A família é uma imensa continuidade que aconchega, dá rumo e dignifica o indivíduo |
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
feita de famílias
onde o pai é o rei,
e onde o Rei
é o pai de todos
Bitetto, Itália, grupo de familias na catedral, roupas do século XIV |
É frequente na Europa, a população de certas cidades vestir roupas medievais, ou históricas, para rememorar fatos do passado, ou simplesmente reviver a alegria da era medieval. Fotos de encenações dessas na Itália, ilustram este post.
Para compreender bem a sociedade medieval, é necessário estudar a sua organização familiar.
Aí se encontra a “chave” da Idade Média, e também a sua originalidade.
Todas as relações nessa época — tanto as de senhor-vassalo como as de mestre-aprendiz — se estabelecem sobre a estrutura familiar.
A vida rural, a história do nosso solo, só se explicam pelo regime das famílias que aí viveram.
Quando se queria avaliar a importância de uma aldeia, contava-se o número de “fogos”, e não o número de indivíduos que a compunham.
Na legislação, nos costumes, todas as disposições tomadas dizem respeito aos bens de família, ao interesse da linhagem, ou então estendendo esta noção familiar a um círculo mais importante — ao interesse do grupo, do corpo de ofício, que não é senão uma vasta família fundada sobre o mesmo modelo que a célula familiar propriamente dita.
Gessate, Itália, grupo de famílias |
As suas lutas são querelas de família, nas quais toma parte toda essa corte, a qual têm o cargo de defender e de administrar.
A história da feudalidade não é outra senão a das principais linhagens.
E que será, no fim de contas, a história do poder real do século X ao século XIV?
A de uma linhagem, que se estabelece graças à sua fama de coragem, ao valor de que os seus antepassados tinham feito prova. Muito mais que um homem, é uma família que os barões colocaram na sua liderança.
Na pessoa de Hugo Capeto viam o descendente de Roberto, o Forte, que tinha defendido a região contra os invasores normandos; ou de Hugo, o Grande, que tinha já usado a coroa.
De fato, é o que transparece no famoso discurso de Adalbéron de Reims:
“Tomai por chefe o duque dos francos, glorioso pelas suas ações, pela sua família e pelos seus homens, o duque em quem encontrareis um tutor não só dos negócios públicos, mas dos vossos negócios privados”.
Esta linhagem manteve-se no trono por hereditariedade, de pai para filho, e viu os seus domínios crescerem por heranças e por casamentos, muito mais que por conquistas.
Porta del Castello, Itália, família camponesa |
Na base da “energia francesa” há a família, tal como a Idade Média a compreendeu e conheceu.
Não poderíamos apreender melhor a importância desta base familiar do que, por exemplo, comparando a sociedade medieval, composta de famílias, com a sociedade antiga, composta de indivíduos.
Nesta, o varão detém a primazia em tudo: na vida pública ele é o civis, o cidadão que vota, que faz as leis e toma parte nos negócios de Estado; na vida privada, é o pater familias, o proprietário de um bem que lhe pertence pessoalmente, do qual é o único responsável, e sobre o qual as suas atribuições são quase ilimitadas.
Em parte alguma se vê a sua família ou a sua linhagem participando na sua atividade. A mulher e os filhos estão inteiramente submetidos a ele, em relação a quem permanecem em estado de menoridade perpétua.
Sobre eles, como sobre os escravos ou sobre as propriedades, tem o jus utendi et abutendi, o poder de usar e consumir.
Sant'Amatore, Itália, casal nobre |
A criança, na Antiguidade, era a grande sacrificada, um objeto cuja vida dependia do juízo ou do capricho paterno.
Estava submetida a todas as eventualidades da troca ou da adoção, e quando o direito de vida lhe era concedido, permanecia sob a autoridade do pater familias até à morte deste.
Mesmo então não adquiria de pleno direito a herança paterna, já que o pai podia dispor à vontade dos seus bens por testamento.
Quando o Estado se ocupava dessa criança, não era de todo para intervir a favor de um ser frágil, mas para realizar a educação do futuro soldado e do futuro cidadão.
Poderíamos estudar a Antiguidade — e estudamo-la de fato — sob a forma de biografias individuais: a história de Roma é a de Sila, Pompeu, Augusto; a conquista dos gauleses é a história de Júlio César.
Nada subsiste desta concepção na nossa Idade Média. O que importa então já não é o homem, mas a linhagem.
Ao se abordar a Idade Média, uma mudança de método impõe-se: a história da unidade francesa é a da linhagem capetiana; a conquista da Sicília é a história dos descendentes de uma família normanda, demasiado numerosa para o seu patrimônio.
Para compreender bem a Idade Média, é preciso vê-la na sua continuidade, no seu conjunto. Talvez por isso ela é muito menos conhecida e muito mais difícil de estudar do que o período antigo, porque é necessário apreendê-la na sua complexidade, segui-la na continuidade do tempo, através dessas cortes que são a sua trama.
E é preciso fazê-lo não apenas em relação às que deixaram um nome pelo brilho dos seus feitos ou pela importância do seu domínio, mas também nas gentes mais humildes das cidades e dos campos, que é preciso conhecer na sua vida familiar se quisermos dar conta do que foi a sociedade medieval.
Isto se explica, pois durante esse período de perturbações e de decomposição total, que foi a Alta Idade Média, a única fonte de unidade, a única força que permaneceu viva foi precisamente o núcleo familiar, a partir do qual se constituiu pouco a pouco a unidade francesa.
A família e a sua base fundiária foram assim, devido às circunstâncias, o ponto de partida da nossa nação.
Esta importância dada à família traduz-se por uma preponderância, muito marcada na Idade Média, da vida privada sobre a vida pública.
Em Roma, um homem só tem valor enquanto exerce os seus direitos de cidadão, enquanto vota, delibera e participa nos negócios do Estado.
Famílias na parada do Palio delle Contrade, Vigevano, Itália |
Na Idade Média, raramente se trata de negócios públicos. Ou melhor, estes tomam logo o aspecto de uma administração familiar, são contas de domínio, regulamentos de rendeiros e de proprietários.
Mesmo quando os burgueses reclamam direitos políticos, no momento da formação das comunas, é para poderem exercer livremente o seu ofício e não serem mais incomodados pelas portagens e pelos direitos de alfândega.
A atividade política, em si, não apresenta interesse para eles. De resto, a vida rural é então infinitamente mais ativa que a vida urbana, e tanto numa como noutra é a família, não o indivíduo, que prevalece como unidade social.
Tal como se apresenta no século X, a sociedade assim compreendida tem como traço essencial a noção de solidariedade familiar saída dos costumes bárbaros, germânicos ou nórdicos.
A família é considerada como um corpo em cujos membros circula um mesmo sangue, ou como um mundo reduzido, desempenhando cada ser o seu papel com a consciência de fazer parte de um todo.
A união não repousa, como na antiguidade romana, sobre a concepção estatista da autoridade do seu chefe.
Repousa sim sobre esse fato de ordem biológica e moral, de acordo com o qual todos os indivíduos que compõem uma mesma família estão unidos pela carne e pelo sangue, por interesses solidários, e nada é mais respeitável do que a afeição que naturalmente anima uns para com os outros.
Tem-se muito vivo o sentido desse caráter comum dos seres de uma mesma família.
Aqueles que vivem sob um mesmo teto, que cultivam o mesmo campo e se aquecem no mesmo fogo — ou, para usar a linguagem do tempo, os que participam do mesmo “pão e pote”, ou que “comer da mesma gamela”, “que cortam a mesma côdea” — sabem que podem contar uns com os outros, que o apoio da sua corte não lhes faltará.
Michiel van der Dussen com sua família. Hendrick Cornelisz Van Vliet (1611/1612 - 1675) Gemeente Musea Delft. |
Étienne de Fougères protesta no seu Livre des manières [Livro de boas maneiras] contra o nepotismo dos bispos. Todavia, reconhece que estes fariam bem em rodear-se dos seus parentes, “se estão de boas relações”, pois nunca podemos ter certeza da fidelidade dos estranhos, diz ele, enquanto pelo menos os nossos não nos faltarão.
Partilham-se portanto as alegrias e os sofrimentos. Recolhem-se em casa os filhos daqueles que morreram ou estão em dificuldades, e todas as pessoas de uma mesma casa se agitam para desagravar a injúria feita a um dos seus membros.
O direito de guerra privada, reconhecido durante grande parte da Idade Média, é apenas a expressão da solidariedade familiar, e correspondia inicialmente a uma necessidade.
Quando da fraqueza do poder central, para o defender-se o indivíduo só podia contar com a ajuda da sua corte, e sem ela ficaria sozinho, entregue durante toda a época das invasões a perigos e misérias de toda espécie.
Para viver, era preciso enfrentar, agrupar-se. E que grupo valeria mais que uma família resolutamente unida?
A história da feudalidade não é outra senão a das principais linhagens.
E que será, no fim de contas, a história do poder real do século X ao século XIV?
A de uma linhagem, que se estabelece graças à sua fama de coragem, ao valor de que os seus antepassados tinham feito prova.
Muito mais que um homem, é uma família que os barões colocaram na sua liderança.
Na pessoa de Hugo Capeto viam o descendente de Roberto, o Forte, que tinha defendido a região contra os invasores normandos; ou de Hugo, o Grande, que tinha já usado a coroa.
De fato, é o que transparece no famoso discurso de Adalbéron de Reims:
“Tomai por chefe o duque dos francos, glorioso pelas suas ações, pela sua família e pelos seus homens, o duque em quem encontrareis um tutor não só dos negócios públicos, mas dos vossos negócios privados”.
Esta linhagem manteve-se no trono por hereditariedade, de pai para filho, e viu os seus domínios crescerem por heranças e por casamentos, muito mais que por conquistas.
É uma história que se repete milhares de vezes na nossa terra, em diversos níveis, e que decidiu uma vez por todas os destinos da França, fixando na sua terra linhagens de camponeses e de artesãos, cuja persistência através dos reveses dos tempos criou realmente a nossa nação.
Na base da “energia francesa” há a família, tal como a Idade Média a compreendeu e conheceu.
Brunwart von Augheim e esposa, Codex Manesse |
“Aqui e ali nascem homens nos quais se desenvolvem e atuam mais poderosamente o amor paterno e o desejo de se perpetuar nos seus descendentes.
“Eles se dedicam ao trabalho com mais ardor, impõem aos seus apetites um freio mais contínuo e mais sólido, governam sua família com mais autoridade, inspiram-lhe costumes mais severos, que eles imprimem nos hábitos que a fazem contrair.
“Esses hábitos se transmitem pela educação, e se tornam tradições que mantêm as novas gerações na via aberta pelos ancestrais.
“A marcha nessa via conduz a família a uma situação cada vez mais alta.
Frederico de Sonneburg e filhos. Codex Manesse, fol. 407r |
“Nessa situação eminente, esta família torna-se o centro de atenção daquelas que a circundam.
“Estas lhe pedem abrigo e proteção, e em contrapartida prometem assistência.
"Entre eles há os que se sentem estimulados pela prosperidade que presenciam, e a ambicionam para si mesmos, deixando-se governar e instruir, esforçando-se por praticar as virtudes cujos exemplos e resultados eles têm diante dos olhos....
“No caso da França, em meio às ruínas acumuladas pelas invasões dos bárbaros [principalmente dos normandos e magiares a partir do século X], não havia mais ordem, porque não havia mais autoridade.
“Sob a ação dos santos, várias famílias se ergueram, animadas pelos sentimentos que o cristianismo começava a difundir no mundo: sentimentos de devotamento pelos pequenos e os fracos, sentimentos de concórdia e amor entre todos, sentimentos de reconhecimento e de fidelidade para com os protegidos.
O imperador Carlos IV recebe a esposa de Carlos V |
“Acima de todas se ergueu, no século X, a família de Hugo Capeto, que edificou a França pela paciência do seu espírito, pela perseverança do seu devotamento, pela continuidade dos seus serviços.
“É necessário acrescentar: `E pela vontade e a graça de Deus'.
“Quando o Conde de Maistre ressaltou a frase da Sagrada Escritura `Sou Eu que faço os reis', ele não deixou de acrescentar:
`Isto não é uma metáfora, mas uma lei do mundo político.
`Ao pé da letra, Deus faz os reis.
`Ele prepara as raças reais, e as amadurece em meio a uma nuvem que esconde as suas origens. Assim elas aparecem coroadas de glória e honra'”.
(Autor: Mons. Henri Delassus, L'Esprit Familial dans la Maison, dans la Cité et dans l'État, Société Saint-Augustin, Desclée, De Brouwer, Lille, 1910, pp. 11-21).
As religiões pagãs demonstraram - e demonstram ainda - um espantoso menosprezo pela vida. O prof. Thomas Woods da alguns exemplos no vídeo embaixo.
A Igreja Católica recolocou a santidade da família - fonte da vida -, da vida e da Moral no ponto central rodeado de respeito e veneração.
W. E. H. Lecky, citado por Woods, destaca que nem na prática nem na teoria a caridade ocupou na Antiguidade uma posição comparável à que teve no Cristianismo.
O historiador da medicina Fielding Garrison mostra que antes de Cristo "a atitude face à doença e à desgraça não era de compaixão. O crédito de cuidar dos seres humanos enfermos em grande escala deve ser atribuído à Igreja”.
Os cristãos causavam admiração pela coragem com que atendiam os agonizantes e enterravam os mortos.
Os pagãos abandonavam em ruas e estradas os parentes e melhores amigos doentes, semi-mortos, ou mortos sem enterrar.
Por toda parte, Santos e instituições eclesiásticas trabalharam incessantemente para reverter essa sinistra situação.
O próprio Santo Agostinho deu exemplos eminentes no fim do império romano: fundou uma hospedaria para peregrinos, resgatou escravos, deu roupa aos pobres.
O grande pregador da Corte de Constantinopla, São João Crisóstomo, fundou hospitais na capital do Império de Oriente. São Cipriano e Santo Efrém organizaram os auxílios durante epidemias e fomes.
Os mosteiros masculinos e femininos estiveram na ponta de lança da restauração do valor da vida.
O rei da França São Luís IX dizia que os mosteiros eram o "patrimônio dos pobres".
Eles davam diariamente esmolas aos carentes. Por vezes, míseros seres humanos passavam a vida dependendo da caridade monástica ou episcopal.
Os religiosos também distribuíam alimentos aos pobres em sufrágio da alma de um religioso falecido. Isto era feito durante trinta dias no caso do falecimento de um simples monge, e durante um ano no caso de um abade. E, às vezes, perpetuamente.
Cerimônia de casamento nos séculos XII e XIII |
Neles, o casamento era valorizado, a mulher reconhecida como pessoa com pleno direito familiar e em pé de igualdade com o marido e a violência sexual denunciada como crime grave e do âmbito da justiça pública .
As crianças também foram objeto de reflexão nesses espelhos: a maternidade foi considerada um valor (charitas) e o casal tinha a obrigação de aceitar e reconhecer os filhos.
Assim, a ação da ordem clerical foi dupla: de um lado, os bispos lutaram contra a prática do infanticídio, de outro, os monges revalorizaram a criança, que passou por um processo de educação direcionada, de cunho integral e totalmente igualitária.
O casal von Kurneberg, manuscrito Manesse. |
Estes séculos da Alta Idade Média foram cruciais para a implantação do modelo de casamento cristão conhecido por todo o mundo ocidental, para a valorização da mulher como parceira e igual do marido e para a ideia de criança como ser próprio e com necessidades pedagógicas específicas.
