Então a lei escrita foi se descolando da vida concreta.
Sob certos aspectos, virou para muitos uma espécie de flagelo do qual até os cidadãos honestos não querem apanhar e tentam fugir.
Tal é o caso da escalada devoradora dos impostos e as impenetráveis Babéis da burocracia moderna.
Conselho do rei e bispos |
“No contexto da Europa medieval, essa proibição foi de modo efetivo, uma lei de abolição universal.
“Com os escravos sendo plenamente reconhecidos como humanos e cristãos, os sacerdotes começaram a urgir os proprietários a liberarem os seus escravos como sendo um "ato infinitamente recomendável" que ajudaria a garantir a própria salvação.
“Muitas emancipações foram registradas em documentos que ainda perduram. A doutrina de que os escravos eram humanos e não gado teve outra consequência importante: o casamento entre livres e escravos. (...)
“há sólidas provas de uniões mistas já no século VII, envolvendo, pelo geral, homens livres e mulheres escravas. A mais famosa dessas uniões teve lugar em 649, quando Clovis II, rei dos Francos, desposou sua escrava britânica Bathilda.
Santa Bathilda, Luxembourg,Paris |
“Bathilda usou de sua posição para montar uma campanha para parar o comércio de escravos e resgatar os que estavam na escravidão. Após sua morte, a Igreja a reconheceu como santa.
“No fim do século VIII, Carlos Magno se opôs à escravidão, enquanto o Papa e muitas outras poderosas e eficazes vozes clericais fizeram eco a Santa Bathilda.
“No crepúsculo do século IX, o bispo Agobard de Lyon trovejava: "Todos os homens são irmãos, todos invocam o mesmo pai: Deus; o escravo e o dono, o pobre e o rico, o ignorante e o instruído, o fraco e o forte (...)
“não há escravo ou livre, mas em todas as coisas e sempre há somente Cristo".
“No mesmo tempo, o Abade Smaragde de Saint-Mihiel escreveu numa obra dedicada a Carlos Magno: "Bondadosíssimo rei, proibi que possa haver qualquer escravo em vosso reino". Logo, ninguém "duvidou que a escravidão em si mesma era contra a lei divina".
“Mais ainda, durante o século XI São Wulfstan e Santo Anselmo fizeram campanha para remover os últimos vestígios de escravidão na Cristandade, e logo pôde se dizer "que nenhum homem, nenhum verdadeiro cristão de nenhuma classe poderia ser de agora em diante ser tido legitimamente como propriedade de um outro".”
Parada histórica na Bélgica. A continuidade familiar razão de ser da transmissão natural dos bens sem intervenção da lei ou outro fator. |
“Não existe herdeiro por testamento”, diz-se em direito consuetudinário.
Na transmissão do patrimônio de família, a vontade do testamenteiro não intervém.
Pela morte de um pai de família, o seu sucessor natural entra de pleno direito em posse do patrimônio.
“O morto agarra o vivo”, dizia-se ainda nessa linguagem medieval, que tinha o segredo das expressões surpreendentes.
É a morte do ascendente que confere ao sucessor o título de posse, e o coloca de fato na posse da terra.
O homem de lei não tem de intervir nisso, como nos nossos dias.
Embora os costumes variem de acordo com as províncias e conforme o lugar, fazendo do mais velho ou do mais novo o herdeiro natural, e embora varie a maneira como sobrinhos e sobrinhas possam pretender à sucessão na falta de herdeiros diretos, pelo menos uma regra é constante: só se recebe uma herança em virtude dos laços naturais que unem uma pessoa a um defunto.
O aniversário do avô. Ferdinand Georg Waldmüller (1793 - 1865). Coleção particular. |
Quando o herdeiro natural é notoriamente indigno do seu cargo, ou se é pobre de espírito, por exemplo, são admitidas alterações, mas em geral a vontade humana não intervém contra a ordem natural das coisas.
