Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
A palavra “cavaleiro”, na realidade, comporta várias significações diversas, não acentuadas pelos historiadores.
Weiss, em sua “História Universal”, comentando o trabalho de Ischer intitulado “Sobre la caballería y la nobleza hacia fines de la Edad Media”, assim se expressa:
“Ultimamente vem-se descobrindo com frequência que, em muitos conceitos, temos uma ideia falsa das relações entre a nobreza e os homens livres comuns; que na segunda metade do século XV o número dos cavaleiros propriamente ditos era muito menor do que poderíamos pensar, ao passo que o dos cavaleiros de nascimento era muito maior; e que comumente se confunde o emprego das armas com o armar-se cavaleiro, embora só entre os cavaleiros de nascimento este último fato estabeleça uma hierarquia ideal”. (J.B. Weiss, “Historia Universal”- Tipografia la Educación, Barcelona, 1927, vol. V, p. 503)
Este trecho nos revela uma importante distinção acerca do significado da palavra “cavaleiro”.
Segundo Voise, existem duas espécies de cavaleiros:
1) os cavaleiros propriamente ditos;
2) os cavaleiros de nascimento.
O mesmo autor mostra ainda que não se deve confundir a entrega das armas com o ato de “armar-se cavaleiro”. Esta afirmação nos conduziu à conclusão de que a palavra cavaleiro não é sinônima de guerreiro medieval.
Em vista disso, parece defensável a tese de que existe uma diferença fundamental entre exército feudal e Cavalaria.
Por outro lado, Funck-Brentano, em seu livro “Le Moyen Âge”, afirma:
“Deve-se distinguir a Cavalaria da nobreza feudal, mesmo considerando que esta última fora a semeadura daquela, e que quase todos os barões feudais tenham sido armados cavaleiros.
“A Cavalaria constituía uma Ordem, cuja recepção, que em geral recaía sobre fidalgos, se desenrolava numa cerimônia religiosa chamada “investidura”.
“Esta compreendia o “adoubement” conferido por um cavaleiro, o mais das vezes o suserano do feudo, cujo domínio pertencia ao recipiendário.
“Mas a nobreza não era uma condição rigorosamente exigida, e até mesmo servos foram armados cavaleiros plenos.
“Houve também muitos nobres que ficaram escudeiros durante toda a vida, por causa das grandes despesas de guerra que o adoubement acarretava”. (Funck-Brentano, “Le Moyen Âge” - Hachette, Paris, 1947, p. 154)
Existe, portanto, uma diferença entre Cavalaria e nobreza feudal.
Ora, na Idade Média a nobreza feudal estava encarregada de empreender as guerras; ela constituía, por assim dizer, o exército feudal. De maneira que, baseados em Funck-Brentano, podemos já estabelecer que a Cavalaria era distinta do exército feudal.
Léon Gautier, em sua célebre obra “La Chevalerie”, assim se expressa:
“Daí resulta que não só no mundo romano não se encontra uma tal instituição, mas que também a Cavalaria e o feudalismo são coisas distintas, embora frequentemente se faça confusão entre ambas.
“Feudalismo nasce do feudo, que era a recompensa dada àquele que se entregava à proteção do mais forte. Ao senior, que outorgava terras como presente, o vassalo (vessus) devia assistência.
“Quando o seguia na guerra, era porque os vassalos eram necessários para a defesa dos territórios que eles mesmos recebiam. O feudo é uma concessão de terra que envolve uma obrigação militar.
“O sistema feudal, assim entendido, não possui nada de comum com a Cavalaria.
“Esta é uma espécie de corpo privilegiado, onde se entra sob certas condições e segundo um ritual determinado. Nem todo vassalo é necessariamente cavaleiro, e alguns preferem recusar a Cavalaria em virtude das despesas de sua recepção.
“Mais de uma vez foi ela conferida a pessoas do povo que jamais tiveram feudos, não devendo a ninguém o dever feudal, além de ninguém lhes dever o mesmo.
“As canções de gesta citam muitas vezes casos de vilões que se tornaram cavaleiros, como por exemplo o lenhador Varocher, armado pelo próprio imperador, ou os dois servos do conde Amis, que também o foram por causa do desvelo que demonstraram para com seu amo.
“O feudalismo tornou-se hereditário. Entretanto, a Cavalaria jamais o foi. À falta de outros argumentos, este já seria suficiente. O feudalismo foi um sistema econômico e social; a Cavalaria, porém, um ideal”. (Léon Gautier, “La Chevalerie” - Arthaud, Paris, 1959, pp. 31-32)
Estas palavras de Léon Gautier nos fornecem dados muito valiosos. Em primeiro lugar, fica claro que o feudalismo era uma instituição distinta da Cavalaria.
Em segundo lugar, o serviço militar era algo requerido pela simples posse de feudos, ou seja, o exercício militar era algo exigido pelo feudalismo. Em terceiro lugar, todo vassalo devia prestar serviço militar, mas nem todo vassalo era cavaleiro.
Podemos então afirmar que a condição de guerreiro não supõe a condição de cavaleiro.
Todo aquele que possui feudo é necessariamente um guerreiro; tem a obrigação de acompanhar o seu suserano, quando este o convocar para a guerra.
O exército feudal é o conjunto de todos os feudatários em torno de seus suseranos e marchando para a batalha. Eles são militares antes mesmo de serem cavaleiros, isto é, membros da Cavalaria.
O pensamento da Idade Média está penetrado em todas suas partes por crenças religiosas.
De um modo análogo está embebido do ideal cavalheiresco, i. é, do pensamento daquele grupo que vive na esfera da corte e da nobreza.
As crenças religiosas estão postas a serviço deste ideal.
O feito de armas do arcanjo São Miguel contra Lucifer foi ‘a primeira batalha de uma proeza que jamais conseguiu ser igualada’.
O arcanjo é o antepassado da cavalaria ‘milice terrienne et chevalerie humaine’ -- ‘milícia terrena e cavalaria humana’.
A cavalaria é a sucessora terrestre do exército dos anjos em torno do trono do Senhor.
Entre os guerreiros medievais havia muitos que recebiam o nome de “cavaleiros”, embora isso não significasse que eles fossem membros da Cavalaria.
O Pe. Luís F. de Retana, C.SS.R., no livro “San Fernando III y su Época”, falando sobre a sociedade espanhola do século XIII, diz o seguinte:
“Digamos agora algo sobre a contribuição social desta época tão característica, segundo a legislação então vigente. Três classes compunham a sociedade do século XIII: o clero, a nobreza e a classe popular ou estado vulgar.
“Entre a nobreza houve um elemento aristocrático que herdou sua dignidade da nobreza visigótica, e outro que a conquistou por seu esforço pessoal.
“Era função dessa classe: sua cooperação com o rei no governo da nação, na guerra, na defesa e na administração do território, em troca de certos privilégios, cujos princípios eram a isenção de impostos e o domínio senhorial de certas terras.
“Não havia igualdade de classes. Pelo contrário, para efeitos jurídicos, a vida de um nobre valia mais do que a de um plebeu (a do primeiro custava 500 soldos; a do segundo, 300).
“Entre os próprios nobres havia três classes:
– os ‘ricos-homens’, que eram os mais destacados em riquezas, poder e jurisdição, tendo direito a assistir aos conselhos reais, concílios e cortes;
– os ‘infantes’, que eram nobres de nascimento, mas, por não serem primogênitos ou por outro motivo qualquer, não herdavam jurisdição territorial e ocupavam o segundo lugar em relação aos ‘ricos-homens’;
– enfim os ‘cavaleiros’, homens livres ou libertos que, sem haver herdado nobreza ou fidalguia, tinham riquezas para manter cavalo e armas, fazendo da guerra sua profissão.
“Não se devem confundir os simples cavaleiros com os que recebiam a ordem da Cavalaria. ...
“Os régulos de Múrcia e sua terra se entregaram a São Fernando, seu inimigo natural, e não ao Granadino, seu irmão de fé e raça, porque sabiam que aquele, acima dos ódios nacionais, era ‘cavaleiro’ que nunca desrespeitou a palavra dada e nunca alojou em seu coração algum gênero de vilania”. (P. Luís F. de Retana, C.SS.R., “San Fernando III y su Época” - Editorial El Perpetuo Socorro, Madrid, 1941, pp. 242-243).
Por esse texto, vê-se que na Espanha havia o título de “cavaleiro”, que não implicava em fazer parte da Cavalaria. Era um guerreiro que, embora não fizesse parte da Cavalaria, era chamado cavaleiro.
Passamos agora a um novo problema. Não se trata só de saber que o exército feudal é coisa distinta da Cavalaria; trata-se de demonstrar que a palavra cavaleiro se aplica, quer a membros do exército feudal, quer a membros da Cavalaria.
Sobre esse assunto, Paul Lacroix, na obra “Moeurs, Usages et Costumes au Moyen Âge et à l’époque de la Renaissance”, nos fornece os seguintes esclarecimentos:
“Sob os reis da terceira dinastia, o território do reino (de França) compreendia mais ou menos cento e cinquenta domínios, chamados grandes feudos da coroa, e cuja posse estava entregue, por direito hereditário, aos membros da alta nobreza, colocados imediatamente debaixo da suserania ou dependência real.
“Designavam-se geralmente pelo título de barões os vassalos que dependiam diretamente do rei, e cuja maioria possuía castelos fortes.
“Os outros se confundiam sob a denominação de “cavaleiros”, título genérico ao qual se costumava acrescentar o de “bannerets” quando levassem bandeira e pusessem ao serviço do rei uma companhia de homens de armas.
“Os feudos de “haubert” (cota de malhas) deviam fornecer ao suserano cavaleiros cobertos de cotas de malhas e completamente armados.
“Todos os cavaleiros, como o nome indica, serviam a cavalo nas guerras em que tomavam parte.
“Mas é preciso não confundir os “cavaleiros de nascimento” com os que se tornavam cavaleiros depois de um noviciado de armas no castelo de um príncipe ou grande senhor feudal, e menos ainda com os membros das diversas Ordens de Cavalaria que foram sucessivamente criadas, como, por exemplo, os cavaleiros da Estrela, os do Ginete, os do Tosão de Ouro, os do Espírito Santo, os de São João de Jerusalém, etc.” (Paul Lacroix, “Moeurs, Usages et Costumes au Moyen Âge et à l’époque de la Renaissance” - Firmin Didot Frères, Fils et Cie., Paris, 1874, pp. 16-17)
Se aproximarmos este texto do anterior, escrito por Weiss — no qual se lê que “na segunda metade do século XV o número dos cavaleiros propriamente ditos era muito menor do que poderíamos pensar, ao passo que o dos cavaleiros de nascimento era muito maior, e que comumente se confunde a entrega das armas com o armar-se cavaleiro” — chegamos a conclusões muito curiosas.
Com efeito, segundo Paul Lacroix, na França o título de “cavaleiro” era aplicado, quer para certos tipos de possuidores de feudos, quer para os membros da Cavalaria.
Além disso, Lacroix usa a expressão “chevaliers de naissance”, que é exatamente igual a “caballeros de nacimiento”, empregada por Weiss.
Ora, Lacroix utiliza esse termo quando se refere aos possuidores de feudos que não dependiam diretamente do rei, e os separa dos cavaleiros, assim chamados por serem membros da Cavalaria.
Weiss defende que nem todos os “caballeros de nacimiento” eram propriamente cavaleiros, pois não se deve confundir a entrega das armas com o armar cavaleiro.
A consequência é que o título de “cavaleiro” serve para designar pelo menos duas coisas:
a) em primeiro lugar, todos os membros da Cavalaria;
b) em segundo lugar, certos tipos de possuidores de feudos.
Podemos portanto afirmar que a palavra cavaleiro tanto se aplica a certos guerreiros do exército feudal quanto a todos os membros da Cavalaria.
Surge uma pergunta: não constituiriam os cavaleiros, enquanto membros da Cavalaria, um tipo de guerreiro mais bem equipado ou com poderes especiais, uma espécie de generais ou comandantes superiores?
Consideremos separadamente cada uma das duas questões envolvidas nesta pergunta. Em primeiro lugar, vejamos a questão do ornamento.
Antes de mais nada, parece que se o cavaleiro, enquanto membro da Cavalaria, representasse um guerreiro mais bem equipado, então provavelmente um dos requisitos indispensáveis para que alguém recebesse um feudo, ou o conservasse em sua posse, deveria ser o armar-se cavaleiro.
Com efeito, nenhum suserano certamente quereria ter um vassalo que não o pudesse defender da melhor maneira possível, ou que o acompanhasse à guerra com pouco armamento. Ora, esse requisito não era exigido, pois já vimos que Cavalaria e feudalismo são duas coisas distintas.
Além disso, para reforçar o argumento, basta lembrar que se a posse de um feudo estivesse ligada ao fato de o seu possuidor ser armado cavaleiro, então seria legítimo desapropriar esse feudo caso seu dono se recusasse a entrar na Cavalaria.
Ora, isso parece não constar da história judiciária medieval, pois, como já tivemos ocasião de ver, havia muitos vassalos que não entravam na Cavalaria, por causa das despesas da recepção.