Por fim, a sociedade era pensada como o conjunto de pessoas casadas (ordo conjugatorum), e a criança tinha um papel fundamental nessa estrutura, pois era o fim último da união.
Não poderíamos apreender melhor a importância desta base familiar do que, por exemplo, comparando a sociedade medieval, composta de famílias, com a sociedade antiga, composta de indivíduos.
Nesta, o varão detém a primazia em tudo: na vida pública ele é o civis, o cidadão que vota, que faz as leis e toma parte nos negócios de Estado; na vida privada, é o pater familias, o proprietário de um bem que lhe pertence pessoalmente, do qual é o único responsável, e sobre o qual as suas atribuições são quase ilimitadas.
Em parte alguma se vê a sua família ou a sua linhagem participando na sua atividade.
A mulher e os filhos estão inteiramente submetidos a ele, em relação a quem permanecem em estado de menoridade perpétua.
Sobre eles, como sobre os escravos ou sobre as propriedades, tem o jus utendi et abutendi, o poder de usar e consumir.
A família parece existir apenas em estado latente, não vive senão pela personalidade do pai, que é simultaneamente chefe militar e grande sacerdote, com todas as conseqüências morais que daí decorrem, entre as quais é preciso colocar o infanticídio legal.
A criança, na Antiguidade, era a grande sacrificada, um objeto cuja vida dependia do juízo ou do capricho paterno.
Estava submetida a todas as eventualidades da troca ou da adoção, e quando o direito de vida lhe era concedido, permanecia sob a autoridade do pater familias até à morte deste.
Mesmo então não adquiria de pleno direito a herança paterna, já que o pai podia dispor à vontade dos seus bens por testamento.
Quando o Estado se ocupava dessa criança, não era de todo para intervir a favor de um ser frágil, mas para realizar a educação do futuro soldado e do futuro cidadão.
Poderíamos estudar a Antiguidade — e estudamo-la de fato — sob a forma de biografias individuais: a história de Roma é a de Sila, Pompeu, Augusto; a conquista dos gauleses é a história de Júlio César.
Nada subsiste desta concepção na nossa Idade Média. O que importa então já não é o homem, mas a linhagem.
Ao se abordar a Idade Média, uma mudança de método impõe-se: a história da unidade francesa é a da linhagem capetiana; a conquista da Sicília é a história dos descendentes de uma família normanda, demasiado numerosa para o seu patrimônio.
Para compreender bem a Idade Média, é preciso vê-la na sua continuidade, no seu conjunto.
Talvez por isso ela é muito menos conhecida e muito mais difícil de estudar do que o período antigo, porque é necessário apreendê-la na sua complexidade, segui-la na continuidade do tempo, através dessas cortes que são a sua trama.
E é preciso fazê-lo não apenas em relação às que deixaram um nome pelo brilho dos seus feitos ou pela importância do seu domínio, mas também nas gentes mais humildes das cidades e dos campos, que é preciso conhecer na sua vida familiar se quisermos dar conta do que foi a sociedade medieval.
Isto se explica, pois durante esse período de perturbações e de decomposição total, que foi a Alta Idade Média, a única fonte de unidade, a única força que permaneceu viva foi precisamente o núcleo familiar, a partir do qual se constituiu pouco a pouco a unidade francesa.
A família e a sua base fundiária foram assim, devido às circunstâncias, o ponto de partida da nossa nação.
Colonização da Islândia e da Groenlândia |
Em Roma, um homem só tem valor enquanto exerce os seus direitos de cidadão, enquanto vota, delibera e participa nos negócios do Estado.
As lutas da plebe para obter o direito de ser representada por um tribuno são, a este nível, bastante significativas.
Na Idade Média, raramente se trata de negócios públicos.
Ou melhor, estes tomam logo o aspecto de uma administração familiar, são contas de domínio, regulamentos de rendeiros e de proprietários.
Mesmo quando os burgueses reclamam direitos políticos, no momento da formação das comunas, é para poderem exercer livremente o seu ofício e não serem mais incomodados pelas portagens e pelos direitos de alfândega.
A atividade política, em si, não apresenta interesse para eles.
De resto, a vida rural é então infinitamente mais ativa que a vida urbana, e tanto numa como noutra é a família, não o indivíduo, que prevalece como unidade social.
Tal como se apresenta no século X, a sociedade assim compreendida tem como traço essencial a noção de solidariedade familiar saída dos costumes bárbaros, germânicos ou nórdicos.
A família é considerada como um corpo em cujos membros circula um mesmo sangue, ou como um mundo reduzido, desempenhando cada ser o seu papel com a consciência de fazer parte de um todo.
A união não repousa, como na antiguidade romana, sobre a concepção estatista da autoridade do seu chefe.
Repousa sim sobre esse fato de ordem biológica e moral, de acordo com o qual todos os indivíduos que compõem uma mesma família estão unidos pela carne e pelo sangue, por interesses solidários, e nada é mais respeitável do que a afeição que naturalmente anima uns para com os outros.
Tem-se muito vivo o sentido desse caráter comum dos seres de uma mesma família. Diz um autor do tempo:
Les gentils fils des gentils pères
Des gentils et des bonnes mères
Ils ne font pas de pesants heires [héritiers].
Os gentis filhos dos gentis pais
Das gentis e boas mães
Não se tornam herdeiros pesados.
Aqueles que vivem sob um mesmo teto, que cultivam o mesmo campo e se aquecem no mesmo fogo — ou, para usar a linguagem do tempo, os que participam do mesmo “pão e pote”, [Em português, a expressão correspondente seria “comer da mesma gamela”] “que cortam a mesma côdea” — sabem que podem contar uns com os outros, que o apoio da sua corte não lhes faltará.
O espírito de grupo é, com efeito, mais potente aqui do que poderia ser em qualquer outro agrupamento, já que se funda sobre os laços inegáveis do parentesco pelo sangue e se apóia sobre uma comunidade de interesses não menos visível e evidente.
Étienne de Fougères, o autor de quem foi citado o extrato precedente, protesta no seu Livre des manières [Livro de boas maneiras] contra o nepotismo dos bispos.
Todavia, reconhece que estes fariam bem em rodear-se dos seus parentes, “se estão de boas relações”, pois nunca podemos ter certeza da fidelidade dos estranhos, diz ele, enquanto pelo menos os nossos não nos faltarão.
Partilham-se portanto as alegrias e os sofrimentos. Recolhem-se em casa os filhos daqueles que morreram ou estão em dificuldades, e todas as pessoas de uma mesma casa se agitam para desagravar [O desagravo, no Portugal medieval, é o direito de revindita] a injúria feita a um dos seus membros.
O direito de guerra privada, reconhecido durante grande parte da Idade Média, é apenas a expressão da solidariedade familiar, e correspondia inicialmente a uma necessidade.
Quando da fraqueza do poder central, para o defender-se o indivíduo só podia contar com a ajuda da sua corte, e sem ela ficaria sozinho, entregue durante toda a época das invasões a perigos e misérias de toda espécie.
Para viver, era preciso enfrentar, agrupar-se. E que grupo valeria mais que uma família resolutamente unida?
Familia camponesa na Áustria |
O poder do pater famílias era absoluto: um cidadão não tinha um filho, o tomava.
Caso recusasse a criança – e o fato era bastante comum – ela era enjeitada. E o que acontecia à maioria dos enjeitados? A morte.
A segunda herança que a Idade Média herda da Antiguidade, a cultura bárbara, foi-nos passada especialmente por Tácito. Ele nos conta que a tradição germânica em relação às crianças era um pouco melhor que a romana.
Os germanos não praticavam o infanticídio, as próprias mães amamentavam seus filhos e as crianças eram educadas sem distinção de posição social.
Dessas duas tradições culturais que se mesclaram e fizeram emergir a Idade Média, concluo que o status da criança naquelas sociedades antigas era praticamente nulo.
Até o final da Antiguidade as crianças pobres eram abandonadas ou vendidas; as ricas enjeitadas – por causa de disputas de herança – eram entregues à própria sorte.
Nesse contexto histórico-cultural é que se compreende a força e o impacto do cristianismo, que rompeu com essas duas tradições.
Cristo disse: “Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus. Aquele, portanto, que se tornar pequenino como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus”. (Mt 18, 1-4).
A tradição cristã abriu, portanto, uma nova perspectiva à criança. No entanto, foi um processo bastante lento, um processo civilizacional levado a cabo pela Igreja.
Em sua História dos Francos, Gregório de Tours nos conta o sentimento de tristeza e a lamentação de Fredegunda (concubina e depois esposa do rei dos francos Chilperico), quando da morte de crianças:
“Essa epidemia que começou no mês de agosto atacou em primeiro lugar a todos os jovens adolescentes e provocou sua morte.
“Nós perdemos algumas criancinhas encantadoras e que nos eram queridas, a quem nós havíamos aquecido em nosso peito, carregado em nossos braços ou nutrido por nossa própria mão, lhes administrando os alimentos com um cuidado delicado [...]
“O rei Chilperico também esteve gravemente doente. Quando entrou em convalescença, seu filho mais novo, que não era ainda renascido pela água e pelo Espírito Santo, caiu enfermo.
“Assim que melhorou um pouco, seu irmão mais velho, Clodoberto, foi atingido pela mesma doença, e sua mãe Fredegunda, vendo-o em perigo de morte e se arrependendo tardiamente, disse ao rei:
“A misericórdia divina nos suporta há muito tempo, nós que fazemos o mal, porque sempre ela nos tem advertido através das febres e outras doenças, mas sem que nos corrijamos.
“Nós perdemos agora os nossos filhos, eis que as lágrimas dos pobres, as lamentações das viúvas e os suspiros dos órfãos os matam e não nos resta esperança de deixar os bens para ninguém.
“Nós entesouramos sem ter para quem deixar. Os tesouros ficarão privados de possuidor e carregados de rapina e maldições! Nossas adegas não abundam em vinho?
“Nossos celeiros não estão repletos de trigo?
“Nossos tesouros não estão abarrotados de ouro e de prata, de pedras preciosas, de colares e outras jóias imperiais?
“Nós perdemos o que tínhamos de mais belo! Agora, por favor, venha!
“Queimemos todos os livros de imposições iníquas e que nosso fisco se contente com o que era suficiente ao pai e rei Clotário.” (Gregório de Tours, Historiae, V, 34)
Museu de Arte Popular dos Pirineus, Lourdes, França |
Poltrona de camponês, de madeira, feita até com bonito trabalho por eles nas noites de inverno.
Depois, cadeiras com encosto para os filhos mais velhos, sem encosto para a criançada.
E sobre a mesa um pão enorme que a dona de casa tinha mandado cozinhar entre outras coisas para o almoço.
Quando o pai chegava à cabeceira da mesa ele fazia o nome do padre. Todos seguiam, e ele dizia uma oração: “Que o Menino Jesus que nasceu em Belém bendiga esse alimento e nós também”. Bom, daí todos diziam “Amém”.
Sentavam-se, ele pegava o pão, cortava o primeiro pedaço e ia distribuindo para cada um. Aí começava a refeição.
Qualquer refeição dos “famosos” de hoje não tem um centésimo dessa respeitabilidade.
Mas não é que não tem, eles não querem que tenha; odeiam! Se oferecessem a eles, eles repudiariam com furor, não gostam disso.
Não é dizer que eu esteja fazendo um elogio da aristocracia; eu elogio a aristocracia porque ela tem a sua razão de ser na ordem posta por Deus.
Mas, não é disso que eu estou tratando, esta forma de grandeza séria que existe em tudo dentro da ordem católica, e que se estendia até um trinco ou uma fechadura.
Há portas medievais com uma ferronerie, com uma tira de ferro prendendo várias ripas de madeira. É uma coisa tão comum!
É só para manter a madeira da porta toda unida, e não poder ser arrebentada. É preciso dar mais coesão às tábuas: então prendiam uma tira de ferro.
A cultura contemporânea faz isso de um modo horrendo.
Eles faziam de um modo bonito. Faziam tiras de ferro que terminava em geral numa cabeça de flor de Lys, uma coisa qualquer assim.
Eles adornavam, mas o adorno simples, do pobre, no ferro, hoje em dia se vende por uma fábula num antiquário.
Esta respeitabilidade era acompanhada de uma coerência em tudo na Idade Média.
Na organização da sociedade civil, da eclesiástica, das partes internas da sociedade, e tudo mais, tudo é coerente com tudo.
Família de pastores, pai e filho, com o 'Traje Ansotano', Espanha |
Em certas províncias, particularmente no norte da França, a habitação traduz esse sentimento da solidariedade.
O principal compartimento da casa é a sala, que congrega diante da sua vasta lareira a família. Nela se juntam para comer, para festejar os casamentos e os aniversários e para velar os mortos.
Corresponde ao hall dos costumes anglo-saxões, pois a Inglaterra teve na Idade Média costumes semelhantes aos nossos, aos quais permaneceu fiel em muitos pontos.
A esta comunidade de bens e de afeição é necessário um administrador, e naturalmente o pai de família desempenha este papel.
Mas a autoridade que ele desfruta é antes a de um gerente, em lugar de ser a de um chefe, absoluta e pessoal como no direito romano.
Trata-se de um gerente responsável, diretamente interessado na prosperidade da casa, mas que cumpre um dever mais do que exerce um direito.
Proteger os seres fracos — mulheres, crianças, servos — que vivem debaixo do seu teto, assegurar a gestão do patrimônio, tal é o seu encargo, mas não é considerado o chefe definitivo da casa familiar nem o proprietário do domínio.
Tal como os recebeu dos antepassados, deve transmiti-los àqueles cujo nascimento designará para lhe sucederem.
O verdadeiro proprietário é a família, não o indivíduo.
Do mesmo modo, embora possua toda a autoridade necessária para as suas funções, o pai de família está longe de ter, sobre a mulher e os filhos, esse poder sem limites que lhe concedia o direito romano.
A mulher colabora na mainbournie, quer dizer, na administração da comunidade e na educação dos filhos.
Ele gere os bens próprios, porque o consideram mais apto do que ela para os fazer prosperar, coisa que não se consegue sem esforço e sem trabalho.
Mas quando ele tem de se ausentar, por uma razão qualquer, a mulher retoma essa gestão sem o mínimo obstáculo e sem autorização prévia.
Guarda-se tão viva a recordação da origem da sua fortuna, que no caso de a mulher morrer sem filhos os seus bens próprios voltam integralmente para a sua família.
Nenhum contrato pode opor-se a isto, as coisas passam-se naturalmente assim.
Cena de vida familiar medieval.The British Library |
Entre os nobres, a idade varia de quatorze a vinte anos, porque têm de fornecer para a defesa do feudo um serviço mais ativo, que exige forças e experiência.
Os reis da França eram considerados maiores com quatorze ou quinze anos, e sabe-se que foi com esta idade que Filipe Augusto atacou à frente de suas tropas.
Uma vez maior, o jovem continua a gozar da proteção dos seus e da solidariedade familiar.
Porém, diferentemente do que se passava em Roma, e consequentemente nos países de direito escrito, adquire plena liberdade de iniciativa e pode afastar-se, fundar uma família, administrar os seus próprios bens como entender.
Logo que é capaz de agir por si mesmo, nada entrava a sua atividade e ele torna-se senhor de si próprio, mantendo no entanto o apoio da família de que saiu.
É uma cena clássica dos romances de cavalaria ver os filhos da casa, logo que estão em idade de usar armas e de receber a investidura, deixar a residência paterna para correr o mundo ou ir servir o seu suserano.
A noção da família assim compreendida repousa sobre uma base material — a herança de família, bem fundiário em geral — porque desde os começos da Idade Média a terra constitui a única fonte de riqueza, e permanece consequentemente o bem estável por excelência.