“Instituição de herdeiro não tem lugar”, tal é o adágio dos juristas de direito consuetudinário. É neste sentido que ainda hoje se diz, falando das sucessões reais: “O rei morreu, viva o rei”.
Não há interrupção nem vazio possível, uma vez que só a hereditariedade designa o sucessor. Por isso a gestão dos bens de família se acha continuamente assegurada.
A família von Kurneberg. Codex Manesse, Große Heidelberger Liederhandschrift, Zürich, |
Por isso havia sempre um único herdeiro, pelo menos para os feudos nobres.
Temia-se a fragmentação que empobrece a terra, dividindo-a ao infinito.
O parcelamento foi sempre fonte de discussões e de processos, além de prejudicar o cultivador e dificultar o progresso material, pois é necessário um empreendimento de certa importância para poder aproveitar os melhoramentos que a ciência ou o trabalho põem ao alcance do camponês, ou para poder suportar eventuais fracassos parciais, e em qualquer caso fornecer recursos variados.
O grande domínio, tal como existe no regime feudal, permite uma sábia exploração da terra.
Pode-se deixar periodicamente uma parte em repouso, dando-lhe tempo para se renovar, e também variar as culturas, mantendo de cada uma delas uma harmoniosa proporção.
Très Riches Heures du Duc de Berry, mês de agosto |
Na torre de menagem, a mais alta delas e de onde mais longe se vê o inimigo que se acerca, está a flâmula com o brasão de armas da família.
Um valo de água circunda o castelo para maior garantia. Há portas levadiças suspensas por correntes e correias muito fortes para o inimigo não entrar.
Logo ao pé do castelo começa a agricultura. Os camponeses estão plantando trigo, a vinha, e muitas outras coisas.
De repente se ouve um ladrar de cachorro e um toque de clarim. Os camponeses se olham entre si e sabem que um verdadeiro espetáculo vai aparecer.
Era um dos espetáculos, mas também uma das necessidades, da sociedade católica daquele tempo.
Baixa lentamente a ponte, e sai de dentro do castelo uma cavalgada.
São vinte cavalos, às vezes mais, lindamente ajaezados, cobertos com panos muito bordados, ostentando o brasão da família.
Tschachtlan Chronik. Berna, Suíça. |
No melhor dos cavalos vai o castelão.
Ao lado dele cavalga sentada à la amazona, sua mulher, e não sentada à la homem como hoje se faz.
É a dama do castelo. Atrás deles vai a alegre cavalgada dos jovens.
Os instrumentos tocam músicas de caça bonitas e as patas dos cavalos fazem o barulho característico sobre o madeirame da torre levadiça.
É a família que está passando para caçada.
A caçada era uma diversão de um gênero especial. Porque só se caçavam animais daninhos para a agricultura ou perigosos para o homem.
Ou, os animais que alimentam o homem, e prolongam portanto a vida humana.
Tudo gira em torno do homem, seja ele o nobre ou o plebeu que trabalha o campo. Todos se beneficiam.
Livro da Caça, matilha de javalis perigosos. Gaston Phebus |
O javali perigoso para a castelã quando ela vai à cidadezinha para dar esmolas, para visitar, para conversar.
Como também é perigoso para a camponesa quando ela vai à paróquia para rezar ou em alguma pequena loja fazer uma compra.
A caçada ao javali visa o bem comum.
Livro da Caça, Caçada do cervo, Gaston Phebus |
Há a caça muito mais dramática ao cervo.
Animal tão bonito, tão delicado, com um olhar tão doce, tão inofensivo, tão rápido, mas que não sendo perigoso para o homem, é lhe delicioso.
E assim como um homem tem o direito de colher uma flor quando ela está em sua plena expansão para levá-la à capela de sua casa ou a um vaso de sua residência, assim ele também tem o direito de matar um cervo para comê-lo.
Feita a caçada, em geral o que se matou é muito mais abundante do que as necessidades do castelo.
Então se organiza uma distribuição gratuita a todo vilarejo daquilo que foi caçado.