Quanto ao problema de os cavaleiros representarem uma função nas batalhas enquanto membros da Cavalaria, também isso não parece sustentável.
Com efeito, um dos deveres dos cavaleiros era o respeito às obrigações feudais. Ora, entre estas havia a obrigação de seguir seus suseranos quando estes os convocassem à guerra.
Portanto esses suseranos eram naturalmente os comandantes de seus cavaleiros, e não o inverso.
A esse respeito, Léon Gautier, en “La Chevalerie”, comentando o 7º mandamento do Código de Cavalaria, assim se expressa:
“O seu objeto (do 7º mandamento) é o rigoroso cumprimento dos deveres feudais. O vassalo deve obediência a seu senhor em tudo quanto não seja contrário à Fé, à Igreja e aos pobres.
“Como já fizemos notar, sem dúvida alguma não se deve confundir Cavalaria e feudalismo, mas no momento em que a autoridade se subdividia, quando os perigos eram mais prementes do que nunca, é justo reconhecer que o feudalismo era necessário.
“O sistema feudal comportava, além disso, deveres recíprocos. O vassalo se obrigava a seguir fielmente o seu senhor, para desfrutar a segurança em que constantemente vivia. Daí a força incomparável do liame feudal”. (Léon Gautier, “La Chevalerie”, pp. 47-48)
Com isso podemos afirmar que o cavaleiro, enquanto membro da Cavalaria, não representava um guerreiro mais bem equipado que todos os outros guerreiros do exército feudal, ou ainda que possuísse maior autoridade que esses mesmos guerreiros.
Parece-nos que os guerreiros do exército feudal tinham o nome genérico de homens de armas. Entre os homens de armas havia as mais diversas hierarquias. Como já vimos, alguns recebiam o título de cavaleiro, embora não pertencessem à Cavalaria.
Ao lado disso, muitos homens de armas, fosse qual fosse o seu grau hierárquico, podiam ser armados cavaleiros, e então passavam a fazer parte da Cavalaria.
Para compreendermos bem a natureza da relação existente entre Cavalaria e o exército feudal, tomemos um fato militar moderno. Em todo exército moderno existe grande número de capitães.
Mas entre esses capitães pode haver alguns que possuem certas condecorações, obtidas em gloriosas campanhas. Essas condecorações não acarretam uma elevação do posto militar desses capitães, que com elas adquirem uma excelência honorífica.
Vejamos agora como isso se aplica à Cavalaria. O exército feudal era formado por homens de armas, muitos dos quais eram armados cavaleiros. Isso representava uma excelência honorífica, e não um poder ou graduação maior em relação aos outros membros do exército feudal.
Podemos talvez formar uma ideia do que seja a Cavalaria, fazendo outra comparação.
Tomemos uma classe de estudantes com muitos alunos. Aqueles que se esforçam mais recebem medalhas, figurando no quadro de honra. Analogamente, os homens de armas mais notáveis e que mais se empenhavam nas lutas mereciam ser armados cavaleiros.
Desta forma, a Cavalaria consistiu, ao menos na época do seu apogeu, numa família de almas propulsoras das virtudes militares, no seio da classe militar. A Cavalaria civil constituía um escol dos exércitos, e a Cavalaria religiosa uma elite inserida nesse escol que era a Cavalaria civil.
As Ordens Militares constituíam a fina ponta dessa elite, e dentre elas a Ordem dos Templários ocupava um lugar de destaque.
Enquanto esta Ordem, como que arquetípica, viveu plenamente sua regra e seus membros estiveram possuídos de alto fervor religioso, toda a Cavalaria, e mesmo a instituição feudal, alcançou seu apogeu.
Decaindo este Ordem, por via de consequência o espírito de Cavalaria começou também a decair. Este processo foi acelerado com a extinção da Ordem dos Templários em princípios do século XIV.
Amorteceu-se o impulso que essas almas propulsoras deveriam manter, e portanto toda a chama da Cavalaria medieval começou a desvanecer-se até se apagar, com a intensificação do processo revolucionário na época do Renascimento e da Pseudo-Reforma.
Chegamos pois a precisar, o mais possível, o significado da palavra “cavaleiro”, enquanto indicando aquele que pertence à Cavalaria:
é um homem de armas que, por suas virtudes naturais e morais, recebe uma distinção honorífica inteiramente pessoal, por isso mesmo não transmissível por hereditariedade, e que lhe confere o poder e o juízo de armar outros homens de armas como cavaleiros.
Esta distinção honorífica acarretava uma série de privilégios para aqueles que pertencessem à Cavalaria. O “Grand Dictionnaire Universel Larousse”, tratando do assunto, afirma o seguinte:
“A dignidade de cavaleiro era tão considerada, que o próprio rei sentia honra em sê-lo. Os cavaleiros sentavam-se à sua mesa, coisa que nem seus filhos, irmãos ou sobrinhos podiam fazer, a não ser quando fossem recebidos na Cavalaria.
“Usavam uma capa de honra, aberta no lado direito e presa por um alfinete no ombro, para deixar o braço livre no combate. Durante toda a Idade Média, somente o cavaleiro podia levar sua espada à cintura; os outros a suspendiam por um talabarte”.
Um outro sinal distintivo dos cavaleiros é o uso de esporas de ouro. Que essa prerrogativa fosse específica dos membros da Cavalaria, é o que faz supor a seguinte afirmação de Paul Lacroix no livro “Les Arts au Moyen Âge et à l’époque de la Renaissance”:
“Para ganhar suas esporas (de ouro) — expressão que ficou proverbial — era necessário fazer alguma ação brilhante, que mostrasse quanto se era digno de ser armado cavaleiro.
“A cerimônia de recepção começava pela entrega das esporas, e aquele que conferia a ordem de Cavalaria, fosse rei ou príncipe, tomava sobre si o encargo de calçá-las no próprio recipiendário”. (Paul Lacroix, “Les Arts au Moyen Âge et à l’époque de la Renaissance” - Firmin Didot Frères, Fils et Cie., Paris, 1874)
Todos esses sinais exteriores serviam para simbolizar aquela excelência honorífica que possuíam os cavaleiros face aos demais homens de armas do exército feudal.
Note-se, no entanto, que essa excelência não importava em ascensão na hierarquia feudal ou em possuir equipamento militar mais completo.
A Cavalaria constituiu uma dignidade de ordem moral, que conferia àquele que com ela fosse honrado uma investidura de caráter praticamente religioso.
Léon Gautier, em importante obra consagrada ao assunto, chegou a qualificar a Cavalaria de “oitavo sacramento”.
Um padre que casasse, e fosse preso vestindo trajes civis, deveria ser conduzido a um tribunal eclesiástico.
O mesmo se passava com o cavaleiro. Por outro lado, ele usufruía vários privilégios consagrados ao clero.
Clérigos e cavaleiros eram homenageados da mesma forma. Nas comparações que fazem entre clero e cavalaria, os autores mais antigos sustentam que ao cavaleiro deve ser imposta a obrigação do celibato.
São três as ordens necessárias para o bom funcionamento de um Estado: O sacerdote, para cuidar do culto e das orações; o trabalhador, para cuidar do campo; e o cavaleiro, para proteger a ambos e sustentar a justiça.
A Cavalaria — diz o autor de Jouvencel — é o que são os braços para o corpo, isto é, dispostos para defender, sempre que necessário, a cabeça (a Igreja) e as pernas (o povo).
A Cavalaria é então um como que sacerdócio, mas de caráter militar.
Se uma jovem dama se tornasse herdeira de um importante domínio, ou se uma mulher ficasse viúva e com terras para administrar, recorria a um cavaleiro para que protegesse seus bens, tomasse a guarda do seu castelo e o comando dos homens de armas. O cavaleiro recebia com isso o título de visconde ou de castelão.
Os cavaleiros eram considerados por todos como um grupo de elite.
Quem podia ser armado cavaleiro?
A primeira condição exigida era, naturalmente, a Fé Católica.
A ideia de se fazer armar cavaleiro a um sarraceno faria explodir de rir. Em seguida era preciso que ele montasse a cavalo, soubesse manejar a lança, a acha e a espada, e devia mover-se livremente sob uma armadura de aço.
Não eram admitidos na Cavalaria aqueles que estivessem desonrados por costumes.
A dignidade de cavaleiro comportava graus:
– os “bannerets” ou porta-estandartes;
– a seguir os “bacheliers”, jovens que após as batalhas eram armados cavaleiros, ou então cavaleiros recém-sagrados;
– finalmente os cavaleiros propriamente ditos. As duas palavras “bachelier” e cavaleiro passam a ser sinônimas.
– No terceiro plano, os “cavaleiros alistados”, isto é, aqueles que se inscreveram mediante salário, a serviço de um mais poderoso.
– Por fim os escudeiros, que não estavam autorizados a lutar com um cavaleiro.
Quando se trata de escrever a um cavaleiro, ou de lhe dirigir a palavra, ele é intitulado Dom, Sire, Messire ou Monseigneur.
Sua esposa é qualificada de Dame ou Madame.
O escudeiro deve ser chamado de Monsieur, e sua esposa de Demoiselle.
Quanto ao uso de roupas de seda, elas eram proibidas aos simples burgueses, bem como aos escudeiros. Apenas os cavaleiros estavam autorizados a vesti-las.
Os escudeiros usavam roupas de lã, sem ornamentos de ouro ou de prata. Somente os cavaleiros eram autorizados a enfeitar seus mantos de branco ou cinza, de arminho ou outra pele de privilégio. As peles de menor qualidade eram para a gente do povo.
Somente os cavaleiros tinham o direito de dourar suas esporas e os arreios de seus cavalos. A mais característica das vestes de uso exclusivo dos cavaleiros era o longo manto escarlate enfeitado de arminho.
Esses mantos de grande luxo eram distribuídos pelo rei aos cavaleiros recém-armados por ele. A cor vermelha tornou-se privilégio da Cavalaria.
Mathieu de Couci (“História de Carlos VII”) descreveu um banquete que foi organizado em Lille, em 1454, pelos desejos do Duque de Bourgogne.
Os cavaleiros que serviam estavam vestidos de damasco, os escudeiros de cetim, e os simples valetes de pano de lã. Mathieu de Couci dá igualmente a descrição de uma justa de três borguinhões contra três escoceses.
Dos três borguinhões, os dois primeiros estavam vestidos de longos mantos enfeitados com pele de marta zibelina. Quanto ao terceiro, seu manto era de cetim negro.
Três cavaleiros franceses, chegando à corte da Espanha, apresentam-se vestidos com mantos escarlates e coroados com flores azuis. Usam luvas brancas e estão montados em grandes cavalos de batalha da Espanha.
As lanças cavalheirescas são feitas de pinho, tília, sicômoro ou faia, de preferência em freixo. A ponta de aço, aguda, é enfeitada com o “gonfalon” — bandeira de guerra muito comprida.
Joinville salienta que os cavaleiros tinham o costume de raspar os cabelos, para não se embaraçarem com eles durante as lutas.
Os cavaleiros se distinguiam uns dos outros pelas armas, onde seus brasões estavam pintados, ou mesmo pela cor do pequeno estandarte que enfeitava sua lança, e da bandeira com a qual o alto do seu capacete podia estar decorado.
Quanto ao brasão dos cavaleiros, era extremamente variável.
Alguns se contentavam com um escudo branco ou de cor lisa, para decorá-lo, após uma sucessão de acontecimentos, com um emblema significativo: uma cruz em memória de uma campanha contra os sarracenos; a reprodução de uma arma conquistada em um torneio; a imagem de uma torre ou de uma fortaleza tomada de assalto; as ameias de um reduto vitoriosamente defendido, etc.
Beato Charles de Blois, duque da Bretanha, igreja Notre-Dame de Bulat-Pestivien |
Sendo o cavaleiro um homem de armas que possui determinadas virtudes naturais e morais, ele pode adquirir essas virtudes depois de um longo noviciado, como se faz nas Ordens Religiosas.
Ou tornar-se digno da Cavalaria porque, num momento excepcional, ele superou-se a si mesmo, demonstrando com isso um grande valor de alma que abarca, em potência, todas aquelas virtudes requeridas para o ingresso na Cavalaria.
Portanto, os homens de armas podem ser armados cavaleiros de duas maneiras:
a) normalmente, através de um noviciado, que compreende as três etapas de pajem, escudeiro e cavaleiro;
b) excepcionalmente, no campo de batalha ou em outras circunstâncias, quando se lhe confere a Cavalaria sem aquela preparação anterior.
Paul Lacroix afirma que “todo cavaleiro põe seu filho a serviço de outro cavaleiro”. (Paul Lacroix, “Vie Militaire et Religieuse au Moyen Âge et à l’époque de la Renaissance”, Firmin Didot Frères, Fils et Cie., Paris, 1873, p. 150)
Esta afirmação nos leva a pensar que havia entre os cavaleiros uma espécie de contrato, pelo qual era possível realizar o noviciado dos cavaleiros.