“Ouvi vós todos, nobres burgueses e aldeães, e não fazei nenhum ruído, vós outros que estais pelos cantos! Mas sei que todos ireis ouvir, nobres, burgueses e aldeães, com a maior atenção, pois vos falarei da Honra”.
Rainha Petronila de Aragão e o conde de Barcelona Ramão Berenguer
Falava-se da Honra, cantava-se a Honra – pois acabo de citar o início de um poema do século XII, e tais poemas, consagradas à Honra, substituíram, em grande parte, o jornalismo hodierno.
Falava-se a todos da Honra, ao povo como aos Barões, e todos, aldeães como nobres, tornavam-se atentos e admirados quando se falava da Honra.
Eis o primeiro e maior dos signos característicos dessa época, o fato pelo qual a Idade Média domina toda a História da França até hoje.
Porque ainda que a ideia mestra da sociedade tenha sido mudada, ainda que a Revolução tenha trocado a Honra pelo bem-estar, como ideal social, são ainda os restos dessa antiga Honra que fazem pulsar o coração da França nos grandes dias solenes; que sustentam sua alma no alto; que nos mantém unidos quando a nova teoria tende a fazer de cada um de nós o ríspido concorrente de seu vizinho; e que nos dão alguma força de resistência contra o inimigo externo e seus melhores aliados, os revolucionários.
Cavaleiro, vitral proveniente da abadia de St Bertin, França |
Ela a criou como um artista de gênio que forma uma estátua admirável com restos esparsos.
Com efeito, a consciência humana e os heróis dos tempos antigos tinham fornecido ao Catolicismo os materiais e algumas peças de um belo modelo.
Mas a Honra, sendo o sacrifício contínuo dos baixos instintos da humanidade aos seus mais altos sentimentos, só o Cristianismo dela podia fazer um hábito individual; e só uma sociedade dócil ao Cristianismo podia impô-la como ideal geral.
A Idade Média, à força de pregá-la, de mostrar não só seus aspectos sublimes, mas também úteis; à força de a reverenciar, de admirá-la e de tudo lhe sacrificar, fez dela um instinto novo.
Esse instinto elevou os pequenos até os grandes e os grandes até os pequenos.
A Honra teve uma filha: a Fidelidade, da qual nasceu a Cavalaria.
A Fidelidade, que os antigos apenas entreviram, a Fidelidade até à morte, até à ruína, até o sacrifício dos sentimentos mais caros!
A Fidelidade, não a título heroico, com em um Régulus em quem o esforço sente-se no próprio maravilhamento dos contemporâneos.
Não a Fidelidade prestada aos Imperadores romanos, que se divinizavam como se a Fidelidade precisasse de uma desculpa, e que degolavam seus súditos para mostrar que tal Fidelidade era artificial!
Cavaleiros |
Fidelidade ao juramento ante qualquer coisa, por mais desprezível ou odiável, que pudesse acontecer ao homem sagrado por esse juramento.
A Honra levou, pois, a Fidelidade até o martírio, assim como ajudou a bravura a ser facilmente heróica e o desinteresse a não temer a miséria.
Para bem compreender essa Honra, precisaríamos interrogar cada frase que a História nos conservou de São Luís IX.
Reconstruir-se-ia assim o código da Honra, pois o Santo Rei foi disso a mais reta encarnação e mostrou todas as delicadezas da honra, como toda a força e toda a equidade.
A Honra não estava alheia àquele ódio que a Idade Média mostrou perseverantemente contra os usurários judeus que pareciam estar, por sua ganância, patifaria e covardia, nas antípodas da Cavalaria.
À Honra também é devida à hostilidade que a França, enquanto conservou sua grandeza, teve contra essas sociedades secretas, sempre fundadas sobre princípios opostos à Honra.
A vida rural foi extraordinariamente ativa durante a Idade Média, e grande quantidade de culturas foi introduzida na França durante essa época.
Isso foi devido, em grande parte, às facilidades que o sistema rural da época oferecia ao espírito de iniciativa da nossa raça.
O camponês de então não é nem um retardatário nem um rotineiro. A unidade e a estabilidade do domínio eram uma garantia tanto para o futuro como para o presente, favorecendo a continuidade do esforço familiar.
Nos nossos dias, quando concorrem vários herdeiros, é preciso desmembrar o fundo e passar por toda espécie de negociações e de resgates, para que um deles possa retomar a empresa paterna. [disposições recentes vieram modificar o regime das sucessões]
A exploração cessa com o indivíduo, mas o indivíduo passa, enquanto o patrimônio fica, e na Idade Média tendia-se para residir.
Se existe uma palavra significativa na terminologia medieval, essa palavra é mansão senhorial (manere, o lugar onde se está), o ponto de ligação da linhagem, o teto que abriga os seus membros passados e presentes, e que permite às gerações sucederem-se pacificamente.
Bem característico também é o emprego dessa unidade agrária que se denomina manse — extensão de terra suficiente para que uma família possa nela fixar-se e viver.
Variava naturalmente com as regiões: um cantinho de terra na gorda Normandia ou na rica Gasconha traz mais ao cultivador que vastas extensões na Bretanha ou no Forez.
A manse tem pois uma extensão muito variável conforme o clima, as qualidades do solo e as condições de existência. É uma medida empírica e — característica essencial — de base familiar, não individual, resumindo por si só a característica mais saliente da sociedade medieval.
Assegurar à família uma base fixa e ligá-la ao solo de qualquer forma, para que aí tome raízes, dê fruto e se perpetue, tal é a finalidade dos nossos antepassados.
Pode-se traficar com as riquezas móveis e dispô-las por testamento, porque por essência são mutáveis e pouco estáveis.
Pelas razões inversas, os bens fundiários [propriedades rústicas ligadas à terra, à agricultura, são a base da economia medieval] são propriedade familiar, inalienáveis e impenhoráveis.
O homem não é senão o guardião temporário, o usufrutuário. O verdadeiro proprietário é a linhagem.
Uma série de costumes medievais decorrem dessa preocupação de salvaguardar o patrimônio de família.
Assim, em caso de falta de herdeiro direto os bens de origem paterna voltam para a família do pai, e os de origem materna para a da mãe, enquanto no direito romano só se reconhecia o parentesco por via masculina.
É o que se chama direito de retorno, que desempata de acordo com a sua origem os bens de uma família extinta.
Do mesmo modo, o asilo de linhagem dá aos parentes mesmo afastados o direito de preferência, quando por uma razão ou por outra um domínio é vendido.
A maneira como é regulada a tutela de uma criança que ficou órfã apresenta também um tipo de legislação familiar.
A tutela é exercida pelo conjunto da família, e torna-se naturalmente tutor aquele cujo grau de parentesco designa para administrar os bens.
O nosso conselho de família é apenas um resíduo do costume medieval que regulava o arrendamento dos feudos e a guarda das crianças.
Na Idade Média se tem viva a preocupação de respeitar o curso natural das coisas, de não criar prejuízos quanto aos bens familiares, tanto que, no caso em que morram sem herdeiro aqueles que detêm determinados bens, o seu domínio não pode voltar para os ascendentes.
Procuram-se os descendentes mesmo afastados, primos ou parentes, evitando voltar esses bens para os que tiveram antes a sua posse: “Bens próprios não voltam para trás”.
Tudo isso pelo desejo de seguir a ordem normal da vida, que se transmite do mais velho para o mais novo e não volta para trás: os rios não voltam à nascente, do mesmo modo os elementos da vida devem alimentar aquilo que representa a juventude, o futuro.
Esta é mais uma garantia para o patrimônio da linhagem, que se transfere necessariamente para seres jovens, portanto mais ativos e capazes de o fazer valer mais longamente.
Por vezes, a transmissão dos bens faz-se de uma forma muito reveladora do sentimento familiar, que é a grande força da Idade Média.
A família (aqueles que vivem de um mesmo “pão e pote”) constitui uma verdadeira personalidade moral e jurídica, possuindo em comum os bens cujo administrador é o pai.
Pela sua morte, a comunidade reconstitui-se com a orientação de um dos filhos, designado portanto pelo sangue, sem que tenha havido interrupção da posse dos bens nem transmissão de qualquer espécie.
É aquilo a que se chama a comunidade silenciosa, de que faz parte qualquer membro da casa de família que não tenha sido expressamente posto “fora do pão e pote”.
O costume subsistiu até ao fim do Antigo Regime, e podem-se citar famílias francesas que durante séculos nunca pagaram o mínimo direito de sucessão.
Em 1840, o jurista Dupin assinalava nessa situação a família Jault, que não o pagava desde o século XIV.
Em todos os casos, mesmo fora da comunidade silenciosa, a família, considerada no seu prolongamento através das gerações, permanece o verdadeiro proprietário dos bens patrimoniais.
O pai de família que recebeu esses bens dos antepassados deve dar conta deles aos seus descendentes. Seja servo ou senhor, nunca é o dono absoluto.
Reconhece-se a ele o direito de usar, não o de consumir, e tem além disso o dever de defender, proteger e melhorar a sorte de todos os seres e coisas dos quais foi constituído o guardião natural.
Reconstituição da grande sala de uma casa de camponeses. Museu de Lourdes |
Em certas províncias, particularmente no norte da França, a habitação traduz esse sentimento da solidariedade.
O principal compartimento da casa é a sala, que congrega diante da sua vasta lareira a família. Nela se juntam para comer, para festejar os casamentos e os aniversários e para velar os mortos.
Corresponde ao hall dos costumes anglo-saxões, pois a Inglaterra teve na Idade Média costumes semelhantes aos nossos, aos quais permaneceu fiel em muitos pontos.
A esta comunidade de bens e de afeição é necessário um administrador, e naturalmente o pai de família desempenha este papel.
Numa casa de burgueses, todos bem alimentados, vestidos e aquecidos |
Proteger os seres fracos — mulheres, crianças, servos — que vivem debaixo do seu teto, assegurar a gestão do patrimônio, tal é o seu encargo, mas não é considerado o chefe definitivo da casa familiar nem o proprietário do domínio.
Embora desfrute os seus bens patrimoniais, tem apenas o seu usufruto. Tal como os recebeu dos antepassados, deve transmiti-los àqueles cujo nascimento designará para lhe sucederem.
O verdadeiro proprietário é a família, não o indivíduo.
Do mesmo modo, embora possua toda a autoridade necessária para as suas funções, o pai de família está longe de ter, sobre a mulher e os filhos, esse poder sem limites que lhe concedia o direito romano.
A mulher colabora na mainbournie, quer dizer, na administração da comunidade e na educação dos filhos.
Ele gere os bens próprios, porque o consideram mais apto do que ela para os fazer prosperar, coisa que não se consegue sem esforço e sem trabalho.
Mas quando ele tem de se ausentar, por uma razão qualquer, a mulher retoma essa gestão sem o mínimo obstáculo e sem autorização prévia.
Palio dei Fanciulli, em Vigevano, Itália |
Nenhum contrato pode opor-se a isto, as coisas passam-se naturalmente assim.
Em relação aos filhos, o pai é o guardião, o protetor e o mestre. A sua autoridade paterna cessa na maioridade, que adquirem muito jovens, quase sempre aos quatorze anos entre os plebeus.
Entre os nobres, a idade varia de quatorze a vinte anos, porque têm de fornecer para a defesa do feudo um serviço mais ativo, que exige forças e experiência.
Os reis da França eram considerados maiores com quatorze ou quinze anos, e sabe-se que foi com esta idade que Filipe Augusto atacou à frente de suas tropas.
Uma vez maior, o jovem continua a gozar da proteção dos seus e da solidariedade familiar. Porém, diferentemente do que se passava em Roma, e consequentemente nos países de direito escrito, adquire plena liberdade de iniciativa e pode afastar-se, fundar uma família, administrar os seus próprios bens como entender.
Logo que é capaz de agir por si mesmo, nada entrava a sua atividade e ele torna-se senhor de si próprio, mantendo no entanto o apoio da família de que saiu.
É uma cena clássica dos romances de cavalaria ver os filhos da casa, logo que estão em idade de usar armas e de receber a investidura, deixar a residência paterna para correr o mundo ou ir servir o seu suserano.
A noção da família medieval bem compreendida repousa sobre uma base material — a herança de família, bem fundiário em geral — porque desde os começos da Idade Média a terra constitui a única fonte de riqueza, e permanece consequentemente o bem estável por excelência.
Dizia-se então:
Héritage ne peut mauvoir
Mais meubles est chose volage.
Uma herança não pode movimentar-se
Mas os móveis são coisa instável.
Esta herança familiar, quer se trate de um arrendamento servil ou de um domínio senhorial, permanece sempre propriedade da linhagem.
É impenhorável e inalienável, os reveses acidentais da família não podem atingi-la.
Ninguém pode tomá-la, e a família também não tem o direito de a vender ou negociar.
Quando o pai morre, a herança de família passa para os herdeiros diretos.
Tratando-se de um feudo nobre, o filho mais velho recebe quase a sua totalidade, porque a manutenção e defesa de um domínio requer um homem, e que seja amadurecido pela experiência.
Esta a razão do morgadio, que a maior parte dos costumes consagra.
Para os arrendamentos, o uso varia com as províncias, sendo por vezes a herança partilhada, mas em geral é o filho mais velho quem sucede.
Notemos que se trata aqui da herança principal, do patrimônio de família.
Em tal circunstância as outras são partilhadas pelos filhos mais novos, mas é ao mais velho que cabe o “solar principal”, com uma extensão de terra suficiente para ele viver com a sua família.
É justo, pois afinal o filho mais velho quase sempre secundou o pai, e depois dele é quem mais cooperou na manutenção e na defesa do patrimônio.
Em algumas províncias, tais como Hainaut, Artois, Picardie e em algumas partes da Bretanha, não é o mais velho, e sim o mais novo o sucessor da herança principal.
Uma vez mais, isso ocorre por uma razão de direito natural, porque numa família os mais velhos são os primeiros a casar, estabelecendo-se então por conta própria, enquanto o mais novo fica mais tempo com os pais e cuida deles na velhice.
Este direito do mais jovem [sem correspondência em Portugal, normalmente esta sucessão de patrimônio passava para os filhos segundos] testemunha a elasticidade e a diversidade dos costumes, que se adaptam aos hábitos familiares de acordo com as condições de existência.
Roda na Alemanha: invento medieval com melhoras modernas |
A Alemanha e diversos países europeus apelaram para um sistema medieval visando salvar a vida de recém-nascidos, acolhendo-os no anonimato.
Trata-se da “Roda dos enjeitados”, ou “Roda da Misericórdia”, ou ainda “Roda dos Expostos”, criada na cidade francesa de Marselha em 1188, durante a Idade Média.
Ela foi largamente usada no Brasil, onde ainda ficam algumas, porém fora de uso.
A primeira foi aberta em Salvador em 1734, por determinação real, com o nome de Roda do Asilo do Santo Nome de Jesus. Seu uso se estendeu a todas as cidades importantes do Brasil até o século XX.
Embora o método seja criticado, muitas autoridades europeias reconhecem que todos os anos ele salva as vidas de dezenas de crianças. As críticas obedecem à antipatia visceral contra tudo o que é medieval, ainda quando é benéfico.
A Alemanha adotou o sistema (“Babyklappe” em alemão), visando salvar as vidas dos bebês que morriam de frio abandonados na rua.
Antigamente a Roda funcionava em conventos e hospitais que eram dirigidos por religiosos ou religiosas.