Livro da Caça, a refeição geral final, Gaston Phebus |
Os medievais não tinham televisão, mas viver com os olhos postos na feeria da vida do castelo, contarem uns para os outros as últimas novidades do castelo, da filha do castelão que está noiva do filho do castelão tal outro, e que o casamento quando será?, etc.
Tudo isto constituía o conjunto de novidades de que vivia a pequena população do castelo.
Coroação do rei Filipe Augusto da França. Grandes Chroniques de France. Enluminures par Jean Fouquet. Tours, c.1455-1460 |
O resultado é que do governo descia uma força vigorosa mas doce e cheia de unção, sobrenatural e muito proporcionada ao homem.
Esse auxílio para governar com justiça e suavidade, apalpava-se no dia a dia, sem que o chefe de Estado tivesse que ser santo de altar.
Muitos episódios medievais de governo encantam pela ingenuidade, mas também manifestam uma sabedoria que lembra fatos do Antigo Testamento.
Eis um exemplo acontecido sob o reinado de Filipe Augusto:
Um bailio do Rei cobiçava a terra deixada por um cavaleiro morto.
Filipe Augusto, rei da França, na batalha de Bouvines. |
Naturalmente, o defunto nem se mexeu. Quem cala, consente. Em seguida, algumas moedas foram postas em suas mãos, e o defunto recolocado em seu caixão.
Com grande espanto, a viúva viu seus domínios usurpados e se dirigiu ao rei. Convocado, o bailio compareceu ladeado por suas duas testemunhas, que atestavam a realidade da venda.
Filipe Augusto percebeu que era trapaça. Levou para um canto um dos carregadores e lhe disse em voz baixa:
— Recita-me no ouvido o Padre-nosso.
Concluída a oração, o rei exclamou em alta voz:
— Muito bem!
O segundo carregador foi também convocado. Ele achou que seu companheiro denunciara a tramóia, e apressou-se a dizer o que sabia.
O bailio foi condenado.
Catedral de York: imponderáveis que as palavras não conseguem definir |
Tudo quanto é instituição, situação, escolas de arte, etc., da Idade Média está envolto numa atmosfera de imponderáveis extremamente difícil de tornar explícita.
Nas sociedades da Antiguidade, como nas sociedades “post-medievais”, todas as relações têm um ar mecânico.
E a única sociedade verdadeiramente orgânica – quer dizer que tem uma vida própria que resulta da boa harmonia de seus órgãos – que houve na História foi a sociedade medieval.
É muito mais fácil entender um mecanismo como o motor de um carro, do que entender a complexidade de um organismo vivo, com seu DNA, por exemplo.
Porque o organismo vivo tem essa coisa imponderável, mas absolutamente essencial, que é a vida.
De onde acontece que num organismo vivo há manifestações da vida que escapam a toda definição.
Por exemplo, na sociedade medieval não havia uma classe privilegiada como na Antiguidade. Nem mesmo duas.
Não é de um conto de fadas: é um moinho que pertencia a um popular medieval |
Pois bem, na Idade Média havia privilégios para o clero, para a nobreza e para o povo. Só levar em linha de conta os privilégios da nobreza e do clero equivale a ter uma noção absolutamente errada da ordem social medieval.
A demagogia revolucionária gosta apresentar o clero muito bem instalado na vida social comendo até arrebentar; o nobre logo abaixo do clero também se locupletando até mais não poder; e, embaixo a plebe que não possui nada, que não tem dignidade nenhuma e trabalha para os superiores até definhar.
Em muitos posts temos apresentado documentação mostrando quanto essa concepção é artificial e falsa.
O Papa Pio XII, numa de suas alocuções à nobreza romana, disse que a aristocracia é tão conforme à natureza das coisas que ela deve impregnar a sociedade toda com um ar aristocrático.
Os valores aristocráticos eram participados pelo povo. Figuras de cera representando a nobreza, no castelo de Vaux-le-Vicomte, França. |
Um exemplo: a altivez do povo espanhol inclusive em suas categorias mais populares é um resto da Idade Média.