Somente os cavaleiros tinham poder de armar cavaleiro um homem de armas. Isso poderia significar também que somente os cavaleiros eram capazes de preparar e educar os homens de armas para a recepção na Cavalaria.
De maneira que o serviço de pajem e escudeiro, enquanto significando um noviciado para a recepção na Cavalaria, provavelmente só se fazia nos castelos de senhores que eram cavaleiros, isto é, membros da Cavalaria.
Isto talvez seja um dado novo, pois nos livros de História não se dá realce a esse fato, e acaba-se interpretando que o serviço de pajem e escudeiro se prestava a qualquer senhor feudal, e que era costume da nobreza enviar seus filhos a senhores mais poderosos para executarem tais serviços.
Robert Bruce, herói da Escócia, estátua em Bannockburn |
Somente nobres eram capazes de transmitir aos jovens, desejosos de pertencer à Cavalaria, a mentalidade e as virtudes necessárias para adquirir aquela distinção honorífica.
Portanto, o serviço de pajem e escudeiro, enquanto significando uma etapa preparatória para a Cavalaria, deve ser visto como um verdadeiro noviciado, onde o pretendente à Cavalaria adquire, pelo exercício e pelo tempo, as virtudes naturais e morais que o possam tornar digno de ser membro da Cavalaria.
Esse era o meio normal para se ingressar na Cavalaria. Havia também os meios excepcionais, a que já nos referimos.
O que acabamos de dizer acerca do noviciado da Cavalaria talvez lance uma luz sobre o problema do significado da palavra “escudeiro”. Certamente ocorre com essa palavra o mesmo que com a palavra “cavaleiro”.
“Escudeiro” poderia significar uma etapa na formação de um homem de armas para a recepção na Cavalaria, e poderia significar também um tipo de guerreiro de exército feudal, que possuísse um feudo territorial de natureza especial.
Assim, poder-se-ia levantar a hipótese de que a palavra “escudeiro” teria pelo menos dois significados:
a) designava todos os homens de armas que estavam cursando o noviciado da Cavalaria, ou que já o haviam completado, embora ainda não tivessem recebido o “adoubement”;
b) designava os homens de armas do exército feudal que possuíam feudos especiais.
Para compreendermos melhor o sentido da palavra “escudeiro”, enquanto membro da Cavalaria, lembremos que nas Ordens Terceiras existem os noviços e os irmãos terceiros. Os noviços podem ficar noviços durante muito tempo, até serem aceitos como irmãos.
No caso da Cavalaria, existiram os escudeiros e os cavaleiros. Um cavaleiro provavelmente poderia ficar muito tempo escudeiro, até que fosse armado cavaleiro por um outro cavaleiro.
Todavia, embora não fosse armado cavaleiro, enquanto escudeiro ele pertencia à Cavalaria, isto é, participava de alguma dignidade honorífica pelo fato de ser um pretendente à Cavalaria.
Em abono desta hipótese, poder-se-ia aduzir o seguinte trecho do Grand Dictionnaire Universel Larousse:
“O escudeiro não podia usar esporas de ouro nem roupas de veludo; mas calçava esporas de prata e trajava vestimentas de seda”.
Isso parece indicar que o escudeiro tinha roupas especiais, que simbolizavam o seu grau de dignidade dentro da Cavalaria.
Por outro lado, falando sobre o grau de escudeiro, o mesmo dicionário assim se expressa:
“Da situação de pajem, o jovem fidalgo passava à de escudeiro; para receber esse grau, que lhe era conferido numa grande cerimônia religiosa, devia ter pelo menos 14 anos.
“O jovem, recém-saído do estado de pajem, era apresentado diante do altar por seu pai ou sua mãe, que, com uma vela na mão, compareciam ao oferecimento.
“O sacerdote tirava de cima do altar uma espada com seu cinturão, fazendo a seguir várias bênçãos sobre ela e prendendo-a ao lado do jovem candidato, que até então só a podia carregar”.
Essa descrição nos aproxima das cerimônias requeridas para a recepção de candidatos à Cavalaria, e por isso nos faz supor que escudeiro era um grau na cavalaria, que se adquiriria também através de certos rituais, e que se conservaria até que fosse chamado ao grau de cavaleiro.
Quanto à afirmação de que o escudeiro só podia levar a espada, sem poder fazer uso dela, há uma explicação a ser dada. Parece-nos que isso vigorava até que o escudeiro atingisse a idade de 21 anos.
Segundo Larousse, havia escudeiros que combatiam tal como os cavaleiros. Além disso, Lacroix, ao tratar dos escudeiros em sua obra “Vie Militaire et Religieuse au Moyen Âge et à l’époque de la Renaissance”, diz que os escudeiros, depois de um determinado tempo de serviço junto aos senhores feudais, iam correr o mundo com o título de “poursuivants d’armes” (cadetes de armas), onde acabavam de concluir o seu noviciado de Cavalaria, fazendo atos de bravura e aprimorando os seus conhecimentos e sua educação. (Paul Lacroix, idem, ibidem, pp. 150 ss.)
Portanto, é bem provável que os escudeiros usassem da espada para demonstrarem o seu valor militar, e assim tornarem-se dignos de receber o “adoubement” da Cavalaria.
De maneira que, se isso for assim, os escudeiros podiam ser inclusive adultos que ainda não tivessem recebido o “adoubement”, mas que no entanto pertenceriam à Cavalaria, pois estavam no noviciado preparatório para a mesma.
Ou seja, haveria casos em que um escudeiro ficava esperando durante muito tempo, até que chegasse a ocasião em que ele fosse julgado digno de ser armado cavaleiro.
Finalmente, poderíamos também supor que um fidalgo fosse cavaleiro enquanto membro do exército feudal, e no entanto tivesse o título de escudeiro enquanto membro da Cavalaria.
Esse fidalgo, que seria um “cavaleiro de nascimento”, todavia era escudeiro diante dos demais cavaleiros membros da Cavalaria, e devia ceder o seu lugar quando estivesse na presença daqueles.
Talvez houvesse também o caso de serem armados cavaleiros certos homens livres, que ocupassem no exército feudal o posto de escudeiro. Como membros da Cavalaria, estes seriam cavaleiros, e como participantes do exército feudal seriam escudeiros.
Estas últimas hipóteses, parece-nos, abririam novos horizontes na pesquisa do intrincado problema da Cavalaria. E sobretudo facilitariam a investigação do verdadeiro sentido dos termos “cavaleiro” e “escudeiro”, durante a Idade Média.
O 'adoubement' era a sagração do cavaleiro e marcava seu ingresso na cavalaria. |
O exército feudal compreenderia tropas a cavalo e tropas a pé. Entre as primeiras estariam os diversos tipos de cavaleiros e escudeiros, cujos nomes derivariam da espécie de feudo que possuíssem ou da natureza de jurisdição que exercessem em seus territórios. Seus membros seriam recrutados entre a nobreza feudal.
Nas tropas a pé encontravam-se burgueses e determinados servos da gleba. Eram flecheiros e besteiros. Havia também os que se armavam com maça ou machado.
Qualquer um desses guerreiros podia ser armado cavaleiro, em virtude de seus atos de bravura ou de sua honestidade moral. A princípio, o cerimonial usado para conferir essa dignidade fora simplesmente militar (séc. IX e X).
Com a maior influência da Igreja Católica, começou a surgir o cerimonial religioso, que incluía a ação do sacerdote como parte integrante do “adoubement” (séc. XI).
Finalmente formou-se o cerimonial litúrgico, que atribuía aos membros do clero o direito de armar cavaleiros os homens de armas dignos (séc. XIII).
É bem provável que, no começo, a honra da Cavalaria fosse concedida tendo-se em vista sobretudo o valor militar do candidato. Com a ação da Igreja, modificou-se em parte essa visualização, preferindo-se atender muito mais às virtudes morais do guerreiro do que às suas qualidades físicas.
Não estamos de acordo com aqueles que afirmam que a origem da Cavalaria estaria nos costumes primitivos dos germanos. Os que lhe dão tal paternidade costumam apoiar-se no simples fato de que a entrega da espada era comum entre as tribos bárbaras.
Entretanto, a Cavalaria era uma distinção feita para a recompensa dos guerreiros excelentes. Existe nela uma idéia de que os atos de virtude devem ser simbolizados em alguma instituição.
Ora, a entrega das armas entre os bárbaros, ao que tudo indica, nunca significou uma recompensa por um ato de virtude, mas simplesmente conferia a um homem livre o direito de usar das armas.
Juramento durante a cerimônia de 'adoubement'. |
A nobreza de concepção que se encontra na própria instituição da Cavalaria ultrapassa as possibilidades de realização dos bárbaros. Por isso essa instituição se deve, em última análise, à atuação evangélica da Igreja Católica entre esses povos.
Não queremos afirmar com isso que a Igreja teria previsto e ditado as normas de como seria a Cavalaria.
Sem a atuação da Igreja através da distribuição das graças de conversão a esses povos bárbaros, jamais teria nascido entre eles a ideia de uma tal instituição. Portanto, mais uma vez, podemos dizer que só à Igreja Católica é que devemos a origem mais profunda da Cavalaria.
Evolução da Cavalaria medieval
A Cavalaria assim compreendida sofreu um desenvolvimento orgânico muito importante. Se de um lado ela significava uma distinção às virtudes morais e naturais praticadas por certos guerreiros, de outro lado, por uma espécie de decorrência, ela originou a formação de agrupamentos, onde se praticava o ideal de vida do guerreiro católico.
Daí os dois ramos em que podemos dividir a Cavalaria: o civil e o religioso. A Cavalaria civil seria, de acordo com a exemplificação já vista, comparável a uma condecoração conferida àqueles guerreiros que se destacassem por seus atos de virtude militar ou moral.
A Cavalaria religiosa seria uma espécie de confraria religiosa ou Ordem Terceira, destinada a formar o espírito militar católico naqueles que tivessem inclinação para tal.
A existência dessa segunda espécie de Cavalaria se acha confirmada não só pela criação das Ordens Militares, como também pelo seguinte trecho:
“Guilherme, Conde de Holanda, tendo acabado de ser coroado imperador em Aix-la-Chapelle, foi feito cavaleiro em Colônia, no ano de 1248; porque era somente escudeiro, e as leis do império determinavam que o imperador só devia ser coroado se fosse cavaleiro. Por isto, o rei da Boêmia o fez cavaleiro.
“Eis as cerimônias que se praticaram nessa ocasião. Durante a Missa, celebrada pelo Cardeal Capuccio do Título de São Jorge au Voile d’Or, o Rei da Boêmia, após o Evangelho, apresentou a este Prelado o Conde de Holanda, dizendo-lhe:
‘Nós apresentamos a Vossa Reverência este escudeiro, suplicando muito humildemente que Vossa Paternidade receba sua profissão e seu votos, a fim de que ele possa entrar em nossa Sociedade Militar’.
“O Cardeal disse ao Conde: ‘Segundo a origem da palavra cavaleiro, é preciso que aquele que quer combater tenha grandeza de alma, que seja de condição livre, que seja dadivoso, que seja corajoso e que tenha muita destreza.
‘Que tenha grandeza de alma, a fim de não se deixar abater nas adversidades; que seja de condição livre por seu nascimento; que se faça honrar por sua liberalidade; que demonstre coragem quando comandar e que dê provas de suas destrezas nas ocasiões.
‘Mas antes de pronunciar os votos de vossa profissão, a fim de que não os façais sem saber ao que vos obrigais, escutai as regras da Cavalaria:
‘é preciso ouvir todos os dias a Santa Missa, expor vossa vida em defesa da Fé Católica, garantir da pilhagem a Igreja e seus ministros, proteger as viúvas e os órfãos, evitar as guerras injustas, aceitar os duelos para libertar o inocente, não alienar os bens do império, e viver diante de Deus e diante dos homens sem nenhuma falta.
‘Estas são as regras da Cavalaria, e se as observardes fielmente, obtereis muita honra nesta vida, e gozareis, após vossa morte, da eternidade bem-aventurada.
“Após isto, o Cardeal tomou as mãos do Conde de Holanda, e tendo-as encerrado no Missal onde acabara de ler o Evangelho, perguntou-lhe se queria receber a Ordem da Cavalaria, em nome do Senhor, e fazer profissão dessa Ordem conforme a regra que ele acabava de explicar.
“O Conde, tendo respondido que a queria receber, deu-lhe sua profissão por escrito, que ele pronunciou nos seguintes termos:
“Eu, Guilherme de Holanda, Príncipe da Milícia e vassalo do Santo Império, sendo livre, faço juramento de guardar a regra da Cavalaria, em presença do Senhor Cardeal do Título de São Jorge au Voile d’Or e Legado da Santa Sé, por estes Santos Evangelhos que toco com a mão”.
Rei da Boêmia deu-lhe então um grande golpe sobre o pescoço, dizendo-lhe: ‘Lembrai-vos, em honra de Deus Todo-Poderoso, que eu vos faço cavaleiro e vos recebo com alegria em nossa Sociedade; e lembrai-vos também de que Jesus Cristo recebeu uma bofetada, que d’Ele se riram diante do Pontífice Anás, que foi revestido de uma túnica de louco, que sofreu zombarias diante do rei Herodes, que foi exposto nu e preso a uma cruz.