Roda de Misericórdia, Portugal |
Esse bom costume perdurou ainda nos séculos posteriores, sendo muito perseguido e diminuído pelo laicismo de Estado ligado à Revolução Francesa.
Nos séculos penetrados pela doçura da caridade católica, o tratamento dado às criancinhas abandonadas deixa envergonhados os sistemas modernos.
As Rodas eram giratórias, ficavam em locais discretos e a infeliz mãe não era vista.
Religiosas e religiosos cuidavam bem das crianças, como se estas fossem o próprio Jesus Cristo.
Velavam pela sua saúde, educação, pelo ensino de profissão no caso dos moços e do casamento no caso das moças.
Hoje estão sendo aplicadas melhorias técnicas como um dispositivo automático que toca uma campainha e liga o aquecimento indispensável no frio europeu. Infelizmente, faltam religiosas ou religiosas para atender a essas crianças que são tratadas por funcionários do Estado.
Entretanto, o Comitê das Nações Unidas para os Direitos das Crianças, que jamais ofereceu algum sistema melhor, voltou-se contra o retorno ao sistema medieval.
A ONU, que tanto se tem empenhado pelos direitos humanos dos bandidos, alega que a prática violaria os direitos das crianças ao favorecer um retrocesso à Idade Média!
Roda dos expostos, Viseu. Foto: Viseu com Z |
Se os medievais acertaram melhor, bem-vindos sejam suas invenções e seus progressos.
Segundo Steffanie Wolpert, responsável pela “Babyklappe” de Hamburgo, no ano de 1999, antes do funcionamento da “Roda salva-vidas”, cinco bebês foram abandonados nas ruas, três dos quais morreram de frio.
A Alemanha é o país que tem mais “Rodas” para receber bebês: 99. Hungria, Itália, Polônia, República Tcheca, Eslováquia, Lituânia, Bélgica, Holanda e Suíça também adotaram o sistema.
A caridade cristã inspirou realizações na Idade Média para as quais os homens se voltam hoje à procura de bom senso, humanidade e fé. Os adversários do Catolicismo e da ordem medieval, obviamente, não gostam de nada disso.
A família gerou o Estado medieval |
Os francos eram de um barbarismo o mais rude que se possa conceber. Mas com o passar do tempo foram sendo civilizados, embora precariamente.
Nos séculos VII e VIII as hordas representavam apenas pouco menos que a barbárie.
Fora este, tão somente, e após tremenda luta, o modestíssimo fruto conseguido pela Igreja Católica.
Alguns ela arrancara ao arianismo, convertera outros, e ia conseguindo um lento processo de mitigação e dulcificação dos costumes.
Sobre esta imensa obra, ainda em começo, sopraram então, de modo verdadeiramente trágico, os tufões da adversidade.
As torneiras do mundo não cristão se abrem, e catadupas de pagãos invadem a Europa.
Da Rússia e da Prússia, regiões ainda desconhecidas, desceram bárbaros, ainda mais primitivos que os da primeira invasão, assolando, saqueando, reproduzindo os horrores antes perpetrados no Império Romano do Ocidente.
Do norte, pelo mar, vieram os normandos, de igual rudeza.
Em determinado momento, tomados de um furor navegatório, famílias, tribos, nações, o reino inteiro meteu-se em barcos e pôs-se a viajar.
Iam em cascas de nozes, beliscando o litoral, saqueando, comendo, arrasando.
Alguns de seus chefes intitulavam-se “reis do mar” ou vikings.
Bárbaros extinguiram a civilização romana |
Nesta sanha chegaram até Constantinopla e invadiram Bizâncio, sempre assolando tudo, fazendo por vezes incursões profundas e deixando alguns pelas terras onde passavam, que continuavam a obra de destruição.
De outro lado, vindos da Espanha e invadindo até o coração da França, surgiram os sarracenos.
Todas as forças infernais desencadeadas abateram-se sobre a Cristandade ocidental. O desastre foi imenso.
Uma civilização que mal começa a se construir, nascida de um milagre – a conversão dos arianos e dos francos fora simplesmente milagrosa – e no momento em que inicia sua consolidação, sopram ventos tais que a tudo desconjuntam.
O fato é histórico, e Funck-Brentano a ele se reporta, sem contudo poder ver, naturalista que é, o que se passou além da ordem da natureza.
É um dos mais belos episódios da história da Igreja.
Uma civilização que não tivesse os seus recursos sobrenaturais teria sucumbido. Teríamos visto o seu desabamento e o fim da obra.
É fora de dúvida, contudo, que foi este desastre, em grande parte, a causa do nascimento do mais extraordinário regime político e social havido na história do mundo: o feudalismo.
No topo dos morros, refúgios para escapulir dos bárbaros |
De tal modo que os normandos, passando, não tivessem vontade de atingi-los.
Começaram, por outro lado, a fixar culturas e a construir casas por detrás dos pântanos, nos lugares chamados marécage, zonas pantanosas atrás das quais há regiões férteis.
Eram fugas desordenadas, levadas a efeito pelo pavor.
Por isso fugiam, não cidades inteiras, mas grupos de famílias. E cada qual para onde podia.
Em presença da rudeza da natureza e dos adversários que os atacavam de todos os lados, não tendo mais um Estado que os governasse – pois que os reis, fracos e sem nenhum poder, não podiam fazer chegar suas ordens a esses lugares absolutamente recônditos – ficaram reduzidos à célula inicial da sociedade, a família.
Esta foi a organização natural primeira que lhes permitiu sobreviver.
Apareceu então o paterfamilias desta célula que era ao mesmo tempo um pequeno exército, uma pequena unidade religiosa, um pequeno núcleo de produção, constituindo em cada ponto do território um pequeno país.
Em cada um destes grupos sociais, um homem, em geral de envergadura maior, tomava a direção.
Ele era o suporte natural daquela coletividade em debandada.
Era um homem de personalidade muito ampla, dotado do poder de chefiar, da perspectiva dos perigos, da capacidade de organizar, e no qual todos encontravam ponto de apoio.
Ele organizava a vida. Sua prole herdava suas qualidades e herdava suas funções.
Em torno deste homem e desta família princeps começaram então a se aglutinar as famílias dos fugitivos, constituindo pequenas unidades sociais, que eram naturalmente monárquicas e familiares.
Monárquicas pela presença de uma autoridade única inquestionável; familiares porque, em essência, o que havia era o chefe com sua grei, e depois os agregados que ali entravam como pessoas admitidas, toleradas, semi-assimiladas, mas que não constituíam propriamente a essência daquela unidade, que se consubstanciava no chefe e na sua família.
Funck-Brentano (“L’Ancien Régime”, Arthème, Fayard e Cie., Paris, 1937) dá-nos uma descrição em extremo pitoresca – no que ele é exímio – de uma dessas pequenas aldeias de tipo fundamentalmente familiar, que vai se formando.
Ele descreve o pitoresco dos primeiros trabalhos, a derrubada das árvores centenárias, a construção das primeiras choupanas, o primeiro aproveitamento do solo, as primeiras colheitas, as primeiras batalhas, o pequeno exército familiar que sai à luta, em defesa de uma família vizinha ou contra uma horda bárbara que se aproxima, a pequena indústria que vai nascendo das mãos da família.
Começa a produção das armas, as mulheres tecem, aparecem certas criações, como a das abelhas.
Tudo isto faz de cada família um pequeno mundo, e no centro está o chefe.
Onde está o Estado? Quase não existe. Todas as funções que lhe são próprias, exerce-as o chefe da família.
Estamos diante de um dos fatos primordiais da história da humanidade. Quando estas tribos semi-civilizadas foram empurradas para o alto dos montes e para detrás dos pântanos, começou a nascer uma série de estirpes.
Uma estirpe é algo muito diverso de uma família.
O que é uma família? É a conjunção de pai, mãe e filhos. Basta haver pais legitimamente casados para que haja família.
Estirpe, contudo, é bem diverso. A língua francesa, que é muito precisa, fala em source, ou seja, fonte, origem. Eles tanto dizem source de uma família quanto source de um rio.
O que vem então a ser a source de uma família?
O que é um homem-estirpe? Aquele que funda uma estirpe é um homem com personalidade bastante vigorosa para criar uma família que mantém a hereditariedade de seus principais traços morais e físicos.
É um homem que dá aos seus uma formação suficientemente forte para que o impulso inicial que ele comunica a uma determinada ordem de coisas continue depois dele; é um homem que funda uma escola de modo de sentir, de agir, de ser, de vencer dificuldades, que funda um pequeno sistema de vida.
É preciso ter muito mais personalidade para fundar uma estirpe do que para governar um Estado. Isto, qualquer político o faz.
Mas para fundar uma estirpe é preciso ter uma personalidade pujantíssima; e para que ela seja lançada em sentido sadio, é preciso que seja pujantemente sadia.
O admirável neste momento da história europeia é que essas famílias, escorraçadas, banidas, lançadas ao sumo infortúnio, reagem; e formam-se estirpes por toda parte, as estirpes nobres da Europa.
Essas estirpes que nascem, e que vão marcar mil anos de História, nascem no infortúnio o mais atroz.
Pelo seu vigor natural, e sobretudo pela correspondência que seus membros deram à graça de Deus, a família abandonada, isolada, deu origem à família nobre, e o conjunto das famílias nobres deu origem à Europa. Eis a verdadeira história do feudalismo.
Entre os sucessores de Carlos Magno, ficou assentado que os cargos seriam vitalícios e hereditários; isto era já um princípio de feudalismo.
Mesmo no tempo de Carlos Magno ele já nomeava condes, que eram os grandes proprietários de determinada região.
Vê-se que ele já tinha o intuito de apoiar a administração central sobre os valores locais autênticos. Por outro lado, podemos afirmar que um conjunto de fatores que nasciam das entranhas cristãs da sociedade do tempo preparava esta distribuição justa de cargos.
Não há dúvida, pois, que tudo isto concorreu muito para a criação do feudalismo. É uma convergência de circunstâncias. Ele nasceu de tantos fatores, que seria mais certo apontá-lo como resultante da convergência deles.
Nosso Senhor Jesus Cristo constituiu feudalmente, de direito divino, a Sua Igreja.
O bispo é o senhor feudal de que o Papa dispõe.
Seria normal, portanto, que das entranhas da sociedade cristã nascesse naturalmente o feudalismo, não como a única forma possível de organização da sociedade, mas a mais adequada, a mais compatível com a ordem divina.
Almoço na casa do prefeito Rockox. Frans Francken II (1581-1642) |
Eis como o erudito Mons. Delassus nos fala de seu benéfico influxo nos séculos passados:
"Citemos como exemplo algumas linhas extraídas do livro de família (*) de André d'Ormesson, conselheiro de Estado [na França] no século XVII:
Que nossos filhos conheçam aqueles dos quais descendem por parte de pai e mãe, que eles sejam incitados a rezar a Deus pelas suas almas e a bendizer a memória das pessoas que, com a graça de Deus, honraram a sua casa e adquiriram os bens de que eles usufruem.
"Outro pai de família escreve em 1807:
Encontrareis, meus filhos, uma sequência de ancestrais estimados, considerados, honrados na sua região e por todos os seus concidadãos.
Uma existência honesta, uma fortuna mediana, mas uma reputação sem mancha, eis o capital que vem sendo transmitido, durante quatrocentos anos, por onze pais de família que jamais abandonaram o nome que receberam nem a terra em que nasceram.
"Por esta palavra família, portanto, não se entendia somente, como hoje, apenas o pai, a mãe e os filhos, mas toda a linhagem dos ancestrais e a dos descendentes que viriam.
"Para ser assim una e contínua através dos séculos, ela tinha não somente a continuidade do sangue, mas também, se assim se pode dizer, um corpo e uma alma perpétuos.
Quarto de dormir da Idade Média, Museu de Arte Decorativa, Paris. |
"A alma eram as tradições, isto é, as ideias dos antepassados e seus sentimentos, bem como os hábitos e costumes que daí decorriam.
"Uma lei escrita no coração dos franceses, consagrada por um costume multissecular, assegurava a transmissão do patrimônio de uma geração a outra.
"E um tríplice ensinamento:
o primeiro, dado pela conduta dos pais que os filhos tinham diante dos olhos;
o segundo, que lhes era ensinado pelas exortações, conselhos e admoestações que recebiam;
e o terceiro, contido nos escritos, chamados livros de contas ou livros de família, mantidos e atualizados por cada geração. Tudo isso garantia a transmissão das tradições familiares.
"Hoje em dia os livros de família não existem mais, nem mesmo sob a forma de recordações, a não ser nos arquivos dos eruditos.
"O patrimônio só é considerado pelos filhos como um butim a ser dividido. E quantos há, entre nós, que podem citar os nomes de seus bisavós?
"A família não mais existe na França. E é isso, digamo-lo de passagem, que explica os parcos resultados obtidos pelos padres e religiosos que tiveram em mãos, durante meio século, o ensino primário e secundário de mais da metade da população.
"Suas lições não mais encontravam, como base para assentar-se, aquele fundamento sólido que as tradições de família devem inculcar na alma da criança.
"A família real foi decapitada, as famílias aristocráticas foram dizimadas, e aquelas que escaparam ao massacre e à ruína foram colocadas, pelas leis, na impossibilidade de agir e até mesmo de conservar sua posição.
"Enfim, as mesmas leis colocam as famílias burguesas e proletárias na impotência para se elevarem de modo contínuo.
"Nem em Atenas nem em Roma a sociedade se reergueu, uma vez desmoronada sobre si mesma.
"O Cristianismo nos dá os meios de regeneração dos quais as sociedades pagãs não dispunham. Saberemos empregá-los?
"Durante um século, todos os nossos esforços fracassaram. Por quê? Porque sofrendo a ação deprimente das leis e dos costumes, baseadas nos sofismas de Rousseau, nós só temos as vistas postas no indivíduo.
"Atuamos sobre o indivíduo, em vez de considerar a família e orientar nossos esforços para reconstituí-la. A família reconstituída produzirá de novo homens.
"Este é o clamor geral: Não temos mais homens! Se não temos mais homens, é porque não temos mais famílias para produzi-los.
"E não temos mais famílias porque a sociedade perdeu de vista o objetivo da sua própria existência, que não consiste em oferecer ao indivíduo o maior número possível de prazeres, mas em proteger a germinação das famílias e ajudá-las a elevar-se cada vez mais alto.
"O primeiro diretamente, e o segundo por via de consequência. A transmissão do lar e do patrimônio que o contém formava, entre as gerações sucessivas, o vínculo material que as unia uma à outra.
·A esse primeiro vínculo se juntava um outro, que eram a genealogia e os ensinamentos dos ancestrais, consignados no livro em que a genealogia era registrada....
“A situação dos bens da família de Antoine de Courtois, cujo livro de contas foi publicado por Charles de Ribbe, era precedido destas linhas endereçadas aos seus filhos:
Meus bem-amados filhos, nós temos o usufruto dos nossos bens, dos quais somente podemos consumir os frutos. Nossos bens estão em nossas mãos para que trabalhemos sem cessar no sentido de melhorá-los, e depois para que os transmitamos aos que nos prolongarão no curso da vida.
Aquele que dissipa seu patrimônio comete um roubo horrível, pois trai a confiança de seus pais e desonra seus filhos.
Teria sido melhor, para ele e para toda a sua raça, que jamais tivesse nascido.
Tremei, portanto, ante a possibilidade de consumir os bens dos vossos filhos e de cobrir vosso nome de opróbrios.
"Estes pensamentos decorriam naturalmente do pensamento, que todos tinham no espírito, de que o lar e o domínio patrimonial eram o objeto de um tipo de fideicomisso perpétuo, que não era permitido diminuir, e que todos deviam esforçar-se para aumentar”.