Essa altivez é fruto de uma nota do verdadeiro aristocratismo que beneficia ao homem do povo e é inteiramente diferente da arrogância do líder sindicalista moderno.
A altivez do povo miúdo espanhol é uma manifestação admirável da dignidade de um filho de Deus. Esse foi batizado, foi remido por Jesus Cristo, e tem um destino eterno na outra vida.
Mas aqui na Terra está obedecendo a Deus e à ordem social com muita disciplina e distinção.
Em decorrência da substancial igualdade entre todas as criaturas humanas, e da dignidade especial de filho de Deus, ele tem um santo orgulho de ser e de viver sua condição de plebeu que se encaixa muito bem na organização social, que por sua vez lhe reconhece legítimos e originais privilégios.
Pode ser que esse homem tenha na sociedade funções bem modestas, mas ele sabe que essas funções são acidentais. O grande fato que domina sua vida é que ele é um filho de Deus e que tem um grande destino, pois foi criado para ser um príncipe no Céu.
Ele será lixeiro, engraxate ou qualquer outra coisa na Espanha medieval, mas ele sabe que houve, antes da revolta dos Anjos, um trono onde se sentava um anjo.
A altivez do povo resplandecia até no vestuário feminino. "Vestido ansoetano", Espanha. |
Resultado: na Terra ele é obediente, humilde, e ele vive num estado de espírito inteiramente diferente do estado de espírito do homem do povo corrompido pelo falso espírito democrático de nossos dias, arrogante e revoltado.
Ele não é a pobre besta de carga da civilização contemporânea. Ele não é um desses homens vazios, sem alma, que se veem às centenas apertados em ônibus, metrôs e trens, indo e voltando para as fábricas ou empregos diversos.
Se o medieval fosse porteiro serviria com um garbo e um cavalheirismo de plebeu, que não era o cavalheirismo do nobre.
Esse cavalheirismo penetrava todas as classes sociais da Espanha medieval, comunicado pelos fidalgos que eram verdadeiramente fidalgos, e todo o povo espanhol borbulhava de altivez e distinção.
E, hélas, custa entende-lo na crise hodierna da Igreja, até os eclesiásticos – que podiam provir do povo ou da nobreza – subiam os degraus dos altares irradiando de maneira solar esse espírito de fidalguia e cavalheirismo.
Como os governantes – senhor feudal, bispo, autoridades municipais – comunicavam ao povo as informações e decisões de interesse geral?
Hoje confia-se tudo aos meios de comunicação social que, muitas vezes deixam o que desejar.
Na Idade Média – e até em épocas posteriores, inclusive no Brasil imperial – exerciam essa função proclamadores oficiais.
Seu ofício era dar a conhecer, lendo ou recitando, as normas ou informações a viva voz, a pé ou a cavalo, pelas ruas e praças, por vezes acompanhados de trompetes, ou outros instrumentos sonoros.
E, para caracterizar bem a dignidade e importância de sua missão, iam revestidos de símbolos que indicavam a autoridade que os tinha enviado.
O espírito humano sente a necessidade de que as coisas importantes sejam rodeadas de cerimônia e protocolo. De ali os métodos dos proclamadores, suas roupagens, símbolos e aparato proporcionado.
Recentemente, o nascimento do príncipe George em Londres teve um pitoresco e muito difundido momento que nos remonta a essas épocas.
Acontece que na Grã-Bretanha e em alguns países da área cultural anglo-saxã ainda se conserva a tradição dos proclamadores oficiais, por exemplo na Austrália.
Foi assim que, com um tricórnio de plumas, grande uniforme de veludo vermelho, brasões e franjas douradas, um sino numa mão, um manuscrito desenrolado na outra e voz sonora, Tony Appleton, proclamador oficial da cidade de Romford (50 km de Londres) anunciou o gaudioso nascimento do mais novo principezinho inglês.
O curioso é que segundo o jornal francês “Le Figaro”, embora Tony Appleton seja de fato um proclamador oficial, no entanto não tinha licença para exercer essa função em Londres, tendo agido por iniciativa própria.