“Eu vos peço de ter sempre no pensamento os opróbrios d’Aquele cuja Cruz aconselho-vos a trazer sempre’. Após a Missa ter chegado ao fim, saíram da Igreja ao som de trombetas, timbales e fanfarras.
“O Conde fez um desafio à lança com o filho do rei da Boêmia, e o perseguiu com a espada na mão, como para começar a cumprir as funções da Ordem com a qual acabava de ser honrado” (“Histoire des Ordres Monastiques, Religieux et Militaires, et des Congrégations Seculières de l’un et l’autre sexe, qui ont été établies jusqu’à présent” - Nicolas Gosselin, Paris, 1775, vol. IV, p. 44 ss).
Esse trecho confirma a tese de que havia uma Sociedade Militar, na qual se entrava por meio de uma profissão, fazendo-se votos e obedecendo-se a regras. Ora, isto é o que sucede nas Ordens Terceiras religiosas. Fica, portanto, provado que existia uma Cavalaria religiosa.
Quanto às Ordens Militares, basta recordar que muitas delas exigiam de seus membros votos perpétuos de castidade, obediência e pobreza. Os cavaleiros viviam em comunidades, recitando o Ofício Divino e trajando hábitos especiais.
Seria preciso, todavia, estudar melhor a natureza jurídico-eclesiástica das Ordens Militares de Cavalaria. Como o próprio nome indica, parecem estar incluídas na categoria das Ordens Religiosas dentro da Igreja.
O bispo Adhemar de Monteil leva a Santa Lança na vitória libertadora de Antioquia |
Num mundo que surgia das ruínas do paganismo romano, lançou um raio de beleza ideal e criou condições para a maior epopeia que os séculos viram: as Cruzadas.
O cavaleiro nasceu na Igreja Católica e formou-se na sagrada doutrina do Mestre da Galileia, que ele aprendeu a admirar nos coloridos vitrais e nas serenas imagens das catedrais medievais. Em sua alma trazia impressa a aprazível, bondosa e suave imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Ele sabe perfeitamente que a vida do homem sobre a Terra é um combate — Militia est vita hominis super terram (Job, 7,1) — e ao elevar seu olhar até o Senhor Justo e Bom (Sl. 24, 8-9), o Rei paciente e bondoso, generoso e cheio de misericórdia (Sl. 102, 8-10), que passou a vida fazendo o bem, percebe que Ele foi desprezado, injuriado, perseguido, traído, preso, flagelado, ultrajado, e finalmente morto infamemente entre dois vulgares ladrões.
Em face a essa incomensurável injustiça, a alma angustiada do homem medieval repete o brado do leal Clóvis: “Ah, se eu estivesse lá com meus francos!...”
O cavaleiro quer estabelecer aquilo que Nosso Senhor Jesus Cristo veio instaurar.
Daí o grandioso momento em que, reunidos os cavaleiros na praça de Clermont-Ferrand, ao chamado do Bem-aventurado Urbano II, as Cruzadas nasceram!
Inspiradas pelo papado, nutridas da doutrina da Cátedra da Verdade, é nela que melhor encontramos a explicação das mesmas.
As Cruzadas — afirma Inocêncio III — tinham por fim “arrebentar militarmente os bárbaros pagãos e conservar a herdade de nosso Senhor, vingar as injúrias ao Crucificado e defender a terra onde nasceu o Salvador”.
São Cruzadas, em primeiro lugar, contra os infiéis que se instalaram impunemente “naquela cidade em que Nosso Salvador quis padecer, e em outras que os pagãos conspurcam livremente”; mas o papado move também cruzadas contra os hereges que querem destruir a Cristandade, contra os cristãos rebeldes, contumazes na excomunhão ou culpados de crimes eclesiásticos gravíssimos.
São Bernardo de Claraval, incansável pregador das Cruzadas. |
O lema invocado por Celestino III é extraído dos Evangelhos:
“Quem não está com Cristo, como a doutrina evangélica ensina, é um inimigo.
“Praticarias o infame vício da ingratidão, ficarias coberto com o manto da infidelidade e serias réu do crime de condenação eterna se, estando Jesus Cristo, Nosso Senhor, Rei dos reis e Senhor dos senhores, expulso da terra que comprou com seu próprio Sangue, e como que cativo dos sarracenos por causa de seu salutar sinal da Cruz, tu negligenciasses tomar parte na Cruzada.
“Indigno se torna da herança eterna, e bem pode ser excluído da mesma — o que não pode deixar de causar terror — aquele que não acende seu zelo pela Fé Cristã, não se move pelas injúrias feitas a Jesus Cristo e não se abrasa diante da profanação do Santuário e das afrontas feitas ao Redentor. Como poderá ser co-herdeiro com Cristo quem negligenciou prestar-lhe socorro, como varão, quando Ele precisava?”
“Em todas as suas ações — diz o autor de ‘l’Entrée en Espagne’ — o cavaleiro deve se propor um duplo fim: a salvação de sua alma e a honra da Igreja, da qual ele é o guardião”.
Sustentar a Cristandade é um termo que aparece frequentemente em nossos velhos poemas, e que exprime bem o que quer dizer.
Quando o jovem deixa a casa paterna, a última palavra que a mãe lhe dirige é para lembrá-lo deste augusto dever: “Serve a Jesus Cristo e a Santa Igreja”.
Ao mesmo tempo que recebia as armas de cavaleiro, o escudeiro pronunciava, a pedido do celebrante, o juramento de respeitar as leis da Cavalaria e recitava alguma oração no gênero daquela, lindíssima, que se encontra no cerimonial, datado de 1293-1295, do Padre Guilherme Durant, e da qual Marc Bloch nos deu uma excelente transposição:
“Senhor Santíssimo, Pai Todo-Poderoso, Vós que permitistes na terra o uso da espada para combater a perfídia dos maus e defender a justiça, que para a proteção do povo quisestes constituir a Ordem da Cavalaria, fazei com que, dispondo o seu coração ao bem, o vosso servo que aqui está não faça nunca uso desta espada ou de outra para lesar alguém injustamente, mas que se sirva sempre dela para defender a Justiça e o Direito”.
O espírito guerreiro que os animava bem se expressa nesta poesia, habitual entre os cavaleiros medievais:
Si j’avais un pied en Paradis
Et l’autre em mon château,
Je retirerais, pour aller me battre,
Le pied que j’aurais là-haut.
Se eu tivesse um pé no Paraíso
E outro no meu castelo,
Eu retiraria, para ir combater,
O pé que estivesse no Céu. (Léon Gautier, “La Chevalerie”, Arthaud, Paris, 1959, pp. 31-32).
Baudouin de Condé crê que o cavaleiro deve continuar ativo em sua armadura durante todo o tempo que suas forças o permitam.
Até às portas da morte, até o último suspiro, o pensamento e a recordação dos feitos e das batalhas persegue a grande maioria desses homens de armas.
Um deles morre murmurando: “No céu, vou refazer a guerra de espada e de lança”.
Outro moribundo, sem desanimar, pede aos que o estão velando que o ajudem a levantar-se e armar-se, para acertar uma “quintana”. Certo cavaleiro dizia que era preciso haver mouros no paraíso, que lhes dessem ocasião de novos combates.
Numerosos guerreiros, para serem mais garantidamente admitidos na bem-aventurada morada, tomam a precaução de vestir, antes de morrer, hábitos de monge, com os quais serão enterrados.
Vendo-os aparecer em tais vestes, São Pedro não ousará fechar-lhes as portas. Esse uso praticado pela Cavalaria, de se enterrar com hábito de monge, continuou até o fim do século XIV.
Em algumas abadias havia monges especialmente designados para vestir os cavaleiros que exprimissem tal desejo.
Se o cavaleiro morresse em uma batalha, depositava-se sobre a tumba sua bandeira, seu estandarte e o pequeno estandarte de seu elmo. Se ele não tivesse morrido em batalha, era permitido colocar-se apenas duas destas insígnias.
Suvanes, em seu “Tratado sobre a Espada Francesa”, fala do costume de se levar a uma igreja as armas do cavaleiro morto, para serem conservadas no tesouro do templo.
A espada de Santa Joana d’Arc encontra-se na igreja de Santa Catarina de Fierbois. A Santa guerreira considerava um verdadeiro dom celeste a espada que recebera.
Os cruzados que tinham combatido na Terra Santa, ou mesmo aqueles que apenas haviam pronunciado o voto de fazê-lo, eram enterrados com as pernas cruzadas, atitude em que podemos contemplá-los sobre os túmulos, nos claustros dos mosteiros.
O cavaleiro ansiava pelo momento em que pudesse abandonar os torneios e seguir para além-mar, para a Terra Santa. Só assim poderia adquirir a reputação de “batalhador”.
São Luís IX, em sua imensa piedade, não se cansava de dizer que preferia o cognome de “batalhador” ao de “devoto”.
Preguiça e avareza aparecem aos olhos do cavaleiro como inimigos mortais. Por isso, não bastava conquistar um prêmio num torneio ou uma batalha vitoriosa. Ao voltar para casa, ele deveria mostrar-se benevolente para com todos, amável, polido, dar esmolas aos pobres, distribuir suas velhas túnicas aos menestréis.
À valentia, generosidade e cortesia devia juntar-se a modéstia.
Sentimentos religiosos dos cavaleiros
Ir à missa todas as manhãs, sem distinção entre Domingo e dias da semana, era obrigação à qual os cavaleiros se submetiam em consciência.
Durante a leitura do Evangelho, tiravam a espada da bainha e a sustentavam na mão até o fim da leitura, indicando com isto a sua vontade de defender em todas as circunstâncias a Igreja e a Fé.
A oração que parece ter sido a mais divulgada nos séculos XIII a XVI é a seguinte, que se encontra em grande número de livros de horas:
“Alcançai-me o dom desta Graça Divina, que será a protetora e a mestra dos meus cinco sentidos, que me fará cumprir as sete obras de misericórdia, crer nos doze artigos da Fé e praticar os dez mandamentos da Lei, e que enfim me livrará dos sete pecados capitais até o último dia da minha vida”.
Eram orações tradicionais, que nem todos os cavaleiros podiam estar repetindo, se não as decoravam.
Um dos mais renomados cavaleiros franceses era Étienne Vignolles, chamado La Hire, o ativo colaborador de Santa Joana d’Arc. Com o bravo Dunois, ele ia tentar fazer levantar o cerco de Montargis, assaltada pelos ingleses.
Aproxima-se do campo inimigo e suplica a um capelão, tendo em vista os perigos que vai enfrentar, que lhe seja dada a absolvição dos pecados que ele possa ter cometido.
O padre lhe pede que se confesse. Impossível, pela urgência, pois o ataque é iminente. A absolvição pedida é dada, sob a condição de La Hire dizer a Deus uma oração.
Ele junta devotadamente as mãos, e diz em gascão: “Deus, eu te suplico que faças hoje por La Hire o mesmo que Tu gostaríeis que La Hire fizesse por Ti, se ele fosse Deus e Tu fosses La Hire”. E ele estava certo de ter rezado muito bem a Deus.
Roberto de Normandia no sitio de Antioquia |
Gradualmente foi a Igreja dulcificando os costumes e canalizando esse ardor combativo para o serviço da Cristandade.
Até a época das Cruzadas, a defesa do território e do governo legítimo de cada povo era o mais elevado ideal que inspirava o coração dos guerreiros no momento das batalhas.
Mas eis que uma idéia nova, como um astro desconhecido que brilha com fulgor extraordinário no meio da noite, paira sobre a Igreja e atrai todos os olhares.
Tomada de Jerusalém. Emil Signol, Museu das Cruzadas, castelo de Versailles |
O que se passa então no mundo? Qual a grande nova que se diz e se repete no Oriente e no Ocidente?
Qual o objeto desse universal abalo das nações cristãs? A libertação de Jerusalém!
A Cruzada não é senão o mistério da Cruz, meditado e realizado, posto em pensamento e ação em toda a sua amplitude, notavelmente nos seus resultados, e não somente por um indivíduo ou por uma nação, mas por toda a Cristandade, por todo o Corpo Místico de Cristo, crucificado e ressuscitado.
Nosso Senhor Jesus Cristo, segundo Ele mesmo profetizou, devia sofrer, mas também entrar na glória.
Segundo o rei Davi, devia ser perseguido e esbofeteado, saciar sua sede com fel e vinagre, ter os pés e as mãos perfumados, divididas suas roupas e sua túnica jogada à sorte.
Mas para Ele voltar-se-iam todos os confins da terra, adorá-lo-iam todas as famílias dos povos, a Ele caberia o Império, dominaria as nações.
Segundo Isaías, devia ser acabrunhado de opróbrios, quebrantado por nossos crimes.
Mas por isso teria uma longa posteridade, dividiria os despojos dos poderosos, receberia as nações por herança, golpearia a terra com a vara de sua boca, faria habitar juntos o lobo e o cordeiro, o leão e o cabrito, sob a direção de um menino; levantaria seu estandarte aos olhos das nações, e os povos acudiriam a Ele e lhe apresentariam suas homenagens. Seu sepulcro seria glorioso.