NOTA:
(*) — "Le Livre de Famille": Um antigo costume que perdurou especialmente na França, mas também em alguns outros países europeus, consistia em narrativas – normalmente a cargo do primogênito – do dia-a-dia da família (nascimentos, casamentos, mortes, comentários etc.). Visava manter viva a memória das virtudes dos ancestrais nos descendentes, impulsionando-os para o bem, através das leituras e meditações que faziam dos ensinamentos narrados. Por estes livros se reconstituíam a genealogia e a história das famílias.
Mercado medieval, séculos XII-XIII |
Nunca houve tanta atividade, tanta luta, tanta aventura como quando houve remanso.
As ruas das cidades da Idade Média viviam repletas, borbulhando de atividade.
Todos os andares térreos com comércios, anúncios, gente gritando para vender mercadorias, falando alto, brigaria.
As ruas eram movimentadíssimas.
Mas nas casas que bordejavam as ruas, de um lado e de outro, logo na primeira sala se estava psicologicamente a mil léguas da rua.
Não eram como as casas de hoje que têm um janelão que dá para a rua e a pessoa no quarto de dormir se sente na rua.
Mas eram aquelas casas de paredes grossas ‒ parede grossa tem um efeito psicológico tremendo ‒ com umas janelas com onde o peitoril é larguíssimo, com banquinho de um lado e de outro para colocar almofada.
Móveis medievais, Museu de Arte decorativa, Paris |
E um jarrozinho de flor ainda no peitoril da janela.
Porta de casa medieval. Museu de Arte decorativa, Paris |
Os vidros das janelas eram tipo fundo de garrafa, de maneira que o ambiente da casa já ressumia intimidade a poucos centímetros da rua onde está havendo toda aquela barulheira.
Depois, noites calmas e muito recolhidas.
Os bandidos prestavam este serviço: todo mundo tinha medo de sair por falta de iluminação e por causa deles.
Então, fora ruge o perigo, mas dentro, as casas têm portas com dobradiças de metal e trancas aferrolhadas.
De maneira que a pessoa ouve lá fora os bandidos e o guarda que vai correndo atrás deles, se sentido inteiramente seguro em casa.
Dentro, cada um se sente aconchegado, com um carapução e bebendo um chá de losna, com pantufas, junto á lareira que está acesa, enquanto um qualquer vai lendo a história dos antepassados, mesmo nas famílias plebeias. Ou lendo o Evangelho e a vida dos Santos.
Tem-se aquela sensação de tranquilidade...
No silêncio da noite, o guarda passa cantando canções religiosas para avisar todo mundo que ele está por perto...
Eu aprendi em menino uma canção em alemão que dizia:
“Ouvi, senhor, e permiti que Vos cante que nosso relógio deu doze horas. Meia noite. Doze apóstolos no mundo. Ó homem quanta vigilância isto representa para teu coração”.
Tudo isto, ouvido no isolamento da casa onde mora muita gente, e gente intimamente imbricada pela solidariedade familiar, dá uma atmosfera de aconchego, de calor, de placidez, que é propriamente o remanso dentro da vida familiar.
É um remanso gerado pela reta vida estática, e não é uma paradera de morte.
As muralhas protegiam dos perigos e garantiam o aconchego e o remanso da cidade |
Enquanto do lado de fora tem o inimigo, a proximidade do assalto noturno e outros perigos.
As casas populares procuravam proteção junto ao castelo |
O castelo enorme tem encostada uma aldeiazinha a seu lado.
Essa proximidade permite aos aldeões irem correndo para dentro do castelo se houver ataque.
De maneira que todos dormem ao seu lado. O castelo é o grande remanso.
Mas não era moleza. Durante o dia todos trabalham.
Acresce que a guerra era frequente na Idade Média.
Também, os medievais empreendiam viagens enormes, romarias a cidades longínquas que podiam durar meses ou anos, Cruzadas e aventuras da toda ordem.
É o contraste.
A gente deve imaginar assim cidades como a de Bruges tão encantadora com seus canais.
Hoje, ela ficou meio parada.
Distensão que restaura a hierarquia das coisas |
É um remanso cheio de calor humano, cheio de aconchego, e que não é um remanso para a vida inteira, mas uma alternativa para a luta, o trabalho e a aventura.
São ocasiões em que toda a sensação de perigo se afasta, e o homem se distende inteiro.
E, nessa distensão, as coisas retornam à sua verdadeira hierarquia.
O grande aconchego e paz do lar medieval |
Imaginemos, por exemplo, o comerciante que passou o dia inteiro posto na sua loja.
Ele chega a noite em casa, as atividades comerciais estão encerradas, e ele entra num ambiente tão diferente de sua atividade comercial, que fica como que forçado a não pensar mais nela.
Então aí o comércio fica de lado e a hierarquia de valores se restabelece.
Restabelecendo-se, ele é capaz de “distância psíquica”.
Tudo isto é bonito e atraente.
Há nisto um equilíbrio, uma ordem, uma afinidade com a natureza humana, que torna isso belo.
O recolhimento não é o contrário da ação.
O recolhimento é a fonte da ação.
As grandes ações do homem se resolvem nas horas de recolhimento.
Então, o recolhimento assim vivido não é um convite à preguiça.
Ele restaura as forças para continuar a ação, e por causa disto ele é belo.
Todos os acontecimentos que atingem a família real, ou apenas a família senhorial do local — nascimentos, casamentos, etc. — são ocasião para distrações e festividades.
Também as feiras comportam a sua dose de diversões.
É nessas ocasiões que os jograis exibem os seus talentos.
Desde os que recitam fragmentos de canções de gesta ao som do alaúde ou da viola, até aos simples lutadores, que com as suas carantonhas, acrobacias e malabarismos atraem um círculo de pacóvios.
Por vezes, tais antepassados de Tabarin efetuam pantominas, mostram animais inteligentes ou fazem equilíbrio sobre uma corda esticada a alturas impressionantes.
Depois do espetáculo, seja de que gênero for, a distração preferida na Idade Média é a dança.
Não há banquete que não seja seguido por um baile.
Danças dos donzéis nos castelos, carolas aldeãs, rondas em torno da árvore de maio.
Nenhum passatempo é mais apreciado, sobretudo pela juventude, e os romances e poemas fazem-lhe frequentes alusões.
Aprecia-se a mistura de cantos e de danças, e certos refrães servem de pretexto para bailar e cantarolar, tal como as fogueiras de São João para saltar e fazer rondas.
Também as competições desportivas possuem os seus adeptos.
Lutas, corridas, saltos em altura e em comprimento, tiro ao arco, são objeto de concursos nas aldeias, entre os burgos e também entre os pajens e escudeiros que compõem a corte de um senhor.
A caça, ocasião de festins e de regozijo, permanece o desporto favorito.
Bem entendido, justas e torneios são as principais atrações dos dias de festa ou de grandes recepções.
As crianças, como em todas as sociedades do mundo, imitam nos seus jogos os dos adultos, ou fazem intermináveis jogos de escondidas e de malha.
Os divertimentos de interior não faltam, sobretudo o xadrez.
Durante as cruzadas era jogado com fervor, tanto no exército cruzado como no sarraceno, e são numerosos sobre ele os tratados manuscritos existentes nas nossas bibliotecas.
É sabido que o Velho da Montanha, terrível senhor dos Assassinos, presenteou São Luís com um magnífico tabuleiro de marfim e ouro.
Menos sábios os jogos de mesas, como damas ou gamão, que tinham também os seus adeptos.
Eram sobretudo os dados que faziam furor. Vadios e jograis arruinavam-se com eles.
Rutebeuf fez mais de uma vez essa amarga experiência, e conta em termos patéticos as esperanças incessantemente iludidas e o despertar angustioso dos infelizes jogadores arruinados.
Joga-se com os dados também na casa real.
Jogando xadrez. Coleção Plimpton, Add MS 18. |
Em Marselha, aqueles que tinham esse mau hábito eram mergulhados por três vezes num fosso lodoso, próximo do Vieux-Port.
Puniam-se igualmente os que utilizavam dados viciados ou faziam batota de qualquer outro modo.
As crianças jogavam com os ossinhos.
Mais distintos e praticados na sociedade cortês eram os diversos jogos de espírito: adivinhas, anagramas, pedaços rimados.
Christine de Pisan deixou-nos Jogos para vender, pequenas peças improvisadas plenas de encanto e de poesia ligeira, no gênero de Vendo-vos o meu cestinho.
Condições de trabalho dos medievais
A organização dos lazeres é de base religiosa. Todo feriado é dia de festa, e toda festa começa pelas cerimônias do culto, frequentemente longas e sempre solenes.
Prolongam-se em espetáculos que, dados primitivamente na própria igreja, não tardaram a ser deslocados para o adro.
São as cenas da vida de Cristo, das quais a principal, a Paixão, suscita obras-primas redescobertas pela nossa época.
A Virgem e os santos inspiram também o teatro, e toda a gente conhece o Miracle de Théophile [Milagre de Teófilo], que teve uma voga extraordinária.
São espetáculos essencialmente populares, com o povo por atores e por auditório.
E o auditório é ativo, vibrando a um pequeno pormenor dessas cenas que evocam sentimentos e emoções de uma qualidade muito diferente das do teatro atual, uma vez que não apenas o intelecto ou a sentimentalidade entram em jogo, mas também crenças profundas, capazes de transportar esse mesmo povo até às costas da Ásia Menor, por apelo de um Papa.
Como sempre, é parte integrante a nota paródica, levada muito longe.
Palio de Siena |
Nos nossos dias essas excentricidades fariam escândalo, mas os clérigos não veem mal nenhum, e galhardamente tomam parte nelas.
Não existe apenas o teatro propriamente religioso, e sobre as bancadas levantadas na praça representam-se frequentemente farsas e sotias, ou ainda peças de assuntos romanescos ou históricos.
Quase todas as cidades possuem a sua companhia teatral, dentre as quais ficou célebre a dos clérigos da Basoche, em Paris.
Os festejos públicos têm também o seu lugar ao lado das festas da Igreja.
São por vezes magníficos cortejos, que desfilam pelas ruas por ocasião das assembleias e cortes gerais convocadas pelos reis, e se realizam numa ou noutra das suas residências — em Paris, Orleans — fazendo lembrar os campos de março e campos de maio, para os quais Carlos Magno convocara a nobreza do país em Poissy ou Aix-la-Chapelle.
Nessas ocasiões a corte de França, tão simples em geral, compraz-se numa certa ostentação.
Palio de Siena |
Assim acontece nomeadamente por ocasião da coroação de um rei.
As cidades por onde ele passa após as cerimônias de Reims apressam-se a prestar-lhe uma recepção solene, e essa recepção nada tem de rígido nem de pomposo.
É acompanhada de cortejos grotescos, nos quais saltimbancos e folgazões de profissão, misturados com o público, fazem mil números que pareceriam incompatíveis com a majestade real.
Só se decidiu suprimir essas festas e “palhaçadas do tempo de antanho” por ocasião da entrada de Henrique II em Paris.
Eram ocasião de munificências por vezes inauditas, como fontes jorrando vinho, sobretudo sob o reino dos Valois.
Preparavam-se para elas cozinhas ambulantes, sobre as quais as carnes se amontoavam em enormes espetos.
Foi na mesma época que se tomou gosto pelas mascaradas ou bailes de máscaras, um dos quais ficou tragicamente na memória sob o nome de Bal des ardents (Baile dos ardentes).
Palio de Siena |
Tendo o grupo se aproximado imprudentemente de uma tocha, o fogo ateou-se ao seu traje, e ele teria morrido se não fosse a presença de espírito da duquesa de Berry, que o envolveu nas pregas do seu manto, abafando assim as chamas.
O perigo do qual acabava de escapar não deixou de influir sobre o cérebro já fraco do infortunado monarca, e sobre a enfermidade que o iria atingir.
A dona de casa deve estender mais longe a sua solicitude (ver posts anteriores):
“Se um dos vossos serviçais cai em enfermidade, separai todas as coisas de uso comum, pensai nele muito amorosa e caridosamente, e visitai-o várias vezes; e pensai nele ou nela muito curiosamente, avançando a sua cura”.
Ela deve igualmente pensar nos “irmãos inferiores”, nesses animais domésticos que parece terem sido muito mais numerosos então do que nos nossos dias.
Não há miniatura de cenas de interior ou de vida familiar onde não figurem cães saltando ao pé dos donos, rondando em volta das mesas nos banquetes, ou ajuizadamente estendidos aos pés da dona ocupada a fiar.
Em todos os jardins se veem pavões desdobrarem ao sol a cauda luzidia. Assim, o autor do Ménagier recomenda à mulher:
“Mandai cuidar principal, cuidadosa e diligentemente dos animais domésticos, como cãezinhos e passarinhos de gaiola; e pensai igualmente nos outros animais domésticos, pois não podem falar, e por isso deveis falar e pensar por eles”.
As reservas de aves eram numerosas, e cada senhor ou burguês tinha o seu equipamento de caça, ainda que reduzido: um cão ou uma matilha, falcões, gaviões ou marelhões.
Se se gosta dos animais, não se apreciam menos as flores.
Além da rua e da casa, o cenário habitual da vida é o jardim.
Os manuscritos de iluminuras mostram inesquecíveis pinturas, com jardins cercados de muros a meia altura, sempre com um poço ou uma fonte, e um riacho que corre nas margens dos relvados.
Muitas vezes são parreiras, árvores em latadas onde acabam de amadurecer os frutos, ou ainda esses bosques de verdura onde, nos romances, cavaleiros e donzelas se encontram.
O que é notável é que a época não conhece a nossa distinção entre jardim hortícola e jardim floral.
Os canteiros acolhem flores e legumes.
Não restam dúvidas de que se achava agradáveis à vista tanto a baga desabrochada de uma couve-flor, a renda delicada das folhas de cenoura e a abundante folhagem de uma planta de melão ou de abóbora, como uma frisa de jacintos ou de tulipas.
Salve sancte custos. Pequeno livro de orações de Renée de France ornado com flores. |
O que não significa que não se apreciem as flores de puro enfeite, pois a nossa literatura lírica mostra-nos sem cessar pastoras e donzéis ocupados a entrançar “rosários” de flores e de folhagem.
Numerosos quadros e tapeçarias têm um fundo de florzinhas de cores suaves.
Mas se os autores das iluminuras semeiam de flores e pássaros os enquadramentos das páginas dos manuscritos, não deixam de tirar partido das plantas hortícolas, e a folha de alcachofra, estranhamente recortada, serviu de modelo a gerações de escultores, nomeadamente na época da arte flamboyant.
Ana de Bretanha |
Há quem cogite que se pensava que a alma da mulher não era imortal ‒ afirmação gratuitamente preconceituosa e contraditória (se a alma é espiritual e imortal, como a alma feminina não seria? Seria uma alma mortal?).
Felipa de Henault |
Não é estranho que os primeiros mártires cristãos tenham sido mulheres (Santas Agnes, Cecília, Ágata etc)?
Como venerar a Virgem Maria como cheia de graça e considerá-la desalmada?
A historiografia contemporânea simplesmente apagou a mulher medieval.
Isabel de Baviera |
Por exemplo, no plano social.
Dentro dessa perspectiva desapareceram da história personagens como Hilda de Whitby, que no século VII fundou sete mosteiros e conventos, ou quem sabe a religiosa alemã Hroswitha de Gandersheim, autora de dezenas de peças de teatro.
Em Bizâncio, numerosas eram as mulheres na universidade.