Este pormenor importante só veio a ser conhecido depois. Na hora todo o mundo achou normal que um acontecimento como o advento do bebê real fosse anunciado com pompa condigna.
E os que o ouviram se sentiram dignificados pois a autoridade enviava um representante pomposamente ataviado para informa-los.
Numa entrevista à agência Associated Press, o arauto oficial explicou: “Eu não fui convidado, eu me convidei para a festa. Eu saí do táxi, fiquei ao pé da escada do hospital e desempenhei meu papel.”
Como incontáveis ingleses, Tony Appleton gosta da família real. Ele achou inadequado que a cidade de Londres não enviasse um arauto – como é seu caso em Romford e o de muitos outros em diferentes cidades inglesas – para desempenhar esse papel de pomposo anunciador da feliz boa nova.
Mas jornalistas e redações de jornal, como também milhões de leitores de jornais, público de TV e Internet, acharam inteiramente coerente que o nascimento de um príncipe fosse anunciado por um cerimoniário que evoca os tempos medievais.
Este quiproquo pôs em evidencia da necessidade do protocolo e da pompa, estão impregnados na alma humana, sobre tudo quando tem uma conotação medieval
O fundo da natureza dos homens pede cerimônias e cerimoniários como o “arauto oficial” Tony Appleton – não de Londres ou da família real, mas de Romford.
A “façanha” individualista de Tony Appleton ficou rodeada de simpatia. Ele conta que muitas futuras mães já ficaram de contratá-lo para anunciar o nascimento de seus bebês. Como na Idade Média...
Francisco I, Jean Clouet, Museu do Louvre |
Os personagens renascentistas apresentam-se habitualmente alegres, satisfeitos, despreocupados e olímpicos [à maneira dos deuses pagãos do Olimpo — o céu da mitologia grega].
A representação das mais características desse tipo de homem é o rei Francisco I, da França (1494-1547): alto, bonito, bem constituído, símbolo humano do otimismo, continuamente bem disposto em relação à vida terrena.
Ele se distingue profundamente do rei São Luís IX (1215–1270), também soberano francês: igualmente alto e belo, mas muito sério, casto, ameno no trato, sem nenhum desses otimismos superficiais, próprios dos renascentistas.
Sua atitude manifestava que ele tinha sempre presente o fim último do homem — Deus e a bem-aventurança celeste.
Da atitude otimista do renascentista decorria um gosto permanente do prazer e a necessidade de estar continuamente se divertindo.
São Luiz rei, cavaleiro e santo |
Na Idade Média também existia corte. Mas entendia-se por corte simplesmente o conjunto de dignitários que serviam o soberano, auxiliando-o no desempenho de suas altas funções.
Tudo se passava num ambiente sério e digno voltado para a função superior da realeza, e que descartava a noção de festa contínua.
Jean II, cavaleiro fachada do Hôtel de Ville de Bruxelas |
Na imagem vemos um deles com o corpo todo revestido de metal, sacando a espada.
É um homem que já passa dos cinqüenta anos e ainda está na guerra.
Os nobres encaneciam na guerra. Com sessenta, setenta anos ainda combatiam e morriam na guerra.
Era o preço que o nobre pagava por sua nobreza. Assim era de dura a vida do nobre, vida idealista!
Na imagem ao lado, vemos um cavaleiro entrando em plena epopéia!
Ele vai para um torneio, poderia ir para uma batalha.
Seu cavalo está ricamente revestido de um tecido precioso, ele está com um escudo para se defender.
Com a lança ele vai atacar o adversário, mas os senhores podem ver nele quase exatamente a imagem do guerreiro que parte para a guerra e que não sabe se vai voltar vivo ou morto.
Mais provavelmente morto, se ele for verdadeiro herói, morto de uma morte horrível! A arma do adversário atravessa a sua armadura, corta-o, retalha-o.