Segundo o Discípulo bem-amado, esse Cordeiro, imolado desde a origem do mundo, teria uma espada de dois gumes para ferir as nações rebeldes, governá-las-ia com vara de ferro e calcá-las-ia aos pés no lagar.
Com seus santos e seus anjos, julgaria e castigaria a grande Babilônia, a idólatra Roma, de quem o império anticristão de Maomé não é senão uma versão reduzida.
Seus servidores e seus combatentes seriam distinguidos por seu sinal: o sinal do Filho do Homem, o thau do profeta Ezequiel; o thau que primitivamente tinha forma de cruz; o thau, última letra do alfabeto hebreu, porque Jesus Cristo crucificado é o fim de todas as coisas; o thau que, em hebreu, é a primeira letra da palavra crucificado.
E dessas execuções da justiça divina pelo Cordeiro e seu exército, nunca o sangue dos culpados subiria até o freio dos cavalos.
E a Cruzada, o que é senão tudo isso? Não é a Cristandade inteira reunida sob a cruz, para sofrer e combater?
Batalha das Navas de Tolosa, Espanha. |
Ele as reuniu à voz de um menino; Ele as reuniu sob seus estandarte, a Cruz; Ele as reuniu para sofrer e combater, como Jesus Cristo, que sofreu e morreu para combater e vencer, como Jesus Cristo ressuscitado e triunfante!
Na concepção do cavaleiro medieval, a guerra é o ato pelo qual um povo resiste à injustiça com o preço de seu sangue. Onde houver injustiça, há legítima causa de guerra até a satisfação.
A guerra é, depois da religião, o primeiro dos ofícios humanos: uma ensina o direito, a outra o defende; uma é a palavra de Deus, a outra o seu braço.
“Santo, santo é o senhor Deus dos Exércitos!” O Deus da Justiça, o Deus que manda o forte socorrer o fraco oprimido, o Deus que derruba as dominações soberbas.
O espírito das Cruzadas, a união do heroísmo à devoção, do amor ao próximo à combatividade, da espada à penitência, se mostrou com as mais brilhantes cores nas Ordens de Cavalaria.
Como o caçador, vigilante e armado no cimo da colina, investiga de que lado sopra o vento, assim a Europa, naqueles tempos, de lança em punho e pé no estribo, observava atentamente de que lado vinha a injúria.
Viesse ela de um trono ou da torre de um simples castelo, fosse preciso cruzar mares, campos ou vales, nada detinha seus guerreiros.
Não se avaliava o proveito ou o prejuízo: o sangue se derrama sem preço ou não se derrama, e a consciência o paga na terra de Deus, na eternidade.
A guerra transformou-se não só num serviço cristão, mas ainda num serviço monástico: viram-se batalhões de monges cobrir com o cilício e o escudo os postos avançados do Ocidente.
Os religiosos se animaram com bravura cavalheiresca; os cavaleiros se inflamaram com zelo religioso; o soldado se fez monge na perspectiva da Jerusalém celeste; o monge se fez soldado para libertação da Jerusalém terrestre.
Tomaram e conquistaram pela violência a Jerusalém da Terra, assim como só pela violência se conquista a do Céu.
Tais foram aqueles cavaleiros orantes e monges armados, cujos mosteiros eram fortalezas, que obedeciam com o mesmo fervor ao sino como à trombeta quando os chamava à batalha.
Eram os primeiros no ataque e os últimos na retirada. Enquanto sua espada feria, suas orações e cânticos entusiásticos se elevavam aos céus.
É assim que o grande São Bernardo, não contente em louvar a vida piedosa dos templários, governados por uma sábia regra, lhes traça uma justificação da guerra: Não há lei que impeça ao cristão golpear com o gládio; o que é proibido é a guerra iníqua, é sobretudo a guerra entre os cristãos.
“Matar os pagãos seria até mesmo proibido, se se pudesse impedir de qualquer outro modo suas corrupções e retirar-lhes os meios de oprimir os fiéis.
Mas atualmente é melhor massacrá-los, a fim de que sua espada não permaneça suspensa sobre a cabeça dos justos.
Os cavaleiros de Cristo podem combater os combates do Senhor, podem fazê-lo com toda a segurança. Quer eles matem o inimigo ou morram eles próprios, não devem conceber nenhum receio; padecer a morte por Cristo ou dá-la, longe de ser criminoso, é antes glorioso.
O cavaleiro de Cristo mata em consciência e morre tranquilo; morrendo, trabalha por si mesmo; matando, trabalha por Cristo. E não é sem razão que ele porta um gládio; ele é o ministro de Deus para castigo dos maus e exaltação dos bons.
Quando mata um malfeitor, não é homicida, mas (desculpai a palavra) malicida, e é necessário ver nele o vingador que está a serviço de Cristo e o defensor do povo cristão.
A morte dos pagãos faz a sua glória, porque ela é a glória de Cristo; sua morte é um triunfo, porque ela o introduz na morada das recompensas eternas”.
Entre as frágeis instituições que a Cavalaria tomou sob a sua guarda, havia uma sagrada entre todas: a Igreja. A Igreja, não tendo soldados nem muralhas para defender-se, estivera sempre à mercê de seus perseguidores.
Qualquer príncipe podia tudo contra ela. Mas quando a Cavalaria se formou, a sua preocupação foi proteger a fraca e oprimida Cidade de Deus, cuja liberdade era a própria causa do gênero humano.
Fundada por nosso Senhor Jesus Cristo para perpetuar a obra da Redenção entre os homens, a Igreja era a mãe, a esposa, a irmã de todo aquele que tivesse uma nobre alma e uma boa espada.
Tudo isso fez das Cruzadas um ciclo de operações militares para exaltação da Igreja: contra os mouros no Ocidente, na Sicília e na Espanha; contra pagãos no Norte; contra hereges e antipapas em Toulouse e na Itália.
Assim como em São Francisco de Assis a virtude do desapego dos bens terrenos refulgiu de um modo especial, assim nas Cruzadas brilhou como nunca o caráter militante da Igreja.
Para compreendermos como a Igreja modelou o ideal de cavaleiro, é conveniente entendermos a rudeza dos bárbaros recém convertidos.
O primeiro personagem que podemos focalizar é Raul de Cambrai, personagem de uma canção de gesta. Ele fez tais e tantas, que sua mãe acabou por amaldiçoá-lo; mas enquanto ela o amaldiçoava, ele ria.
Um dia ele chega diante de um mosteiro de religiosas e dá esta ordem aos seus soldados:
“Armareis minha tenda no meio da igreja, fareis meu leito diante do altar e poreis meus falcões sobre o crucifixo de ouro”.
Ele queima a igreja, queima o mosteiro, queima as religiosas, entre elas a mãe de seu mais fiel vassalo e amigo.
Enquanto as chamas crepitam, ele se banqueteia à farta no próprio local do sacrilégio, sendo ainda por cima um dia de jejum. Ele desafia a Deus, ergue a cabeça contra Deus.
Esse era um barão feudal do século X, uma matéria-prima muito rude com a qual a Igreja irá trabalhar. Aqueles homens eram ainda semi-bárbaros, semi-selvagens.
Já eram cristãos, naturalmente batizados, mas o bárbaro germano a todo momento aparecia neles, e aparecia com grande ênfase, com grande entusiasmo, e com certa frequência os dominava.
Virando a página, ouviremos um cronista do século XIII, em 1220, falando de um cavaleiro chamado Walter de Birbach.
Vestido de ferro, com sua rija espada na mão, em grandes lides de guerra, esse cavaleiro tinha uma tão grande devoção a Nossa Senhora, que se consagrou a Ela, rendendo-Lhe preito de homenagem como uma rainha terrestre.
Antes das lides, o cavaleiro assiste a Missa. Os Milagres de Notre Dame (KB 71 A 24, fol. 123r). |
Esse é o tipo ideal, generalizado, do barão feudal dos séculos XII e XIII. Uma mudança enorme, portanto, entre essas duas figuras.
Como é que se fez em tão pouco tempo uma mudança tão grande? Quem é que fez isso? Certamente a Igreja, o Espírito Santo, mas foi sobretudo através da Cavalaria.
A Cavalaria, como quase tudo na Idade Média, não surgiu por decreto, não surgiu pela ação de um homem determinado, não surgiu nem mesmo em certo lugar.
Embora a Igreja não ame a guerra, na Idade Média ela viu os valores que existem na profissão militar.
Viu também a necessidade que havia de guerras, naquele momento histórico: antes lutar contra os maus cristãos semi-bárbaros, antes lutar contra os bárbaros declarados, antes lutar contra os muçulmanos.
Por isso ela fez nascer em toda a Europa, pela sua ação lenta, orgânica, pela ação do Espírito Santo, o desejo de dar um ideal e um freio àquela fogosidade germânica. E depois apresentou aos soldados medievais, aos homens medievais, esse ideal que é a Cavalaria.
Podemos definir assim as coisas: Cavalaria é a forma cristã da condição militar, e o cavaleiro é o soldado cristão. Ela é mais um ideal do que uma instituição.
Assim, a Igreja ofereceu ao soldado uma lei precisa e um fim preciso. A lei precisa foi o Código da Cavalaria, uma lei especial adequada para aquele gênero de vida, para aqueles homens. E o fim preciso era alargar na Terra as fronteiras do Reino de Deus.
Vemos numa crônica medieval que, para protestar adesão à Fé de Jesus Cristo, era costume em França que os cavaleiros, durante a leitura do Evangelho na Missa, tivessem sua espada nua.
Com isso eles queriam dizer: “Se for preciso defender o Evangelho, nós aqui estamos”.
Carlos Magno coroado imperador pelo Papa Leão III |
Ela tratou então de satisfazer esse gosto medieval pelo concreto, pelo encarnado, pela manifestação sensível dos valores das realidades espirituais.
Ela tratou de concretizar também a Fé, os sentimentos cristãos. Por isso formou o direito feudal. Profundamente concreto, o direito feudal é concebido para indivíduos reais, bem personalizados, não para homens abstratos de uma sociedade teórica.
Repousa sobre a fidelidade, sobre a reciprocidade. Um vassalo liga-se a um senhor por um laço pessoal, torna-se seu homme-lige, obrigando-se ao serviço da hoste, ao serviço militar, e em troca esperando do suserano subsistência e proteção.
Esse laço pessoal é proclamado em uma cerimônia, um rito. Mais um sinal sensível, mais uma coisa concreta, que torna mais concreta ainda essa realidade.
O vassalo se ajoelha diante do senhor, com as mãos em suas mãos, o cinturão de que pende a espada aberto — em sinal de confiança, de entrega, de abandono — declara-se seu homme-lige e lhe entrega seus bens.
Por sua vez, o suserano beija o vassalo em sinal de afeição e proteção. Depois devolve-lhe os bens ou dá-lhe bens, se o vassalo não os tinha.
É a investidura do feudo. Encerra-se o contrato pelos juramentos sobre o Evangelho. Coisa profundamente concreta, com simbolismo muito sensível.
A Igreja tomou esse laço feudal e o transpôs para o domínio espiritual. O cavaleiro é o vassalo de Deus, Suserano supremo.
Na divisa de Santa Joana d’Arc — “le Christ qui est roi de France” — Nosso Senhor é um soberano, cercado da corte dos santos. Deus como rei, como suserano, tem a sua corte, a corte dos santos, servido pela milícia dos anjos. São expressões muito significativas.
Pelo rito de se armar cavaleiro, este resolve deliberadamente empenhar sua vida, sua pessoa, seus bens, todos os seus atos, ao serviço desse suserano de poder e majestade infinitos.
Como dizia a regra dos templários:
“Servir militarmente, combater com pureza de ânimo, pelo sumo e verdadeiro Rei”.
Expressão tipicamente feudal e militar. Assim como se combate pelo senhor feudal, também se combate pelo Senhor eterno.
O serviço da hoste, obrigação do vassalo, no caso da Cavalaria é a defesa da Santa Igreja, feudo de Deus, e também do povo, dos fracos, dos pobres, dos órfãos, das viúvas — dos pobres miúdos, como se dizia em Portugal na Idade Média.
O cavaleiro presta esse serviço com o coração inteiramente leal.
Eduardo, dito o príncipe negro, ajoelhado ante seu pai o rei Eduardo III, 1390, British Library, MS Nero D VI, f31 |
Os poetas medievais fizeram a descrição do cavaleiro ideal. Ele deve ser “franco de coração e belo de corpo, generoso, doce, humilde e pouco falador”.
Reunia as grandes qualidades exigidas dos nobres da época: valentia, generosidade, espírito empreendedor e circunspecção; era retilíneo, austero e puro.
Em qualquer circunstância, o cavaleiro deve defender a Fé. Deste juramento de manter a Fé de Jesus Cristo originou-se o costume de na Missa os cavaleiros desembainharem a espada durante a leitura do Evangelho. Isto significava a disposição de derramar o sangue em defesa da doutrina da Igreja.