Anna Comnena fundou em 1083 uma nova escola de medicina onde lecionou por vários anos.
Eleonora da Aquitânia, enquanto rainha, desempenhou um importante papel político na Inglaterra e fundou instituições religiosas e educadoras.
Nos tempos feudais a rainha era coroada como o rei, geralmente em Reims ou, por vezes, em outras catedrais.
A coroação da rainha era tão prestigiada quanto a do Rei.
A última rainha a ser coroada foi Maria de Medicis em 1610, na cidade de Paris.
Algumas rainhas medievais desempenharam amplas funções, dominando a sua época; tais foram Eleonora de Aquitânia (+1204) e Branca de Castela (+1252).
No caso de ausência, da doença ou da morte do rei, exerciam poder incontestado, tendo a sua chancelaria, as suas armas e o seu campo de atividade pessoal.
Verdade é que a jovem era dada em casamento pelos pais sem que tivesse livre escolha do seu futuro consorte.
Todavia observe-se que também o rapaz era assim tratado; por conseguinte, homens e mulheres eram sujeitos ao mesmo regime.
A herança familiar de pai para filho garantiu a estabilidade e a prosperidade das famílias em todas as classes sociais. Na foto cottage (casa camponesa) em Spring-Garden, Inglaterra. |
Por isso havia sempre um único herdeiro, pelo menos para os feudos nobres. Temia-se a fragmentação que empobrece a terra, dividindo-a ao infinito.
O parcelamento foi sempre fonte de discussões e de processos, além de prejudicar o cultivador e dificultar o progresso material, pois é necessário um empreendimento de certa importância para poder aproveitar os melhoramentos que a ciência ou o trabalho põem ao alcance do camponês, ou para poder suportar eventuais fracassos parciais, e em qualquer caso fornecer recursos variados.
O grande domínio, tal como existe no regime feudal, permite uma sábia exploração da terra. Pode-se deixar periodicamente uma parte em repouso, dando-lhe tempo para se renovar, e também variar as culturas, mantendo de cada uma delas uma harmoniosa proporção.
A vida rural foi extraordinariamente ativa durante a Idade Média, e grande quantidade de culturas foi introduzida na França durante essa época.
Isso foi devido, em grande parte, às facilidades que o sistema rural da época oferecia ao espírito de iniciativa da nossa raça.
O camponês de então não é nem um retardatário nem um rotineiro. A unidade e a estabilidade do domínio eram uma garantia tanto para o futuro como para o presente, favorecendo a continuidade do esforço familiar.
Nos nossos dias, quando concorrem vários herdeiros, é preciso desmembrar o fundo e passar por toda espécie de negociações e de resgates, para que um deles possa retomar a empresa paterna.
A exploração cessa com o indivíduo, mas o indivíduo passa, enquanto o patrimônio fica, e na Idade Média tendia-se para residir.
Se existe uma palavra significativa na terminologia medieval, essa palavra é mansão senhorial (manere, o lugar onde se está), o ponto de ligação da linhagem, o teto que abriga os seus membros passados e presentes, e que permite às gerações sucederem-se pacificamente.
Bem característico também é o emprego dessa unidade agrária que se denomina manse — extensão de terra suficiente para que uma família possa nela fixar-se e viver.
Senhores ou camponeses, a preocupação fundamental é a mesma: preservar e transmitir integra e melhorada a herança dos antepassados Na foto o pequeno castelo de Caithness, na Grã-Betanha |
A manse tem pois uma extensão muito variável conforme o clima, as qualidades do solo e as condições de existência. É uma medida empírica e — característica essencial — de base familiar, não individual, resumindo por si só a característica mais saliente da sociedade medieval.
Assegurar à família uma base fixa e ligá-la ao solo de qualquer forma, para que aí tome raízes, dê fruto e se perpetue, tal é a finalidade dos nossos antepassados.
Pode-se traficar com as riquezas móveis e dispô-las por testamento, porque por essência são mutáveis e pouco estáveis.
Pelas razões inversas, os bens fundiários [N.T.: propriedades rústicas ligadas à terra, à agricultura, que são a base da economia medieval] são propriedade familiar, inalienáveis e impenhoráveis.
O homem não é senão o guardião temporário, o usufrutuário. O verdadeiro proprietário é a linhagem.
Uma série de costumes medievais decorrem dessa preocupação de salvaguardar o patrimônio de família.
Assim, em caso de falta de herdeiro direto os bens de origem paterna voltam para a família do pai, e os de origem materna para a da mãe, enquanto no direito romano só se reconhecia o parentesco por via masculina.
É o que se chama direito de retorno, que desempata de acordo com a sua origem os bens de uma família extinta.
Do mesmo modo, o asilo de linhagem dá aos parentes mesmo afastados o direito de preferência, quando por uma razão ou por outra um domínio é vendido.
A maneira como é regulada a tutela de uma criança que ficou órfã apresenta também um tipo de legislação familiar. A tutela é exercida pelo conjunto da família, e torna-se naturalmente tutor aquele cujo grau de parentesco designa para administrar os bens.
O nosso conselho de família é apenas um resíduo do costume medieval que regulava o arrendamento dos feudos e a guarda das crianças.
Na Idade Média se tem viva a preocupação de respeitar o curso natural das coisas, de não criar prejuízos quanto aos bens familiares, tanto que, no caso em que morram sem herdeiro aqueles que detêm determinados bens, o seu domínio não pode voltar para os ascendentes.
Procuram-se os descendentes mesmo afastados, primos ou parentes, evitando voltar esses bens para os que tiveram antes a sua posse: “Bens próprios não voltam para trás”.
Cristina de Pisan lé para populares |
Por vezes, a transmissão dos bens faz-se de uma forma muito reveladora do sentimento familiar, que é a grande força da Idade Média.
A família (aqueles que vivem de um mesmo “pão e pote”) constitui uma verdadeira personalidade moral e jurídica, possuindo em comum os bens cujo administrador é o pai.
Pela sua morte, a comunidade reconstitui-se com a orientação de um dos filhos, designado portanto pelo sangue, sem que tenha havido interrupção da posse dos bens nem transmissão de qualquer espécie.
É aquilo a que se chama a comunidade silenciosa, de que faz parte qualquer membro da casa de família que não tenha sido expressamente posto “fora do pão e pote”.
O costume subsistiu até ao fim do Antigo Regime, e podem-se citar famílias francesas que durante séculos nunca pagaram o mínimo direito de sucessão. Em 1840, o jurista Dupin assinalava nessa situação a família Jault, que não o pagava desde o século XIV.
Em todos os casos, mesmo fora da comunidade silenciosa, a família, considerada no seu prolongamento através das gerações, permanece o verdadeiro proprietário dos bens patrimoniais.
O pai de família que recebeu esses bens dos antepassados deve dar conta deles aos seus descendentes. Seja servo ou senhor, nunca é o dono absoluto.
Reconhece-se a ele o direito de usar, não o de consumir, e tem além disso o dever de defender, proteger e melhorar a sorte de todos os seres e coisas dos quais foi constituído o guardião natural.
Casas camponesas em Veules-les-roses, Normandia Os antepassados foram piratas, os filhos deitaram raízes da terra e forjaram uma civilização. |
Francos, borguinhões, normandos, visigodos, todos esses povos móveis, cuja massa instável faz da Alta Idade Média um caos tão desconcertante, formavam desde o século X uma nação solidamente ligada à sua terra, unida por laços mais seguros que todas as federações cuja existência se proclamou.
O esforço renovado dessas famílias microscópicas deu origem a uma vasta família, um macrocosmo, cuja brilhante administração a linhagem capetiana simboliza maravilhosamente, conduzindo durante três séculos de pai para filho, gloriosamente, os destinos da França.
É certamente um dos mais belos espetáculos que a história pode oferecer, essa família sucedendo-se em linha direta acima de nós, sem interrupção, sem desfalecimento, durante mais de trezentos anos — tempo equivalente ao que transcorreu desde o rei Henrique IV até a guerra de 1940.
Mas o que importa compreender é que a história dos Capetos diretos é apenas a história de uma família francesa entre milhões de outras.
Esta vitalidade, esta persistência na nossa terra, todos os lares de França a possuíram num grau mais ou menos equivalente, exceção feita a acidentes ou acasos, inevitáveis na existência.
A Idade Média, saída da incerteza e do desacordo, da guerra e da invasão, foi uma época de estabilidade, de permanência no sentido etimológico da palavra.
Isto se deve às instituições familiares, tais como as expõe o nosso direito consuetudinário.
Nelas se conciliam, com efeito, o máximo de independência individual e o máximo de segurança.
Cada indivíduo encontra em casa a ajuda material, e na solidariedade familiar a proteção moral de que pode ter necessidade.
Ao mesmo tempo, a partir do momento em que se basta a si próprio, ele é livre para desenvolver a sua iniciativa, “fazer a sua vida”, nada entrava a expansão da sua personalidade.
O castelo de Rambures é outro exemplo da Normandia. Uma família nobre abriu o que nós chamaríamos uma 'fazenda'. |
Ou também como a experiência pessoal, tesouro incomunicável que cada um deve forjar para si próprio, e que só é válido desde que lhe pertença.
É evidente que tal concepção da família basta para fazer todo o dinamismo e também toda a solidez de uma nação.
A aventura de Robert Guiscard e dos irmãos — filhos-segundos de uma família normanda excessivamente pobre e excessivamente numerosa, que emigra, torna-o rei da Sicília e funda aí uma dinastia poderosa — eis o próprio tipo da história medieval, toda feita de audácia, sentimento familiar e fecundidade.
O direito consuetudinário, que fez a força do nosso país, opunha-se nisso diretamente ao direito romano, no qual a coesão da família se deve apenas à autoridade do chefe, estando todos os membros submetidos a uma rigorosa disciplina durante toda a vida — concepção militar, estatista, repousando sobre uma ideologia de legistas e de funcionários, não sobre o direito natural.
Comparou-se a família nórdica a uma colméia que se desloca periodicamente e se multiplica, renovando os terrenos de colheita; e a família romana a uma colméia que não enxamearia nunca.
Sobre a família “medieval” se disse também que ela formava pioneiros e homens de negócios, enquanto a família romana dava nascimento a militares, administradores, funcionários.
É curioso seguir ao longo dos séculos a história dos povos formados nessas diferentes disciplinas, e verificar os resultados a que chegaram.
A expansão romana tinha sido política e militar, e não étnica. Os romanos conquistaram pelas armas um império e o conservaram por intermédio dos seus burocratas.
Esse império só foi sólido enquanto soldados e funcionários puderam vigiá-lo facilmente. Mas não parou de crescer a desproporção entre a extensão das fronteiras e a centralização, que é o fim ideal e a conseqüência inevitável do direito romano.
O Império desabaria por si próprio, pelas suas próprias instituições, quando o ímpeto das invasões lhe veio dar o golpe de misericórdia.
Podemos opor a este exemplo o das raças anglo-saxônicas. Os seus costumes familiares foram idênticos aos nossos durante toda a Idade Média.
Contrariamente ao que se passou entre nós, eles os mantiveram, e é isso sem dúvida que explica a sua prodigiosa expansão através do mundo.
Casas populares na Alemanha. |
O Renascimento retomou o conceito pagão romano da família e afundou a ordem medieval
Os países germânicos, que nos forneceram em grande parte os costumes que a nossa Idade Média adotou, cedo se impuseram o direito romano.
Os seus imperadores estavam em situação de retomar as tradições do Império do Ocidente. Julgavam que o Direito Romano lhes fornecia um excelente instrumento de centralização para unificar as vastas regiões que lhes estavam submetidas.
Portanto, desde muito cedo foi aí posto em prática, e desde o fim do século XIV constituía definitivamente a lei comum do Sacro Império, ao passo que na França a primeira cadeira de Direito Romano só foi instituída na Universidade de Paris em 1679. Por isso a expansão germânica foi mais militar que étnica.
A França foi sobretudo modelada pelo direito consuetudinário.
É certo que temos o hábito de designar o sul do Loire e o vale do Reno como “regiões de direito escrito”, isto é, de direito romano, mas isso significa que os costumes dessas províncias se inspiraram na lei romana, não que o Código Justiniano tenha aí vigorado.
Durante toda a Idade Média a França manteve intactos os seus costumes familiares, as suas tradições domésticas. Somente a partir do século XVI as nossas instituições, sob a influência dos legistas, evoluem num sentido cada vez mais “latino”.
A transformação se opera lentamente, e começa a notar-se em pequenas modificações. A família francesa remodela-se sobre uma base estatista, que ainda não tinha conhecido.
A maioridade é concedida aos vinte e cinco anos, como na Roma antiga, pois aí o filho encontrava-se em perpétua menoridade em relação ao pai, e não havia inconveniente em que ela fosse proclamada bastante tarde.
Ao casamento — considerado até então como um sacramento, com a adesão de duas vontades livres para a realização do seu fim — vem acrescentar-se a noção do contrato, do acordo puramente humano, tendo como base estipulações materiais.
Ao mesmo tempo que o pai de família concentra rapidamente nas suas mãos todo o poder familiar, o Estado encaminha-se para a monarquia absoluta.
As famílias burguesas geraram verdadeiras obras primas de aconchego defendendo zelosamente a propriedade familiar. Foto: Dornstetten, Alemanha. |
O que Napoleão fez foi apenas concluir a obra, instituindo o Código Civil e organizando o exército, o ensino — toda a nação — sobre o ideal funcionarista da Roma antiga.
O direito de propriedade se torna cada vez mais absoluto e individual. Os últimos traços de propriedade coletiva desapareceram no século XIX, com a abolição dos direitos comunais e de terras baldias.
Podemos, aliás, perguntar se o direito romano, quaisquer que sejam os seus méritos, convinha às características da nossa raça, à natureza da nossa terra.
Poderia esse conjunto de leis, forjadas em todos os elementos por legistas e por militares — essa criação doutrinal, teórica, rígida — substituir sem inconvenientes os nossos costumes elaborados pela experiência de gerações, lentamente moldados à medida das nossas necessidades?
Poderia ele substituir os nossos costumes, que nunca foram nada mais que os nossos próprios hábitos, os usos de cada indivíduo — ou, melhor ainda, do grupo de que cada um fazia parte — constatados e formulados juridicamente?
O Direito Romano descristianizado minou a família
O Direito Romano tinha sido concebido por um Estado urbano, não por uma região rural. Falar da Antiguidade é evocar Roma ou Bizâncio, mas para fazer reviver a França medieval é preciso evocar não Paris, mas a Ilha de França; não Bordéus, mas a Guiana; não Rouen, mas a Normandia.
Não podemos concebê-la senão nas suas províncias, de solo fecundo para belo trigo e bom vinho. É um fato significativo, durante a Revolução Francesa, ver quem antes se chamava manant (aquele que fica) tornar-se o cidadão, pois em cidadão há cidade.
Compreende-se, já que a cidade iria deter o poder político, o poder principal, e tendo deixado de existir o costume, a partir daí tudo deveria depender da lei.
As novas divisões administrativas da França — os departamentos, que giram todos à volta de uma cidade, sem ter em conta a qualidade do solo dos campos que a ela se ligam — manifestam bem esta evolução de estado de espírito.
Nessa época a vida familiar estava suficientemente enfraquecida para que pudessem estabelecer-se instituições tais como o divórcio, a alienabilidade do patrimônio ou as leis modernas sobre as sucessões.
As liberdades privadas, das quais antes tinham sido tão ciosos, desapareciam perante a concepção de um Estado centralizado à maneira romana.