Ele morre no campo de batalha, muitas vezes depois de uma longa agonia, numa época em que os hospitais de sangue ainda não existiam e a medicina estava dando os seus primeiros vagidos.
Aí se pode ter a ideia de por que a plebe admirava tanto a dedicação da nobreza à causa da Igreja, à causa da pátria.
A escultura é de um tipo conhecido em francês como “gisant”. Ela representa um nobre que morreu e ali jaz na sepultura.
A escultura o representa tal qual ele era em vida, com todo o seu armamento.
Ao lado dele, os senhores não chegam a ver, dorme a sua esposa.
O dever cumprido, o sangue derramado por uma causa nobre, ele espera na paz dos mortos o dia da ressurreição.
As realizações medievais dão a sensação de que, de algum modo, a ponta de nossos dedos tocou na base do trono de Deus.
Elas produzem na nossa alma a sensação singular de estar sendo assumido: aquilo nos toma, nos penetra, nos inunda, nos eleva.
Temos a sensação de que um elevador nos eleva até Deus, e que nós, de algum modo, estamos sendo assumidos, levados por aquilo.
E sendo assim assumidos, entramos numa vida que tem algo do Céu.
Isto é o que produzia a Idade Média.
Foi um período histórico em que o papel do povo – considerado não no sentido eleitoral democrático da palavra, mas no sentido da população constituída por homens em que cada um era cada um – teve mais valor na História.
Tudo na Idade Média foi sendo construído porque um movimento de graças pujante, profundo, invadiu a massa geral da nação.
Isso fez com que saíssem do chão, como cogumelos, santos de toda ordem, mas também pequenos homens locais importantes de toda ordem.
Cada homem no ambiente em que vivia era levado por um movimento de ascensão indeterminado que o fazia desejar subconscientemente o esplendor das catedrais góticas, as delicadezas dos vitrais da Sainte-Chapelle, a beleza do palácio dos Doges, etc.
Era um só impulso confuso, mas geral, que conduzia para a santidade, para o Céu, para o maravilhoso, para a rejeição categórica do pecado que em todas as épocas se encontrava na Terra.
Por causa disso, um élan de alma que tendia para toda forma de esplendor e de organização, mas também para toda forma de mediania, de decência, de compostura, para tudo aquilo que, nas encostas da montanha social, participa, a seu modo, do esplendor geral.
O mesmo movimento levou à construção de castelos no alto da montanha.
E, às vezes, eram um covil de ladrões construídos com o beneplácito de quem mandava, por um arquiteto qualquer desconhecido, mas que acabava fazendo obra de arte.
O bandido dono do castelo queria essa obra de arte.
Ao mesmo tempo a aldeiazinha de marzipã ia ficando encantadora, engraçadinha. Até seu chiqueirinho era engraçadinho.
Nasceu então a fábula do porquinho, das mil coisas prosaicas da vida de todos os dias que assim foram se enobrecendo e ficando bonitas.
O tamancão, os gansos que passam pela rua, a fontezinha, tudo ia ficando engraçadinho.
Os aquedutos que levavam água para as cidades foram sendo reconstruídos.
Os romanos tinham feito, os bárbaros tinham destruído, e as cidades medievais – todas, todas, mas todas – foram reconstruindo.
Não havia cidadezinha que não tivesse sua fonte.
As fontes, à sua maneira, representavam a fonte de água viva que é a graça divina.
Pio XII, na sedia gestatoria, basílica do Vaticano
“A Igreja é um fato histórico que, como uma possante cadeia de montanhas, percorre a história dos dois últimos milênios”.
Esta formosa comparação, contida no discurso do Santo Padre Pio XII aos membros do X Congresso Internacional de Ciências Históricas (7 de setembro de 1955), nos vem naturalmente ao espírito.