Esta magnífica instituição contribuiu muito para o florescimento de uma das virtudes essenciais da época: o senhor deve amar os seus vassalos, e os vassalos devem amar o seu senhor.
Assim, segundo a expressão de um famoso historiador, “jamais o preceito divino ‘amai-vos uns aos outros’ penetrou de modo tão profundo o coração dos homens”.
Mesmo fora dos limites da Cristandade, corria a fama das extraordinárias virtudes do cavaleiro medieval.
Em certa ocasião, quando São Luís IX se encontrava prisioneiro dos muçulmanos, um de seus chefes, chamado Octai, pediu a São Luís, sob ameaça, para ser armado cavaleiro.
Tal era a admiração que os mais ferozes inimigos da Civilização Cristã tinham por tão magnífica instituição.
A fidelidade é a virtude cavalheiresca por excelência, a primeira obrigação do vassalo em relação a seu superior.
O cavaleiro tem uma obrigação de honra de servir a seu divino Suserano, sem fraqueza nem felonia. Paralelismo sempre perfeito com o direito feudal, com a organização feudal.
Eduardo, o príncipe negro, Príncipe de Gales, 1453, Bruges Garter Book. |
O brasão que adotamos para o “Legionário”, depois para o “Catolicismo”, lembra um desses fatos.
Quando o rei Artur foi combater contra os romanos pagãos que dominavam a França — os medievais não tinham a mínima ideia de cronologia, não tinham nenhum escrúpulo do anacronismo —, teve que se bater em duelo singular com um gigante, Floros.
Estava quase sendo vencido, quando Nossa Senhora apareceu, e com o forro de arminho de seu manto cobriu a cabeça do rei Artur. Os golpes do gigante pegavam no manto de arminho e não causavam mal ao rei Artur.
O pagão, por sua vez, ficou apavorado com aquela visão, e acabou sendo derrotado. Aquela orla de arminho que temos em nosso brasão lembra esse fato.
Também aqui está o paralelismo perfeito com o direito feudal. É o senhor que se obriga a defender, a proteger, a sustentar o vassalo. O Senhor aqui é Deus. Nossa Senhora é a dama e Rainha do cavaleiro.
Os cavaleiros franceses tinham um grito tradicional: “Nossa Senhora, velai para que eu não me torne perjuro”. Eles entregavam a Nossa Senhora sua fidelidade, sua primeira obrigação.
De fato, embora a Cavalaria não tenha existido só na França, quando se fala de Cavalaria tem-se que falar sobretudo da França, onde ela floresceu de maneira especial.
Jean de Salisbury, um bispo inglês do século XII, diz que estabeleceu-se o solene costume de que no dia em que um homem era revestido do símbolo militar, em que ele era armado cavaleiro, votasse sua pessoa ao serviço do altar e da espada, isto é, prometesse a Deus ligar-se a Ele pelo laço do serviço doméstico.
Serviço doméstico tem aí o sentido de feudal. Quando é armado cavaleiro, o homem se liga a Deus por um laço feudal.
Há muitas outras expressões que denotam a mesma coisa. Assim, na Idade Média os cavaleiros eram chamados os homens de Deus, no sentido em que se falava dos homens do rei da França, dos homens do imperador da Alemanha, etc.
Santa Joana d’Arc, embora mulher,
foi uma das mais perfeitas flores da Cavalaria |
A Canção de Antioquia fala de “les Jésus chevaliers” — os cavaleiros de Jesus.
E Santa Joana d’Arc — que, embora mulher e vivendo já numa época de decadência, foi uma das mais perfeitas flores da Cavalaria — levou talvez à suma perfeição a encarnação do ideal de Cavalaria.
Na primeira entrevista que ela teve com Baudricourt em Vaucouleurs, ela se referiu a Deus com expressões tão nitidamente feudais, que Baudricourt pensou que ela se referisse a um outro senhor feudal.
Desconfiado de uma traição, perguntou a ela: “Mas quem é o teu senhor?” Ela respondeu: “Meu senhor é Deus”.
Ela tinha de tal forma essa noção do laço feudal para com Deus, da transposição do laço feudal para as relações entre Deus e o homem, que as expressões de que se servia davam margem a essa confusão, até mesmo para um homem experimentado na linguagem feudal, como era Baudricourt.
Sabemos também que, em sinal de submissão, havia o costume de o vassalo estender ao suserano o seu guante, sua luva de ferro.
Na Chanson de Roland, agonizando em Roncesvales, Roland “reclame le pardon de Dieu”, estende o guante de sua mão direita e São Gabriel o recebe.
São alguns pequenos exemplos que mostram como isso é real. A Cavalaria é o laço feudal — o regime feudal, por assim dizer — transposto às relações entre Deus e o homem.
Para resumir, poderíamos dizer que, para converter esses rudes varões semi-bárbaros (o melhor autor da Cavalaria chama-os de peles vermelhas, tão selvagens quanto os índios da América, faltando-lhes apenas o cocar e as flechas), a Igreja ofereceu-lhes o ideal cristão do soldado.
Ofereceu-lhes um fim preciso, um código de procedimento especial, tudo isso encarnado, concretizado, revestido de forma sensível pela transposição do laço feudal para a vida sobrenatural. Isso é a Cavalaria.
Bayard defende a ponte sobre o Carigliano. Henri-Félix-Emmanuel Philippoteaux (1815-1884) |
Não é como a vida religiosa, que tem um legislador como São Bento, que dá à instituição uma lei, uma organização, uma estrutura jurídica.
De fato já existia aquele ideal, aquela inspiração, mas um homem, um fundador, dá uma organização para aquilo.
Com a Cavalaria não acontece assim. Não houve um Papa que em determinado momento excogitasse “como seria uma coisa interessante instituir a Cavalaria”, publicasse depois uma encíclica “De militia christiana”, e a partir desse dia começasse a existir a Cavalaria.
Tanto não é assim, que nós não podemos nem saber quando é que começou a Cavalaria. Podemos dizer onde ela floresceu mais perfeitamente, mas não onde que ela começou. Tudo se passou organicamente.
O impulso do Espírito Santo, agindo em toda a Europa por meio da Igreja e dos santos, vai fazendo nascer esse desejo de um ideal e o vai elaborando aos poucos. Não surgiu de uma reunião de pessoas, de um concílio ou de uma universidade para estudar e deliberar sobre o assunto.
Na Idade Média quase tudo se fez assim. É um corpo sadio que vai florescendo e vai dando frutos. Funck-Brentano tem sobre isso uma expressão muito bonita:
“Alguém pode não gostar da civilização medieval, do regime feudal medieval. Mas uma coisa que ninguém pode fazer é criticar aquela sociedade por ter dado aqueles frutos.
Cavaleiro em oração.
Vitral na Universidade de Yale.
“Ela só podia ter dado aqueles frutos. Uma sociedade como aquela tinha que dar nascimento àquelas instituições, tinha que florescer com aquelas instituições.
“A coisa surgia como o fruto nasce da árvore. A pessoa pode não gostar de maçã, mas ninguém pode criticar uma macieira porque dá maçãs”.
A Cavalaria era de fato um ideal de santidade e uma via de santificação. Diante daqueles homens rudes, bárbaros e semi-selvagens, a Igreja teve a linda audácia de não fazer concessões.
Ela tomou um ideal de santidade e o ofereceu a eles.
Analisando o ideal da Cavalaria, vemos que era um altíssimo ideal de santidade. Não era um ideal de levar uma vida bem direitinha, bem honestazinha, mas era propriamente um ideal de santidade.
Quem encarnasse perfeitamente o espírito da Cavalaria ficava santo. E a Cavalaria também era uma via de santificação.
Porque seguindo aquele termo, seguindo aquelas normas da Cavalaria, embebendo-se daquele espírito da Cavalaria o homem se santificava, mais ou menos como se santifica quem segue a regra de uma determinada Ordem religiosa.
Quem se embeber no espírito da Ordem de S. Domingos, por exemplo, não dá para não tornar-se um santo.
Se a Cavalaria era um ideal de perfeição, também era um colégio. Em algumas recepções de cavaleiros, aquele que os recebe diz: “Eu vos recebo com vontade, com satisfação, no colégio da Cavalaria”.
Isso pode dar margem a confusão, pois era colégio enquanto o conjunto de todos aqueles que foram armados cavaleiros. Era uma corporação, um conjunto, ligados todos pelo mesmo ideal.
Pelo fato de terem sido armados cavaleiros através de um rito sensível, também havia uma certa solidariedade entre eles. Mas sem uma estrutura jurídica.
Isso é uma coisa muito bonita também na Cavalaria, porque aqueles homens eram armados cavaleiros, e a todo momento estavam lutando um contra o outro.
Era normal um cavaleiro que vivesse num feudo e depois fosse lutar por outro, mas sempre havia uma certa solidariedade. Eles sempre sentiam no outro uma marca especial, que os levava a ter uma mútua estima.
O rei da França Francisco I é armado cavaleiro por Bayard. Louis Ducis (1775 - 1847) , Museu do castelo de Blois. |
Mas sentiam alguma coisa de comum com ele, embora fosse já uma época de decadência da Cavalaria. Quando ele foi preso, o rei da Inglaterra Henrique VIII o recebeu com uma consideração muito especial.
Trataram-no com toda a cortesia, sentindo uma certa solidariedade com um homem que, como eles, tinha recebido a ordem da Cavalaria, e como eles — ou muito melhor que eles, aliás — servia os ideais da Cavalaria.
Outra coisa característica na Cavalaria é que todos são iguais. Um pequeno fidalgo, como é Bayard na Cavalaria, é igual a um rei.
É por isso que, logo depois da batalha de Marenga, Francisco I, rei de França, se faz armar cavaleiro por ele, que era pequeno fidalgo de uma nobreza muito modesta.
Mas como ele é cavaleiro, pode armar cavaleiro o rei, e não há nisso nada de contrário às leis. Na Cavalaria, os únicos graus que existem são as diferenças de valor.
A Cavalaria teve seu máximo florescimento nos séculos XI e XII. Começou a decair no século XIII, e tal decadência se estendeu por toda a Europa civilizada.
Cavaleiros |
Em princípio, todos. Não era preciso ser nobre para ser admitido na “Sainte Ordre de Chevalerie”, na “Santa Ordem da Cavalaria”.
E há exemplos históricos de homens da plebe, do povo, que foram recebidos cavaleiros. Mas a classe que por excelência tinha obrigação de se sacrificar, e tinha como característica o espírito de sacrifício, era a nobreza.
Sendo a Cavalaria uma dedicação plena ao serviço de Deus, aqueles que mais naturalmente podiam se entregar a isso eram os nobres, que tinham para tal uma inclinação quase natural, uma inclinação de classe.
Por isso a grande maioria dos cavaleiros eram nobres. As outras classes tinham como obrigação cuidar mais de seus próprios interesses, dentro de limites legítimos.
O lavrador tinha obrigação de cuidar do seu campo, o burguês tinha obrigação de administrar os seus negócios.
O dever de um burguês muito piedoso, muito cristão, era administrar bem seus negócios, ao passo que o dever de estado do nobre era a dedicação a um serviço em favor do bem comum, tanto mais quando se tratava do serviço de Deus.
Outra questão é saber em que lugar se era recebido na Cavalaria. Podia ser na igreja ou no campo de batalha. Francisco I, como vimos, foi armado cavaleiro no campo de batalha.
Monumento a Bayard em sua cidade natal. Poncharra. Saboia, França. |
Em que idade se era recebido cavaleiro? Quando se entrava na maioridade. Ao entrar na maioridade — 15, 16, 17 anos — já se estava inteiramente pronto para ir combater, para lutar sozinho contra 30 muçulmanos, comandar um exército, etc., e então já se podia ser armado cavaleiro.
Como é que se ingressava na Cavalaria? Através de um rito, de uma cerimônia, que na França se chamava “adoubement”. Em Portugal se chamava “armar cavaleiro”.
Houve três espécies de ritos: o militar, o religioso e o litúrgico.
O mais antigo foi o militar. Consistia essencialmente em um cavaleiro — porque só um cavaleiro podia armar outro cavaleiro — cingir a espada ao recipiendário, dando-lhe na ocasião um violentíssimo tapa na nuca, tão forte que o rapaz precisava tomar cuidado para não ir ao chão.
Ricardo III, rei da Inglaterra, faz cavaleiro a Enrique de Monmouth, futuro Enrique V, Jean Creton, 1405. |
O Infante D. Henrique, por exemplo, foi armado cavaleiro no campo de luta, após haver demonstrado extraordinária bravura na conquista de Ceuta.
Na véspera o candidato jejuava, confessava-se e passava a noite em oração — a “vigília das armas”. Na manhã seguinte realizava-se a cerimônia. A ordenação do cavaleiro chegou a ser considerada como se fosse um oitavo sacramento. De fato, a Igreja chegou a considerá-la um sacramental.
A cerimônia iniciava-se com a celebração da Missa. No sermão, o sacerdote lembrava as obrigações que o cavaleiro iria assumir. Dava também a bênção às armas que lhe seriam entregues.