Talvez devêssemos procurar aí a origem de problemas que depois se puseram de modo tão agudo: problemas da infância, educação, família, natalidade.
Eles não existiam na Idade Média, porque a família era então uma realidade que possuía para sua existência a base material e moral e as liberdades necessárias.
Não é um conto de fadas! Nem é Disneyland! O povo vive assim em Rothenburg ob der Tauber, Alemanha, desde a Idade Média. |
Tal é a ideia que evocam — e não apenas nos manuais de história para uso das escolas primárias — as palavras nobreza e terceiro estado.
O simples bom senso basta, no entanto, para dificilmente admitir que os descendentes dos terríveis gauleses, dos soldados romanos, dos guerreiros da Germânia e dos fogosos escandinavos se tenham reduzido, durante séculos, a uma vida de animais encurralados.
Mas há lendas tenazes. O desdém pelos “séculos obscuros” data, aliás, de antes de Boileau.
Na realidade, o terceiro estado comporta uma série de condições intermediárias entre a liberdade absoluta e a servidão.
Nada de mais diverso e mais desconcertante do que a sociedade medieval e as propriedades rurais da época.
A sua origem absolutamente empírica dá conta dessa prodigiosa variedade na condição das pessoas e dos bens.
Roupas usadas em tempos muito próximos dos medievais em Rothenburg ob der Tauber. |
Isto manteve-se até a Revolução Francesa, quando quaisquer terras declaradas livres, ou seja, os alódios, deixaram de fato de existir, já que tudo foi submetido ao controle e às imposições do Estado.
Notemos ainda que na Idade Média, quando um camponês se instala numa terra e nela exerce o seu trabalho durante o tempo da prescrição (isto é, o tempo de duração do ciclo completo dos trabalhos dos campos, desde a lavragem até a colheita), durante um ano e um dia ele é considerado o único proprietário dessa terra, sem ser perturbado.
(Em Portugal, este tipo de camponeses livres chamavam-se herdadores e enfiteutas).
Isto dá ideia do grande número de modalidades que podemos encontrar.
Hóspedes, colonos, lites, servos, são termos que designam condições pessoais diferentes.
E a condição das terras apresenta uma variedade ainda maior: censo, renda, champart, fazenda, propriedade en bordelage, en marché, en queuaise, à complan, en collonge.
Conforme as épocas e as regiões, encontramos uma infinidade de acepções diferentes na posse da terra, com um único ponto comum: salvo o caso especial do alódio livre, há sempre vários proprietários com direito sobre um mesmo domínio.
Tudo depende do costume, e o costume adapta-se a todas as variedades de terrenos, de climas e de tradições – o que afinal é lógico, já que não se poderia exigir daqueles que vivem num solo pobre as obrigações que podem ser impostas, por exemplo, aos camponeses da Beócia ou da Touraine.
O povo tinha propriedade? Sim, e numa abundância e diversidade estonteante
Farmacéutico em Rothenburg ob der Tauber. O povo medieval vivia num nível que não conseguimos imaginar. |
E há em cada uma delas uma infinidade de diferentes condições, desde a do arroteador, que se instala numa terra nova, e ao qual se pedirá apenas uma pequena parte das colheitas, até o cultivador estabelecido numa terra em plena produção e sujeito aos censos e rendas anuais.
Há também os erros sempre possíveis, provenientes das confusões de termos, já que estes cobrem por vezes realidades completamente diferentes conforme as regiões e as épocas; há finalmente o fato de a sociedade medieval estar em perpétua evolução, e aquilo que é verdade no século XII já não o é no século XIV.
O que se pode todavia saber com segurança é que houve na Idade Média, além da nobreza, um conjunto de homens livres que prestavam aos seus senhores um juramento mais ou menos semelhante ao dos vassalos nobres; e um conjunto não menor de indivíduos de condição um pouco imprecisa entre a liberdade e a servidão.
O jurista Beaumanoir distingue nitidamente três estados:
“Nem todos os francos são nobres, porque chamam-se nobres aqueles que provêm de linhagens francas, como o rei, duques, condes ou cavaleiros, e esta nobreza é sempre transmitida pelos pais.
Mas não acontece o mesmo para o homem livre (poosté), porque o que eles têm de franquia lhes vem pelas mães, e qualquer pessoa que nasça de mãe franca é também franca, e tem livre poosté, para fazer o que quiser.
E o terceiro estado é o de servo. Este conjunto de gente não é toda de uma condição, existem várias condições de servidão”. Vemos que não faltam distinções a estabelecer.
Os habitantes das cidades medievais eram livres?
Sim, igual que grande número de camponeses
Vida plácida e culta em Rothenburg ob der Tauber. |
O grande número delas que ainda hoje têm o nome de Villefranche, Villeneuve, Bastide, etc., são para nós uma recordação dessas cartas de povoamento pelas quais eram declarados livres todos aqueles que acabavam de se estabelecer numa dessas cidades recentemente criadas, como eram os burgueses e artesãos nas comunas, e em geral em todas as cidades do reino.
Além disso, um grande número de camponeses é livre, nomeadamente aqueles a quem se chamava plebeus ou vilãos (os termos tomaram o sentido pejorativo muito depois).
O plebeu é o camponês, o trabalhador, pois rutura designa a ação de romper a terra com a relha da charrua. O vilão é de modo geral aquele que habita um domínio, ou villa.
Depois vêm os servos.
A palavra foi muitas vezes mal compreendida, porque se confundiu a servidão própria da Idade Média com a escravatura, que foi a base das sociedades antigas, e da qual não se encontra qualquer rastro na sociedade medieval.
Como refere Loisel:
“Todas as pessoas são livres neste reino, e logo que um escravo atinge os degraus do conhecimento, fazendo-se batizar, é franqueado”.
Por força das circunstâncias a Idade Média teve de buscar o seu vocabulário na língua latina, e seria tentador concluir da semelhança dos termos a semelhança do sentido.
Ora, a condição do servo é totalmente diferente da do escravo antigo: o escravo é uma coisa, não uma pessoa; está sob a dependência absoluta do seu dono, que possui sobre ele direito de vida e de morte; qualquer atividade pessoal lhe é recusada; não conhece nem família, nem casamento, nem propriedade.
O servo medieval, pelo contrário, é uma pessoa, não uma coisa, e tratam-no como tal.
Possui uma família, uma casa, um campo, e fica desobrigado em relação ao seu senhor logo que pague os censos.
Cena da vida burguesa em Rothenburg ob der Tauber. |
A restrição imposta à liberdade do servo é que ele não pode abandonar a terra que cultiva.
Mas é conveniente notar que essa restrição não deixa de ter uma vantagem, já que, embora não possa deixar a propriedade, também não podem tomá-la dele.
Esta particularidade não estava longe, na Idade Média, de ser considerada um privilégio.
De fato, o termo encontra-se numa coleta de costumes, o Brakton, que diz expressamente quando fala dos servos:
“Tali gaudent privilegio, quod a gleba amoveri non poterunt“ (gozam desse privilégio de não poderem ser arrancados à sua terra).
Isto corresponde mais ou menos àquilo que seria, nos nossos dias, uma garantia contra o desemprego.
O rendeiro livre está submetido a toda espécie de responsabilidades civis, que tornam a sua sorte mais ou menos precária: endividando-se, podem confiscar-lhe a terra.
Em caso de guerra, pode ser forçado a tomar parte nela, ou o seu domínio pode ser destruído sem compensação possível.
Quanto ao servo, está ao abrigo das vicissitudes da sorte: a terra que trabalha não pode escapar-lhe, da mesma maneira que não pode afastar-se dela.
Esta ligação à gleba é muito reveladora da mentalidade medieval.
É impenhorável e inalienável, os reveses acidentais da família não podem atingi-la. Ninguém pode tomá-la, e a família também não tem o direito de a vender ou negociar.
Quando o pai morre, a herança de família passa para os herdeiros diretos.
Tratando-se de um feudo nobre, o filho mais velho recebe quase a sua totalidade, porque a manutenção e defesa de um domínio requer um homem, e que seja amadurecido pela experiência.
Esta a razão do morgadio, que a maior parte dos costumes consagra.
Para os arrendamentos, o uso varia com as províncias, sendo por vezes a herança partilhada, mas em geral é o filho mais velho quem sucede.
Notemos que se trata aqui da herança principal, do patrimônio de família.
Em tal circunstância as outras são partilhadas pelos filhos mais novos, mas é ao mais velho que cabe o “solar principal”, com uma extensão de terra suficiente para ele viver com a sua família.
É justo, pois afinal o filho mais velho quase sempre secundou o pai, e depois dele é quem mais cooperou na manutenção e na defesa do patrimônio.
Em algumas províncias, tais como Hainaut, Artois, Picardie e em algumas partes da Bretanha, não é o mais velho, e sim o mais novo o sucessor da herança principal.
Uma vez mais, isso ocorre por uma razão de direito natural, porque numa família os mais velhos são os primeiros a casar, estabelecendo-se então por conta própria, enquanto o mais novo fica mais tempo com os pais e cuida deles na velhice.
Este direito do mais jovem testemunha a elasticidade e a diversidade dos costumes, que se adaptam aos hábitos familiares de acordo com as condições de existência.
De qualquer maneira, o que é notável no sistema de transmissão de bens é que passam para um único herdeiro, sendo este designado pelo sangue.
“Não existe herdeiro por testamento”, diz-se em direito consuetudinário.
Na transmissão do patrimônio de família, a vontade do testamenteiro não intervém.
Pela morte de um pai de família, o seu sucessor natural entra de pleno direito em posse do patrimônio.
“O morto agarra o vivo”, dizia-se ainda nessa linguagem medieval, que tinha o segredo das expressões surpreendentes.
O homem de lei não tem de intervir nisso, como nos nossos dias.
Embora os costumes variem de acordo com as províncias e conforme o lugar, fazendo do mais velho ou do mais novo o herdeiro natural, e embora varie a maneira como sobrinhos e sobrinhas possam pretender à sucessão na falta de herdeiros diretos, pelo menos uma regra é constante: só se recebe uma herança em virtude dos laços naturais que unem uma pessoa a um defunto.
Isto quando se trata de bens imóveis, porquanto os testamentos só dizem respeito aos bens móveis ou a terras adquiridas durante a vida, e que não fazem parte dos bens de família.
Quando o herdeiro natural é notoriamente indigno do seu cargo, ou se é pobre de espírito, por exemplo, são admitidas alterações, mas em geral a vontade humana não intervém contra a ordem natural das coisas.
“Instituição de herdeiro não tem lugar”, tal é o adágio dos juristas de direito consuetudinário.
É neste sentido que ainda hoje se diz, falando das sucessões reais: “O rei morreu, viva o rei”.
Não há interrupção nem vazio possível, uma vez que só a hereditariedade designa o sucessor. Por isso a gestão dos bens de família se acha continuamente assegurada.
Na Idade Média havia guerras de castelo a castelo, uma família entrava em luta com outra.
E isso causa uma sensação misturada de censura e admiração. Não é só de censura, mas também de admiração.
A censura se compreende facilmente: não se guerreia à toa, e sobretudo entre católicos.
Mas, a admiração de onde vem? Não se percebe logo qual é o fundo de admiração.
Ela vem exatamente desse ponto: que haja guerra privada é uma coisa péssima, porque não se compreende que as várias partes de um todo façam guerra entre si.
Mas a guerra de castelo a castelo, de família a família, era uma afirmação da solidariedade dos vários elementos componentes de uma família. Se um membro foi atingido, toda a família se mobiliza e vai combater a outra família, que, também ela, se defende.
Certos historiadores e pregadores de meia tigela vituperam esse costume. Mas, curiosamente, o acham bonito quando o contexto é emoliente e até imoral.
Por exemplo, a atmosfera de Romeu e Julieta, a briga das famílias Capuleto e Montechio entre si, tem um fundo sentimental e por isso é promovida modernamente.
Essa briga é inteiramente antinatural. Duas famílias que fazem parte de uma mesma cidade e combatem entre si é uma coisa mal feita.
Mas, entre os dois extremos:
1) das famílias cujos membros já não têm solidariedade entre si e não se apoiam uns aos outros, e por isso não brigam, ou
2) a das famílias cuja solidariedade chega até o exagero do combate,
Eu prefiro ainda, como abuso menor, o exagero do combate, do que a completa dissolução e liquidação da família, para dar nesta espécie de compoteiras de asfalto que são as sociedades modernas.
A causa admirável é a predominância da vida de família em toda a organização política e social da Idade Média e nas instituições que sobreviveram à Idade Média até a Revolução Francesa.
Em Direito podem-se distinguir duas espécies de pessoas jurídicas: as associações e as fundações. Associação é, pelo menos na prática, um conjunto de pessoas que são ou podem vir a ser coletivamente proprietários de um determinado patrimônio, conforme a sociedade possua ou não bens.
O direito de propriedade de cada um dos membros da associação sobre esse patrimônio é tal, que podem, em determinadas condições, dissolver a sociedade por mútuo acordo, dividindo os bens entre si.
Se quiserem, podem também fazer doação do patrimônio para outra sociedade, e se lhes aprouvesse poderiam até queimá-lo. Isto porque os membros de uma sociedade, coletivamente falando, exercem sobre o patrimônio social a plenitude da propriedade.
A configuração jurídica da fundação, porém, é diferente. Ela é um conjunto de bens, doados ou legados por um instituidor, acrescido muitas vezes por doações sucessivas, e que constituem um só patrimônio.
Mas este patrimônio não pertence a ninguém. Não há quem dele possa dizer-se dono. Há os beneficiários do patrimônio, que são as pessoas em vantagem de quem este último existe.
Há ainda os que dirigem o patrimônio, não como quem é dono, mas como em-pregado, sem retirar para si nenhuma vantagem pessoal. Podem receber um ordena-do, mas não podem enriquecer-se com aqueles bens.
Pelo Direito moderno, quem governa situa-se, em relação ao Estado, como o gestor de uma fundação em relação aos bens desta.
Um presidente de República, ou mesmo um rei, segundo a mentalidade mo-derna, não tem o direito de usar ou de reger os negócios sociais em proveito próprio, mas apenas em benefício do Estado.
Ele percebe um ordenado, como um empregado, presta determinados serviços e se retira. Não tem nenhum direito de propriedade sobre o cargo ou sobre o patrimônio do Estado. Nada há que o ligue a esse patrimônio por espécie alguma de propriedade.
Isto se dá de alto a baixo na escala social. Desde um rei ou um presidente de República, até um contínuo de repartição, todos estão em face do Estado, segundo o pensamento moderno, mais ou menos como os gerentes ou os empregados de uma fundação em face desta.
A característica do direito medieval era inteiramente outra. O governador de um Estado, o senhor feudal, o dirigente da cidade, colocavam-se em face do bem público, não como um simples terceiro, mas de maneira tal que houvesse um certo direito de propriedade sobre a função pública de que eram detentores.
A concepção medieval não era portanto a de um Estado gerido à maneira de uma fundação, e em relação à qual todos são terceiros, mas sim a de um Estado entendido como uma sociedade, na qual todos têm um tal ou qual direito de proprieda-de.
Mas havia os que tinham sobre o Estado uma maior participação na propriedade. Isto se dava, ora graças a um direito histórico, ora a grandes feitos, grandes habilidades, grande dedicação na defesa dos bens públicos, ou ainda a qualquer daquelas razões pelas quais um homem se afirma e sobrepuja os demais.
Esses eram os que constituíam as famílias, e os homens mais importantes e graduados. Eles dirigiam o Estado à maneira de co-proprietários.
