domingo, 8 de setembro de 2024

Como o povo medieval fazia leis

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs






O povo medieval legislava elaborando as leis consuetudinárias.

Consuetudo é uma palavra latina que significa costume. A lei consuetudinária não era feita por legisladores encerrados num Parlamento.

A lei consuetudinária registrava no papel os costumes criados por todas as categorias sociais na vida de todos os dias.

Essas leis eram guardadas na mente dos populares. Os anciões eram seus guardiões mais zelosos.

Quando a necessidade impunha, essas leis orais eram escritas em pergaminhos. Estes eram guardados como tesouros.

As leis consuetudinárias eram verdadeiros compêndios de sabedoria popular.

Nem o rei, nem o nobre, nem os eclesiásticos podiam ir contra o costume, desde que não violasse a Lei de Deus e os demais costumes já existentes. O resultado era que o povo medieval tinha um grau de autonomia insuspeitado.

Pouco antes da Revolução Francesa, quer dizer, já bem depois da Idade Média, ainda a metade do país era regido por códigos de leis consuetudinárias orais, não escritas.

A outra metade, por códigos escritos de leis também consuetudinárias mescladas com leis nacionais editadas pelos reis absolutos pós-medievais. Acresce que em certas regiões havia superposição de códigos escritos e leis orais.

Pode parecer confusão, mas na prática era uma fonte de liberdade e aconchego legal insuspeitável que contribuiu muito à "doucer de vivre" francesa: a "doçura de viver", a vida fácil e larga sem muitos constrangimentos legais ou burocráticos.

Entre as primeiras coisas que fez a Revolução Francesa foi abolir esses sistemas consuetudinários.

Tudo ficou sendo decidido por legisladores "iluminados" na capital, desconectados da vida real local.

Foi Napoleão que impôs seu Côdigo de leis a todo o país: a vontade omnímoda central do imperador-soberano passou por cima de tudo.

Muitos países "democráticos" passaram a imitar o Código de Napoleão. Brasil entre eles.

Mas, voltando às leis consuteudinárias medievais, o que acontecia era que na vida quotidiana de povos que aspiravam à perfeição, o bom costume aceito pelo conjunto virava lei.

Violar essa lei, ainda no periodo que não estava transcrita, soava como gesto de insensato.

Grande parte das leis existentes na Idade Média era fruto de costumes repetidos que se transformaram em norma.

Esta variava de feudo para feudo, como por exemplo, o modo de passar recibo, de legar herança, como também as leis de compra e venda de mercadorias, etc.; porque tudo nascia dos costumes do povo.

As leis sobre comércio, indústria e trabalho nasciam das relações de trabalho.

Dessa maneira, a lei estava adatada à realidade e todos se sentiam a vontade praticando-a até de modo exemplar.

O povo então amava a lei e até se regozijava com ela ponderando sua cordura, moderação e seus infinitos jeitinhos.

Os Reis apenas ordenavam que fossem escritas, reviam e corrigiam o que fosse injusto ou contrário à doutrina e à lei da Igreja.

Era uma participação efetiva no direito de legislar, de que gozava o povo na Idade Média.

A lei consuetudinária começou a ser desrespeitada pelo absolutismo real que apareceu durante a decadência da era medieval.

O menosprezo aumentou com os déspotas esclarecidos inspirados pelo Iluminismo revolucionário após a Idade Média.

A Revolução Francesa consagrou o sistema de legisladores e teorizadores democráticos que legislam longe da realidade. Então a lei escrita foi se descolando da vida concreta.

Sob certos aspectos, virou para muitos uma espécie de flagelo do qual até os cidadãos honestos não querem apanhar e tentam fugir.

Tal é o caso da escalada devoradora dos impostos e as impenetráveis Babéis da burocracia moderna.





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domingo, 1 de setembro de 2024

As classes modestas modelavam as classes mais altas

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs






Numa sociedade harmônica com desigualdades proporcionadas, as classes mais modestas têm uma forma de modelar as classes mais altas

Salvo em nações muito pequenas que têm uma classe só, como Andorra, por exemplo, que é uma república de vaqueiros, em todas as sociedades deve haver classes.

Mas, numa sociedade bem ordenada como a medieval, a classe mais alta é o produto característico de toda sociedade.

A sociedade se mirava na sua classe mais alta como o artista se mira na sua obra de arte.

Isto é assim porque as classes mais modestas têm uma forma de modelar as classes mais altas que é verdadeiramente interessante.