Geralmente o padrinho era o senhor feudal da região. O senhor, tendo o futuro cavaleiro de joelhos diante de si, pergunta-lhe se está disposto a assumir os compromissos que a condição de cavaleiro impõe. Recebe então o juramento de obediência e entrega a armadura peça por peça, e finalmente a espada.
A espada era algo grande e sagrado, nessa época da Idade Média em que os heróis não tinham outra profissão a não ser a guerra.
Desde o dia em que era armado, o cavaleiro não podia descingi-la nunca, mesmo quando estivesse sem armadura.
Com ela vivia, com ela junto a si dormia, e com ela entre as mãos morria e era sepultado. A espada era a arma nobre do cavaleiro cristão, e a poesia medieval é incansável na descrição das espadas.
A palavra espada, no idioma nórdico, procede da mesma raiz que “chama” ou “incêndio”, pois a espada brilha na noite e brilha nos combates à luz do sol.
Na espada do cavaleiro ninguém podia tocar, a não ser ele. Osculando e tocando a sua cruz, fazia os seus juramentos.
E quando a legava a um herói ou a seus filhos, era o presente mais apreciado do mundo. A espada tinha um nome com o qual devia passar à História, se se tornasse gloriosa.
Foi assim que o romance e a poesia imortalizaram a “Tizona” e a “Colada” do Cid, a “Joyeuse” e a “Hauteclaire” de Carlos Magno e a “Gleste” (esplendor) de Siegfrid.
A razão pela qual a espada era a principal arma do cavaleiro é que ela significava e condensava em si as quatro principais virtudes do cavaleiro: cordura, fortaleza, equanimidade e justiça.
A cordura estava representada no punho da espada, que o homem tem encerrado na mão, e, enquanto assim o tiver, está em seu poder levantá-la, baixá-la, ferir ou deixá-la.
No pomo da espada (parte onde se prende o espigão da lâmina) está toda a fortaleza da espada, já que ela sustenta o punho, a guarda e a lâmina.
Carlos Magno aduba um cavaleiro, manuscrito século XIV. |
Por todas estas razões, os antigos determinaram que os cavaleiros trouxessem sempre a espada consigo.
Na França, a cerimônia culminava com a “colée”, isto é, o senhor feudal dava um grande golpe no pescoço do candidato, e lhe dizia: “Sois preux” — sê valente. Depois da cerimônia o novo cavaleiro era aclamado pelos circunstantes.
Estamos na vigília de Pentecostes. É ativa a animação no castelo paterno. No salão, a mãe põe em ordem a veste branca, os esporões dourados, a túnica de arminho que o candidato a cavaleiro vestirá no dia seguinte.
Na estrada há um grupo de jograis e menestréis. Vindos para festejar o acontecimento, executam uma música e outros números: harpa, cambalhotas, brincadeiras. E há pobres pedindo esmolas.
No salão, depois que pobres e jograis são dispensados, são arrumadas grandes cubas, amplas tinas destinadas ao banho do futuro cavaleiro e dos companheiros que devem com ele receber o sacramental: primos, amigos, pares.
À saída do banho, os jovens são vestidos com um tecido branco, seda espessa chamada sami, enfeitada de ouro e prata, sobrepondo-se a esta uma túnica de arminho com tons de cinza.
Do castelo toma-se o caminho da igreja, onde os aspirantes à Cavalaria velarão durante toda a noite, na galeria do coro.
Ao amanhecer, assistem à Missa, e depois voltam ao castelo, onde os espera um grande festim: um bom desjejum, pão branco e caça.
A mãe já providenciou para seu filho calça e camisas brancas, “mais brancas que o granizo e que as flores de abril”.
As madrinhas, que vieram para assistir à sagração, vestem no candidato seu capuz e seu manto. Ao sinal dado pelas trombetas muito agudas, começa a solenidade.
Sobre a erva verde da pradaria em torno dos muros do castelo, os servidores estenderam tapetes. O noviço é ali vestido com suas armas pelos seus padrinhos. A cota de malha de aço se ajusta como uma camisa.
O pai se aproxima e prende com gesto grave a espada ao lado esquerdo de seu filho. O jovem sente um estremecimento de emoção. Oscula a empunhadura da espada que contém uma relíquia, e seu pai lhe diz em voz baixa: “Curva a cabeça”.
Em seguida aplica sobre a nuca do rapaz um forte golpe, com a palma da mão direita. Feliz e comovido, ele abraça seu filho, transformado agora em seu par, seu igual, pelo menos no que diz respeito à Cavalaria. A cerimônia da sagração propriamente dita está terminada.
Os escudeiros conduzem até o rapaz seu cavalo. “Ele é bom cavaleiro?” — perguntam-se os espectadores. De um salto ele se põe na sela, rito que se tornou obrigatório. E da multidão se ouvem estas palavras circularem em murmúrio: “sem estribo!”
Outros escudeiros trazem ao novo cavaleiro as últimas armas com as quais ele deve se munir: o grande escudo abaulado, que cobre um homem da cabeça aos pés, no qual estão pintados leões dourados.
A lança está enfeitada na ponta com uma longa e fina bandeira de guerra de três pontas, que descem até o elmo do jovem guerreiro, quando está na posição correta.
O novo cavaleiro deve testemunhar aos olhos da multidão o seu valor ao cavalgar. Uns instantes de galope: é o “ensaio”.
Ferdinando I, rei de Napoles recebe a homenagem de um cavaleiro. De Majestate, Juniano Majo, 1492. |
O poste é endireitado ao sinal dado: “Levantarei a quintana!”
O jovem põe seu cavalo a correr, mantendo sua lança firme. Quando ao primeiro golpe a quintana é derrubada com sua ferralha, a multidão aplaude.
“Um belo golpe de quintana — observa L. Gautier — bastava, no século XII e XIII, para um homem ter sucesso, da mesma forma como em nossos dias o saber falar bem”.
Ranald de Montauban, sob o olhar de Carlos Magno, ao primeiro golpe põe ao chão o poste armado.
O imperador exclama, entusiasmado: “Tu serás senescal no meu Império!” Um homem assim tão vigoroso e decidido, tão hábil para abater uma quintana, não podia ser menos, para administrar um Estado.
Lê-se na Ordem de Cavalaria:
“O cavaleiro deve se mostrar ao povo do lugar, a fim de que este saiba que ele é cavaleiro recentemente formado e ordenado, e que está obrigado a defender e a manter elevada a honra da Cavalaria.
“Desse modo nosso cavaleiro saberá se conter antes de praticar o mal, e ainda, pela grande vergonha que será infligida àquele que desserve a Cavalaria. Assim, ele evitará o mais possível de atentar contra a Ordem de Cavalaria”.
Ao entardecer, no castelo, nova seção de música, que encerra a longa festa. Enfim o “vin du coucher” (vinho para deitar-se) e pôr-se na cama.
Depois a Igreja sentiu que era muito pobre essa maneira de ingressar na Ordem da Cavalaria, e surgiu então o adoubement religioso, que constava essencialmente, como o outro, em cingir a espada, e geralmente também na “accolade”.
Mas isso era precedido por um ato religioso, que era a vigília de armas.
O recipiendário passava a noite em oração na igreja, depois assistia à Missa (aliás, eles tinham o costume de assistir à Missa todos os dias), confessava-se e comungava, e um sacerdote benzia a espada.
Mas o “adoubement” propriamente dito — a cerimônia de cingir a espada — ainda era feito por um outro cavaleiro, um leigo.
Juramento durante a cerimônia de 'adoubement'. |
Como a Igreja é amiga da tradição, até hoje os Pontificais Romanos imprimem essa rubrica, exatamente como no século X, quando surgiu a maior parte dessas orações.
Começava a cerimônia com a vigília de armas. O rapaz passava a noite na igreja, diante do Santíssimo Sacramento, ajoelhado ou de pé. Não podia sentar-se.
Ali ele rezava, pedindo a graça de que necessitava para cumprir a altíssima missão que lhe ia ser confiada. Na manhã seguinte, na catedral, vinha o bispo, com todo o esplendor e respeito de que se cercava um bispo na Idade Média, e celebrava o pontifical com todo o esplendor da liturgia romana.
Depois, ainda revestido dos paramentos sagrados, ele se sentava no meio do altar, no consistório, e o recipiendário se aproximava. Primeiro ele fazia a bênção da espada, com alguém genuflexo segurando a espada nua.
Sentado, o bispo benze a espada, pronunciando uma oração em que pede que aquele recipiendário seja o defensor da Igreja, das viúvas, dos órfãos e de todos os servidores de Deus, contra a crueldade dos pagãos e hereges, e seja temor e pavor para todos aqueles que lhe armem insídias: “Que esse teu servo calque aos pés os inimigos visíveis”.
Mais adiante o bispo diz:
“Bendito Senhor meu Deus, que ensinais minhas mãos para a luta e meus dedos para a guerra, que permitistes aos homens o uso da espada para coerção da malícia dos réprobos e proteção da justiça, e quisestes instituir a Ordem da Cavalaria para a proteção do povo, concedei a esse vosso servo forças e audácia para a defesa da fé e da justiça, e dai-lhe o aumento da fé, esperança e caridade; dai-lhe o temor e igualmente o amor a Vós, humildade, perseverança, obediência e boa paciência.
“E que não fira ninguém injustamente com essa ou outra espada, e com ela defenda as coisas justas e retas e se revista do homem novo”. A Igreja assim oferece ao barão feudal um ideal de santidade, pois revestir-se do homem novo é expressão consagrada para exprimir a santificação.
Depois, sentado, ele põe a mitra, o recipiendário se ajoelha diante dele e o bispo entrega-lhe a espada:
“Recebe essa espada em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, e usa-a para tua defesa e defesa da Igreja de Deus e para confusão dos inimigos da Cruz de Cristo e da Fé Cristã”.
Cavaleiros sendo cingidos com a espada. |
O cavaleiro então levanta-se e desembainha a espada. A rubrica determina que ele virilmente agite três vezes a espada sobre a cabeça, e depois limpe-a no braço esquerdo.
Até na Igreja ele representa simbolicamente a luta contra os inimigos de Deus, representando os três golpes e limpando a espada no braço, como se ela estivesse tinta de sangue.
Isso é da liturgia romana, e a própria liturgia manda que ele sacuda a espada três vezes e a limpe, como se tivesse sangue.
Depois disso ele recoloca a espada na bainha, e vem então o ósculo da paz. O bispo e o recipiendário trocam o ósculo da paz, e o bispo diz: “A paz seja contigo”.
Depois o bispo toma novamente a espada desembainhada e bate três vezes sobre o ombro do cavaleiro, dizendo uma fórmula simples e maravilhosa: “Sê um cavaleiro pacífico, intrépido, fiel e devotado a Deus”.
Depois ele repõe na bainha a espada e dá uma leve pancada no rosto do recipiendário, dizendo: “Levanta-te do sono da maldade e vela na Fé de Cristo, numa reputação digna de louvor”.
O cavaleiro então se levanta e beija a mão do bispo. O Pontifical termina dizendo: “E vai em paz”. É verdadeiramente uma delicadeza da liturgia, pois acaba de armar um cavaleiro, um militar, e termina dizendo: “Vai em paz”.
Sacerdote da a Comunhão a cavaleiro que vai partir para a guerra, século XV |
Alguns preferiam ir a Roma para se fazerem armar, talvez com a esperança de serem armados pelo próprio Papa. Quando não era o Papa, era o deão de São Pedro.
Era na velha basílica de S. Pedro, a basílica de Constantino, que não havia ainda sido demolida para ser construída a atual por Michelangelo.
E lá, por autoridade dos apóstolos, o jovem era armado cavaleiro com um ritual um pouco diferente. Esse que nós vimos acabou prevalecendo, e por assim dizer é o que está ainda em uso hoje em dia, figurando no Pontifical.
O ritual que se seguia em Roma continha uma oração, que é talvez mais bonita do que essas do Pontifical Romano.
O consagrante dizia:
“Toma esta espada. Exerce com ela o vigor da justiça, abate com ela o poder da injustiça. Com ela defende a Igreja de Deus e seus fiéis. Com ela dispersa os inimigos de Cristo.
O que está por terra, ergue-o; o que tiveres erguido, conserva-o; o que é injusto aqui em baixo, abate-o; e o que é conforme a ordem, fortifica-o. É assim que, cheio de glória pelo triunfo das virtudes, cultor egrégio da justiça, merecerás reinar eternamente com Cristo, de quem levas o tipo”.
É impossível dar a um homem um programa de vida mais esplêndido, mais impressionante. É um ideal de santidade, uma missão nobilíssima, que propriamente é a missão de construir e conservar a civilização cristã.
A Igreja dava aos cavaleiros o mandato de exercer esse apostolado de espada na mão, destruindo o que não prestava e quem não prestava, mantendo e desenvolvendo aquilo que era bom.
Degradação de um cavaleiro |
A cerimônia da degradação era terrível. O cavaleiro indigno era conduzido à praça principal da cidade por um cortejo de cavaleiros vestidos de luto.