O rei e o senhor feudal não eram simples titulares do cargo que ocupavam, mas sim os eminentes, dentre os inúmeros proprietários do reino ou do feudo. Os demais tinham um direito de propriedade menor.
A ideia de tudo se considerar como propriedade era tal que, na casa real, até os empregos eram considerados como sendo de propriedade. Assim é que se chegou a mencionar em alguns documentos uma pessoa “que tinha por feudo a cozinha real”.
Temos disto, no direito brasileiro, uma revivescência muito pálida, mas ainda viva: os cartórios de notas.
O tabelião não é propriamente um funcionário público, mas sim o proprietário do cartório; ele presta determinado serviço ao público, credenciado pelo Estado.
Mas sendo ele o proprietário de seu cartório, sua posição é por isso profundamente diferente da de um funcionário público, que não é o proprietário da repartição onde trabalha, como por exemplo um secretário da repartição de Águas e Esgotos.
Este é apenas um funcionário que dirige uma máquina anônima.
Como é o tabelião para seu cartório, assim era o funcionário na concepção medieval. O reino poderia ser considerado como um grande cartório, onde o rei seria o tabelião-mor; os nobres seriam oficiais graduados e co-participantes dos lucros; e por fim a plebe, que também participaria desses lucros.
Ao contrário, no Estado moderno, monárquico ou republicano, impera o ano-nimato, a pura repartição pública, semelhante à organização de uma fundação, constituindo-se portanto num Estado completamente despersonalizado.
São Luís, rei da França. |
Na Idade Média, quando se fala de Estado, fala-se de dinastia.
E quando se fala de dinastia, fala-se do rei que personifica a dinastia e o Estado. Em relação aos dias de hoje, não poderíamos dizer o mesmo. Tomemos ao vivo um exemplo.
Ninguém poderia dizer, hoje em dia, que a rainha Elisabeth II é a Inglaterra.
Ela é uma inglesa bem situada, de muito prestígio social, simpática, esperta, como uma magnífica atriz num grande palco, vivendo como se fosse rainha, usando jóias dignas de uma antiga rainha.
Mas, na ordem concreta dos fatos, a Inglaterra praticamente não tem rainha.
Na Idade Média, pelo contrário, o Estado era personificado pelo rei e por todos aqueles que participavam do poder real, fazendo assim com que o Estado fosse profundamente pessoal.
Nos dias de hoje ele é inteiramente impessoal. Algo de análogo poderia dizer-se de vários dos Estados não monárquicos da Idade Média.
Na Idade Média, como dissemos, o rei era a personificação de todo o Estado, de toda a sociedade feudal.
Mas quando comparamos o rei com um nobre – o rei da França, por exemplo, com o duque da Normandia ou com o duque da Bretanha – vemos nesses duques uma miniatura do rei.
Eles são, em âmbito menor, tudo aquilo que o rei é num âmbito maior. E se considerarmos um nobre de categoria inferior, ele é uma miniatura do duque da Normandia.
Por esse processo, de miniatura em miniatura, chegaríamos até o último grau da hierarquia feudal.
Poder-se-ia simplesmente afirmar que o rei está para um senhor feudal como um original está, em ponto grande, para a sua miniatura?
Ou há nisto alguma realidade mais profunda? Poder-se-ia dizer que um príncipe de Condé era uma miniatura de rei da França?
O fato de se afirmar que é uma miniatura não mostra algo de mais profundo, que é a existência entre eles de um laço feudal? No que consiste propriamente este laço feudal?
Um rei de França desmembra o seu reino em feudos, e dá a cada senhor feudal uma parcela do poder real, de que ele é detentor.
Desse modo o senhor feudal não é apenas uma miniatura do rei, mas participante do poder do rei.
Ele tem parte no poder real; ele é, por assim dizer, uma extensão do rei. É miniatura no sentido de que é uma parcela, e não porque possua tamanho menor e se lhe pareça.
Essa ligação que o senhor feudal tem com o rei faz dele uma espécie de desdobramento do próprio rei.
Os senhores feudais de categoria secundária têm um desdobramento do poder do primeiro senhor feudal, e assim, de participação em participação, chegamos às últimas escalas da hierarquia feudal.
Partimos de uma grande fonte de poder, que é o rei, e encontramos nas várias escalas da hierarquia feudal participações sucessivas, que se assemelham aos galhos de uma árvore.
O rei seria o tronco, e as várias categorias de nobreza seriam os galhos, sucessivamente menores e sucessivamente mais delgados, até constituir o cimo da copa da árvore, toda alimentada por uma mesma seiva, que é o poder real, do qual tudo emana e para o qual tudo tende.
Entretanto não é absorvente. Pelo contrário, deita seus inúmeros galhos em todas as direções.
Eis aí configurada a ideia da participação do poder feudal.
continuação do post anterior
Estudando essa idéia da participação do poder real na hierarquia feudal, chegamos a uma consideração de outra ordem, relacionando a distinção pessoal de cada homem com a dignidade que lhe confere a função ou o cargo que ocupa.
Quando nos referimos ao rei, dizemos que ele tem uma tal grandeza que chamaríamos de majestade.
Nesse conceito, a majestade é aquele tipo de grandeza que constitui propriamente o seu pináculo, e que corresponde ao poder real.
Abaixo do rei, seria impróprio dizer que um duque, por exemplo, tem majestade. Diríamos que ele tem elevação, alteza, distinção, eminência, mas não majestade.
A alteza, a distinção, a eminência, são o próprio dom da majestade, mas num grau menor.
Do mesmo modo, não podemos nos referir a um conde, a um marquês, como nos referiríamos a um duque, dizendo que tem alteza ou eminência. A expressão seria demasiada.
Poderíamos dizer que um conde tem saliência, relevo, destaque, projeção, mas não alteza ou eminência. É, portanto, mais uma redução.
De um nobre menos elevado, poderíamos dizer simplesmente que tem fidalguia, isto é, ele é um homem um pouco mais saliente, um pouco mais distinto, um pouco mais elevado, mas que já toca na massa geral dos outros homens.
E analisando mais profundamente este conceito, vemos que essas idéias de dignidade, de majestade, de distinção, de elevação, tão freqüentes na Idade Média, podem também aplicar-se, embora com menos plenitude, às pessoas da plebe.
Quando consideramos um chefe de família medieval, ainda que seja um simples camponês, poder-se-ia dizer que ele, ao sentar-se em seu por assim dizer trono, para presidir as refeições de sua numerosa família, o faz com majestade.
Era costume entre os camponeses de certa região da Espanha que o chefe da família, ao sentar-se para presidir a mesa com vinte, trinta, cinquenta pessoas de sua casa, dissesse “comeremos pues”, e todos repetiam “comeremos pues”; após o que recitava a oração, que se dizia em Navarra: “Que o Menino Jesus, que nasceu em Belém, abençoe a pátria, o rei e a nós também”. E iniciava-se a refeição.
Analisando esse quadro, poderíamos dizer com toda propriedade que havia ali a majestade simples do patriarca, do homem rude do povo.
É certamente uma majestade campesina, de lavrador, mas sente-se aí uma grandeza da natureza, de seiva, de terra, que também tem a sua majestade.
Poder-se-ia falar em distinção no povo? Certamente. O próprio camponês espanhol, quanto não tem de distinção e de garbo?
Assim, tudo quanto dissemos da nobreza poder-se-ia dizer analogamente também da plebe, embora com menos plenitude.
Verificamos deste modo que estes conceitos de nobreza e de majestade não repousam numa só classe social, uma vez que o mesmo conceito pode aplicar-se ao menor e ao mais simples deles. “O rei é pai dos pais, e o pai é rei dos filhos” – dizia-se na França antiga. E isto, quer quanto às família nobres, quer quanto às do povo.
Em Jó deitado no seu monturo, limpando sua lepra com um caco de telha, carregando o seu infortúnio com frases inspiradas e sublimes, falando com Deus, apostrofando seus adversários, impressionando toda a posteridade, quanto de majestade não havia!
Ora, como podemos falar de majestade num homem que está reduzido ao último grau de humilhação? Esta majestade que há nele, o que significa? Mando? Poder? Ou é algo diferente e superior a isto, cujo conceito seria preciso procurar?
Aquilo que chamamos de distinção, nobreza, majestade, elevação, e que pode existir em todos os seres racionais, não é outra coisa senão a bondade intrínseca do ser.
Ensina-nos a filosofia que todo ser, enquanto ser, é bom. Esta bondade, esta excelência intrínseca do ser, faz com que ele, pelo fato de ser, seja bom.
E seja bom não apenas no sentido moral da palavra bom, que se condiciona à virtude, mas seja ontologicamente bom. É um ser que tem valor por ser aquilo que é.
A bondade do ser está em que ele seja aquilo que é. Quando o homem inteligente toma conhecimento dessa dignidade intrínseca do ser e mostra-se, pelo seu livre-arbítrio, à altura de sua bondade de ser inteligente, racional e livre, então ele adquire uma elevação que não é comparativa de nada, mas deduzida de sua própria natureza, de seu próprio ser.
Assim, o mais ínfimo dos homens, consciente do que é ser homem, e mais ainda, do que é ser um cristão, e um bom cristão, pode elevar-se a uma verdadeira majestade moral.
Isto é tão verdadeiro, que a Igreja canonizou uma santa que nos serve de exemplo característico: Beata Ana Maria Taigi.
Ela era dona de casa em Roma. Entretanto, andando pelas ruas, o fazia com um porte tão majestoso que as pessoas instintivamente recuavam para lhe dar passagem.
Isto não vinha de ela ter servidores e arrogar-se em grande, pois nesse caso não seria santa.
A Igreja jamais canonizaria uma cozinheira que quisesse fazer-se passar por duquesa. Isto lhe advinha apenas dessa plenitude de dignidade humana, fruto da correspondência perfeita à graça.
E há inúmeros fatos como este na história da Igreja. Santos houve, por exemplo, que por seu simples aspecto barraram o caminho a bárbaros, ou impuseram silêncio aos adversários.
É ilustrativo um episódio da história da invasão dos holandeses protestantes na Bahia, que ousaram arrombar um convento de freiras.
A superiora do mosteiro colocou-se simplesmente em frente a eles, barrando-lhes a entrada, e eles voltaram atrás.
Essa grandeza pessoal, como afirmamos, provém da consciência da dignidade humana levada ao seu mais alto grau.
Quando, porém, além de ter em si a dignidade comum a todos os homens e própria a todo católico, a pessoa acrescenta a isto um outro título – senhora, por exemplo, de um reino, de um Estado, de uma instituição – algo se lhe acrescenta que a engrandece ainda mais.
O mesmo não acontece quando alguém é um mero funcionário de um Reino ou de uma República, pois ao deixar o cargo torna-se apenas um ex-presidente, por exemplo, e nada mais.
É preciso que a pessoa esteja fundida em determinada coletividade humana, e seja pessoalmente a proprietária da direção dessa coletividade, por vinculação pessoal, para que acresça realmente sua pessoa de uma dignidade, que é uma participação da dignidade daquela coletividade humana.
Quanto maior e mais ilustre é essa coletividade à testa da qual está, tanto mais se lhe acrescenta uma nova dignidade. É a dignidade do poder público, fundida na sua pessoa, constituindo-se assim na nota própria da nobreza.
Temos assim, além da nobreza pessoal, moral, a nobreza funcional, que seria essa espécie de encarnação, em um determinado indivíduo, de toda uma coletividade humana e do seu poder.
Príncipes houve, contudo, que não estiveram à altura do cargo que exerceram nem da posição que ocuparam, e por isso ficaram muito abaixo da posição que deveriam ter.
Qual a razão de dizermos que Carlos Magno, com sua pessoa, encheu a história de seu tempo?
É que tinha ele uma personalidade tão inteiramente à altura do cargo que ocupava, que o próprio cargo foi uma decorrência de sua pessoa.
Tornou-se necessária a criação do cargo de imperador, pois ele não cabia na categoria de rei.
A majestade se realiza plenamente num homem quando, além da dignidade da pessoa humana, ele eleva sua personalidade à grandeza que compete à sua função.
A majestade plena lhe advém quando ele encarna o poder supremo, o detém a título de propriedade pessoal e o exerce. Isto é propriamente a majestade.
Poder-se-ia perguntar se é possível ter majestade sem auxílio da graça.
Esta grandeza pessoal, inerente à personificação de uma grande condição, é uma virtude.
Para o homem praticar as virtudes duravelmente e na sua totalidade, precisa necessariamente da colaboração da graça.
A colaboração da grandeza não é necessária, no entanto, para praticar uma ou outra virtude.
Compreende-se portanto que esta virtude possa ser praticada por um homem, sem que para isto tenha colaborado a graça.
Esta é a razão por que encontramos esta majestade realizada a seu modo, e que não é um modo artificial, em grandes personagens pagãos da Antiguidade, como por exemplo o faraó Ramsés II, que é considerado o Luís XIV do Egito.
Contudo, a nobreza, a dignidade, a majestade, alcançam sempre uma realização mais profunda quando resultam de uma colaboração da graça.
Os habitantes de Nantes prestam homenagem a Jean de Montfort e sua mulhar. |
A família é o ponto de partida da vida.
E quando a vida da família se projeta na vida social injeta nela sua vitalidade.
Nasce assim uma sociedade orgânica e viva, por contraposição a uma sociedade inorgânica e morta típica dos totalitarismos modernos.
Para termos uma idéia não apenas teórica, mas viva, do que seja uma sociedade orgânica, seria interessante remontarmos a alguns séculos atrás.
Quando o Império Romano vivia ainda no esplendor de sua glória e na pujança de suas instituições administrativas e jurídicas, era ele sulcado por estradas admiravelmente bem traçadas.
Muitas dessas estradas, ao menos em parte, ainda subsistem em nossos dias.
Mas quando os bárbaros invadiram o Império, a incultura apoderou-se de toda a Europa.
O poderoso e estruturado Estado romano ruiu, as estradas começaram a ser pouco freqüentadas e se deterioraram.
Por assim dizer, cada cidade transformou-se numa ilhota.
A família von Kurneber guiava um vasto conjunto de almas |
Dessa maneira estruturou-se numa economia de subsistência direta, sem comércio.
E por causa disso, também a vida de alma da pequena comunidade foi tomando uma configuração típica e inconfundível.
Em cada lugar começa a aparecer uma arquitetura própria, uma indumentária própria, trajes regionais próprios, os dialetos vão se formando.
Por outro lado, os costumes vão se diferenciando, e nos primórdios dos séculos XI e XII encontramos a Europa toda transformada num mosaico de pequenos mundos avulsos, cada um estuante de vitalidade própria.
Dessa vitalidade podemos bem ter uma ideia se nos reportamos ao que dela ainda existe hoje.
Todo turista que vai à Europa encanta-se em conhecer os trajes regionais, as arquiteturas regionais as danças regionais que são remotos e resistentes resquícios exatamente dessa proliferação de variedades da Idade Média.
Remotos resquícios que nos dão ideia de como em cada lugar, em cada ponto, foi se formando como que uma cultura própria e uma civilização própria.
Tal proliferação de vida estuante, como se vê bem, não era produto de uma planificação, de um decreto, de uma portaria que vinha de cima.
Cada família e região gerava seu estilo de roupas e apresentação. Na foto, vestimentas típicas de uma aldeia da Bretanha, França. |
Eram os indivíduos, eram as famílias que, em coletividades muito pequenas, onde o Poder Público se afirmava pouco, naturalmente comunicavam a sua força vital e a sua influência ao ambiente.
E era, portanto, uma ordem de coisas em que o indivíduo, a família, o costume lideravam muito mais do que a autoridade jurídica propriamente constituída.
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