Referindo-se às condições hodiernas do Ocidente, Pio XII, em seu discurso aos historiadores, notou que sua situação é de funda crise religiosa:
“O que se chama Ocidente ou mundo ocidental sofreu profundas modificações desde a Idade Media: a cisão religiosa do século XVI, o racionalismo e o liberalismo conduziram o Estado do século XIX à sua política de força e à sua civilização secularizada. Tornava-se pois inevitável que as relações da Igreja Católica com o Ocidente sofressem um deslocamento”.
Estas palavras lembram sensivelmente as condições históricas de Leão XIII, esparsas em seus diversos atos de magistério, e enunciadas num corpo harmônico na Encíclica “Parvenu à la vingt-cinquième année”: a Idade Media representara na história do Ocidente cristão o ponto mais alto, em matéria de influência da Igreja sobre a vida pública, as leis e a cultura.
Veio depois o protestantismo, explosão de liberalismo religioso, que conduziu à Revolução Francesa, explosão de liberalismo político, a qual teve por fruto a sociedade secularizada do século passado.
Acerca do luminoso ponto de partida desse triste processo, a Idade Media, Leão XIII, em sua Encíclica “Immortale Dei”, tem estas palavras cheias de admiração e ternura:
“Tempo houve, em que a filosofia do Evangelho governava os Estados.
“Naquela época, a influência da sabedoria cristã e sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e relações da sociedade civil.
“Então, a Religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, florescia por toda a parte, graças ao favor dos príncipes e à proteção legitima dos magistrados.
“O Sacerdócio e o Império estavam então ligados entre si por uma feliz concórdia e uma amistosa permuta de bons ofícios.
“Assim organizada, a sociedade civil produziu frutos superiores a qualquer expectativa”.
Mas, lendo-se com atenção os documentos do ilustre Papa, vê-se que ele considera que nem todos os fatos ocorridos da Idade Media para cá, constituíram decadência.
Profundamente golpeado, o Ocidente cristão continuou entretanto a progredir.
Mais ou menos como um adolescente contaminado de tuberculose — a comparação é nossa — em que ao mesmo tempo pode crescer o organismo e progredir a moléstia.
Túmulo de Bonifácio VIII, Florença |
“Quando os Apóstolos disseram: “Temos aqui dois gládios" – aqui, isto é, na Igreja – o Senhor não respondeu: “É demasiado”. Pelo contrário, respondeu: “isto basta”.
“Por certo, aquele que nega que o gládio temporal esteja no poder de Pedro, desconhece a palavra do Senhor que disse: “Recoloca tua espada na bainha”.
“Portanto, um e outro gládio estão no poder da igreja, o espiritual e o temporal; mas este deve ser tirado para a Igreja, aquele pela Igreja; um pela mão do sacerdote, o outro pela mão dos reis e dos soldados, mas com o consentimento e o beneplácito do sacerdote.
“Contudo, é preciso que o gládio esteja subordinado ao gládio; a autoridade temporal ao poder espiritual, porquanto diz o Apóstolo: 'Não há poder que não venha de Deus, mas os que existem foram instituídos por Deus';
“ora, esta ordem não existiria se um dos dois gládios não estivesse subordinado ao outro, e, enquanto seu inferior, ligado por ele à categoria suprema,
“pois segundo São Dionísio: 'A lei da divindade é que as coisas inferiores devem estar ligadas às superiores pelos intermediários'.
“Devemos reconhecer que o poder espiritual supera em dignidade e em nobreza todo poder temporal, tanto mais evidentemente quanto as coisas espirituais superam de muito as coisas temporais.
“Cabe ao poder espiritual instituir o temporal e julgá-lo caso não seja bom.
“Verifica-se, assim, atinente à Igreja e ao poder eclesiástico, o oráculo de Jeremias: 'Eu vos constitui sobre as nações e sobre os reinos, etc.'.
“Se, portanto, o poder temporal se desvia, ele será julgado pelo poder espiritual; se o poder espiritual desvia-se, o inferior será julgada pelo superior, e se é o poder superior, só por Deus.
“Ele não poderá ser julgado pelo homem, como atesta o Apóstolo: 'O homem espiritual julga todas as coisas e não é julgado por ninguém'”.
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