Por exemplo, um concerto. Na sala está o músico dando o concerto. A gente dirá quanto esse músico modela o espírito artístico do povo.

É verdade, mas uma análise mais profunda mostra que existe uma reciprocidade: quanto o público modela o artista.

Porque instintivamente o artista procura aplauso, e se o povo aplaude nos lugares certos, o artista insiste nesses lugares.

Isso é sobretudo verdadeiro no teatro. No teatro se o artista é aplaudido bem em certas horas por um público inteligente, toda a nível cultural ligado ao teatro nesse povo sobe. Se ele é aplaudido nos lugares errados, aquilo tudo baixa de nível.

Uma vez na Europa eu fui a uma peça de Verdi chamada “Aida”. Eu não gosto da “Aida” e não gosto de Verdi, mas de qualquer maneira fui ver.

Eu olhava em torno de mim, todo o mundo com o sério do sono, e não com o sério de quem presta atenção na música, etc.

Em certo momento entra um carro egípcio puxado por bois.

Nesse povo há muitos criadores de gado, e na hora que entraram os bois estourou o entusiasmo da platéia: “Ah, muito bem!” Batiam com os pés no chão, “viva!”

Eu pensei: esse público deforma o artista porque isso não é a hora de fazer esse bulício todo. Na hora em que entra o boi, entra o grande aplauso, o povo deforma.

Se, pelo contrário, o público tivesse senso da ópera e do teatro e aplaudisse no momento certo, aí ele modelava bem os artistas.

Num outro país eu vi “Edipo rei”. Num certo momento, chegava a hora em que o Edipo ia cegar-se a si próprio para aplacar a cólera dos deuses.

E então, ele fazia um monólogo em cena, como quem está pensando alto.

É uma cena trágica, até que diz “tout est clair!” Mas o ator dizia o “tout est clair” com o jeito de quem encontrou a verdade, mas a verdade é acabrunhadora e vai exigir dele o sacrifício inominável de cegar-se a si próprio, de desistir dos bens que tinha, expatriar-se e caminhar como um cego pelas estradas da Grécia pedindo esmola.

Então ele para e diz: “Tout est clair! oh! tout est clair!”, e faz um gesto trágico na hora de penetrar na obscuridade definitiva...

Os empresários do teatro tiveram o bom-senso de não exigir que ele arranque os próprios olhos no palco com o pano alto.

Essa cena pungente arrancou do público desse teatro mais aplausos do que os bois provocaram nesse outro país.

Assim o público modela os artistas.

E esse fenômeno natural dá-se também nas sociedades com classes harmônicas e proporcionadas: as classes modestas modelam as classes altas que as dirigem.

Assim também na São Paulo antiga. Quando havia grandes festas particulares, os automóveis iam deixando os convidados que iam, todos em traje de gala ‒ hoje não há mais gala nem grandes festas, mas ante era assim ‒.

O povinho ficava de pé nas calçadas olhando as pessoas.

E eu tive a impressão de que o povinho formava uma opinião a respeito das pessoas que passavam e que comentava.

Quem estava dentro dos automóveis fingia que não percebia, mas percebia.

Assim o povinho sem querer, em certo sentido naturalmente, modelava o pessoal que passava.

Uma vez que houve uma grande festa, eu resolvi não ir à festa para me meter no meio do povinho para ver como é que reagia.

Era isso mesmo: “olha aquela! olha aquele outro, olha aqui, depois isso, depois aquilo; não, não é”, não entravam de acordo, etc., etc.

O automóvel passava com as pessoas hieraticamente sentadas, em geral sem conversarem, prova de que estavam prestando atenção no que se dizia deles.

Eles modelavam o povo e o povo modelava a eles. Uma espécie de reciprocidade.

Tomem a pessoa mais rica ou mais poderosa, vamos dizer um grande escritor. Dois garis comentam: “olha lá vai fulano”.

Um deles diz: “eu não gosto dele, já li muitos romances dele, acho cacetes”. O outro diz: “não, eu achei até, pelo contrário, muito vivos.”

É fatal, o literato ainda que seja Prêmio Nobel começa a andar mais devagar para ouvir o que é que os dois lixeiros estão conversando. É fatal.

Também os alunos modelam até certo ponto o professor. Naturalmente, o professor modela o aluno muito mais. Mas o aluno modela o professor. É uma modelagem recíproca.

(Autor: Plinio Corrêa de Oliveira, 1/4/92. Sem revisão do autor.)



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