De vez em quando o cortejo parava, e um arauto proclamava em alta voz o crime cometido. No local da cerimônia o cavaleiro era posto sobre um cavalo de madeira, e eram retiradas então todas as peças de sua armadura, uma por uma. Isto era feito sob o escárnio e desprezo dos assistentes.
O cavaleiro estava armado como para o combate. Num estrado, o condenado primeiro era despojado da espada, escudo, elmo e cota de malha.
Atiradas à sua frente, essas armas eram marteladas com um ferro até estarem completamente inutilizadas. Ninguém poderia jamais servir-se de armas que tivessem sido de um mau cavaleiro.
Ao homem desarmado, o oficiante, que na maior parte das vezes era o suserano a quem pertencia o condenado, tinha deixado apenas as esporas. Estas eram-lhe então cortadas, com um machado, rente aos saltos. Depois eram esmagadas com a acha de armas.
De então em diante o cavaleiro destituído não era mais nada, nem mesmo um servo: um homem sem nome, sem parentes e sem amigos. Um morto vivo no campo civil.
O rito da exautoração da Cavalaria evoluiu também para o simbolismo dos seus gestos.
Antes de qualquer cerimônia, o clero recitava, diante do cavaleiro condenado à perda dos seus direitos, as vigílias dos mortos, como se aquele homem não fosse mais do que um cadáver vivo.
Cantavam em seguida o salmo “Deus laudem meam”, que pede para os traidores a maldição de Deus. Vinha a seguir o destroçar das armas e o cortar das esporas, ao qual se juntava por vezes o corte da cauda do cavalo do bandido.
Depois disso, de certa maneira correspondendo ao banho da investidura, se procedia o lavar da cabeça. O celebrante deitava sobre a cabeça do condenado a água morna de uma bacia. Estava assim lavada a unção.
O excluído era destituído com este gesto. Deitado numa padiola, coberto com um lençol e uma mortalha, era levado para uma igreja, onde se procedia às mesmas cerimônias.
Quanto ao escudo de exautorado, estavam-lhe reservadas as piores infâmias. Primeiro, era arrastado na lama, que simultaneamente o manchava moralmente e apagava os sinais que se encontravam pintados.
Assistia à desonra aquele de quem tinha trazido o brasão, mas com a ponta aguda do escudo voltada para cima, outro sinal tradicional de desonra. Depois disso o escudo era por sua vez martelado e ia juntar-se ao amontoado de ferros das outras armas.
Um cavaleiro degradado ficava em tal situação, que geralmente mudava-se de cidade, pois não tinha mais ambiente para continuar vivendo nela.
Igreja do Sangue de Cristo. Bruges, Bélgica. |
Existiam regras, existia o ideal da Cavalaria que se espalhava entre os cavaleiros, e eles os conheciam e procuravam seguir, mas nunca foram formulados em itens e mandamentos.
Mais ou menos como com as regras de etiqueta e polidez. Elas certamente existem, tanto que as pessoas vivem e agem de acordo com elas, e os que não o fazem caem sob a sanção da sociedade, são considerados mal educados, etc.
Mas não existe um documento em que estejam escritas essas regras, como se fossem leis. Algumas pessoas procuraram formulá-las a partir da observação da realidade, mas em geral ninguém as segue por tê-las lido num manual, e sim porque foram educadas desse modo. As pessoas respiram aquilo com o ar.
A mesma coisa com o Código da Cavalaria. Existia o ideal, existiam as regras, os cavaleiros procuravam viver de acordo com elas, mas elas não estavam escritas.
Eles não agiam assim porque elas estavam escritas, mas porque tinham sido educados assim.
Alguns historiadores procuraram formular posteriormente essas regras verificando como é que os cavaleiros agiam, e a partir daí deduzindo as normas que eles seguiam instintivamente, reduzindo-as a preceitos definidos.
Um dos que fez este trabalho foi Léon Gautier, um dos melhores autores em matéria de Cavalaria. Ele formulou o Código da Cavalaria em 10 regras:
1. Crerás em tudo o que ensina a Igreja e observarás todos os seus Mandamentos;
2. Protegerás a Igreja;
3. Respeitarás todas as fraquezas e te constituirás seu defensor;
4. Amarás o país em que nasceste;
5. Não recuarás diante do inimigo;
6. Moverás aos infiéis uma guerra sem trégua e sem mercê;
7. Sempre cumprirás exatamente teus deveres feudais, se não forem contrários à Lei de Deus;
8. Não mentirás, serás fiel à palavra empenhada;
9. Serás liberal, farás liberalidade a todos;
10. Serás sempre e em toda parte o campeão do direito e do bem, contra a injustiça e o mal.
Vejamos agora como é que se realizou cada um desses mandamentos durante a Idade Média, se os mandamentos ficaram apenas no ar ou se de fato foram seguidos.
Godofredo de Bouillon, conquistador de Jerusalém. |
Mas podemos nos servir delas, primeiro porque elas exprimem qual era o ideal da Cavalaria, como é que naquele tempo se julgava o que um cavaleiro devia ser; além disso elas refletem algo da realidade, pois se um fato que está contado ali não aconteceu, pelo menos é verossímil que acontecesse, estava na ordem das coisas que acontecesse, e ninguém achava aquilo absurdo. Mais ou menos como se dá com os romances literários de hoje.
As canções de gesta não têm nada de comum com a realidade de hoje, não refletem fatos concretos de hoje, e se fôssemos escrever um romance situando no mundo moderno fatos como aqueles, seria um absurdo.
Pelo contrário, se descrevêssemos num romance negociatas, patifarias, podemos não estar tratando de fatos reais, e tais patifarias e negociatas podem não ter acontecido daquela forma, mas a descrição refletiria o estado real, não seriam absurdos. Se não aconteceram, poderiam ter acontecido.
Na Idade média, a mesma coisa: os fatos que não são históricos poderiam ter acontecido, estavam na ordem natural das coisas. E muitos dos fatos contados nas canções de gesta são tradições de fatos que aconteceram.
Dom Alfonso VI de Aragão. |
Estabelece que o cavaleiro deve ter fé, professar a Fé Católica Apostólica Romana, que para os medievais era a lei certa. Isto é fundamental na Idade Média: eles têm a certeza da fé.
E é uma fé concreta, uma fé encarnada, que não se alimenta de abstrações nem existe no mundo da lua. Para o cavaleiro, Deus é o senhor feudal celeste. O laço que liga o cavaleiro a Deus é o laço feudal. A Religião é um vínculo feudal.
Essa fé viva, concreta, encarnada, existe em toda a sociedade. O carpinteiro, ao primeiro golpe de seu instrumento, costuma dizer: “Or, y soit Dieu” — Ora, que Deus aí esteja.
O barbeiro, ao tomar a sua navalha, também diz: “Or, y ait Dieu part” — Ora, que Deus aqui tenha parte. Os cavaleiros têm essa fé viva, concreta, encarnada. Naturalmente há sacrílegos, há alguns que se afastam disso, mas são exceções. Eles logo se arrependem e voltam.
Gautier afirma que nunca houve na Terra uma raça mais penetrada da ideia de Deus do que a dos cavaleiros medievais.
A fé se reflete para eles também na confiança em Deus. Confiança em que Deus os protege na guerra, lhes dará a vitória e conservará sua vida. Confiança na paz, nessa Providência que nunca abandonará seus servidores.
Uma das canções de gesta fala de um cavaleiro do qual caçoam porque é pobre. Ele diz: “Sim, eu sou pobre, mas Deus tem bastante. Que importa que eu seja pobre, se Deus é rico?”
O pai desse cavaleiro, quando o manda correr o mundo, dá-lhe quatro moedinhas e lhe diz: “Quando elas já tiverem sido gastas, Deus está no Céu”.
Ou seja, quando você já não mais as tiver, não tem importância, pois Deus está no Céu e não abandonará seus cavaleiros. É uma forma muito bonita de exprimir a confiança na Providência.
Essa fé também se manifesta no arrependimento. O medieval que comete grandes pecados, às vezes também se arrepende de maneira exemplar e faz grandes penitências.
Por exemplo, aquele imperador do Sacro Império, que depois de fazer as maiores tropelias, ser excomungado, ser deposto, se arrepende de tal modo que exige que seus servidores pisem no pescoço dele, porque assim ele queria castigar aquele órgão vocal que proferira blasfêmias contra a autoridade pontifícia.
Um grande pecado seguido de um arrependimento imenso e de uma penitência à altura revela uma fé muito profunda.
Outro, depois de cometer os maiores pecados, as maiores abominações diabólicas, acaba se arrependendo, chorando amargamente seus pecados e suportando o castigo máximo.
Ele é enforcado, dando mostras de grande penitência, incitando ainda seus companheiros de crimes a se arrependerem como ele e a terem confiança na misericórdia de Deus.
Já dissemos que Nossa Senhora é, para o cavaleiro medieval, a sua dama.
Eles têm uma devoção muito especial, mas também uma devoção muito varonil a Nossa Senhora.
Dom Affonso Henriques. |
Confessam-se antes de cada ato solene da vida, antes das batalhas, antes de uma longa viagem, sobretudo na hora da morte.
Se não têm um padre ao alcance, eles se confessam a um leigo, a um parente próximo ou até a um estranho.
Evidentemente não há a absolvição sacramental, não traz o efeito próprio da confissão sacramental, mas incitava, sem dúvida, os sentimentos de arrependimento e contrição.
O fato de a pessoa ter que contar a um amigo ou a um estranho seus pecados, evidentemente provocava uma grande confusão sua ante essas faltas. Era uma maneira de oferecer uma reparação a Nosso Senhor.
Na Canção de Vivien, nós vemos Vivien moribundo, com 15 anos, confessar-se a seu tio, o conde Guillaume: “Recuei um dia diante dos pagãos”. Não encontra nenhum outro pecado para confessar, na hora de morrer.
2º mandamento: Protegerás a Igreja
A Igreja apresenta esse mandamento de maneira impressionante na cerimônia do adoubement, em que o Pontífice diz ao cavaleiro que está sendo sagrado:
“Recebe esta espada, em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo, usada para tua defesa, para a da Santa Igreja de Deus, para confusão dos inimigos da tua Religião”.
Já vimos que o fim da Cavalaria é alargar as fronteiras do reino de Deus. É a força armada ao serviço da verdade desarmada. Esse é o ideal que a Igreja apresenta, e a realidade não foi diversa.
Por isso vemos muito frequentemente nas canções de gesta a expressão “manter a Cristandade”. Essa recomendação, esse ideal oferecido ao cavaleiro, era para ele uma obrigação.
Defender a Igreja também se manifesta, para o cavaleiro, na idéia de morrer pela Fé. Ele não pode viver sem preocupações, deve defender o povo e derramar seu sangue pela Fé.
Quer dizer, a todos os cavaleiros é proposto nada mais nada menos que o martírio. E Pierre d’Auvergne dirige a Nosso Senhor esta oração: “Senhor Jesus, Vós morrestes por mim e eu morro por Vós”.
3º mandamento: Respeitarás todas as fraquezas e te constituirás seu defensor
Este era um mandamento quase incompreensível para aqueles rudes senhores do alvorecer da Idade Média. Dizer a um germano que respeite os fracos e se constitua defensor deles é uma coisa ininteligível. Mas a Igreja propôs isto a eles.
George Castriota, dito Skanderbeg, herói da Albânia. Museu de Kruja, Albânia |
Os fracos são os que não sabem ou não podem usar as armas: os clérigos, as viúvas, os órfãos. Já dissemos que no Pontifical Romano, na cerimônia do adoubement, o cavaleiro é constituído o defensor dos fracos, das viúvas, dos órfãos.
Sabemos que na civilização verdadeiramente cristã as viúvas têm uma posição muito especial e merecem uma estima, uma veneração muito especial. Elas são uma classe especial dentro da Igreja.
Na Canção de Cherrai de Nîmes, o rei oferece ao conde Guillaume os feudos de órfãos e viúvas. Portanto, maior vantagem para o conde. E o conde responde:
“E as viúvas? E os órfãos? Se alguém tocar nesses pequenos ou em suas terras, eis aqui a espada que cortará a cabeça dos traidores e ladrões”.
E Carlos Magno moribundo diz a seu filho: “Em relação aos pobres, deves te humilhar, deves ajudá-los e aconselhá-los”.
É coisa dura para a natureza humana um nobre, um cavaleiro, um soldado se humilhar diante dos pobres. É impossível propor uma coisa mais contrária às inclinações naturais.
Armadura completa feita em Innsbruck, Áustria, por volta de 1500 |
Aí se entende, em primeiro lugar, amar a região, o feudo em que o cavaleiro nasceu. O conde de Flandres, diante de Jerusalém, muito se admira de que Deus tenha querido nascer numa região tão feia: “Eu bem prefiro o meu belo castelo de Arras”.
Para ele, não havia nada mais bonito do que o seu feudo de Arras, e até Deus devia ter nascido em Flandres.
Outro cavaleiro, ao morrer, diz assim: “Santa Maria, nunca mais verei Saint Quentin e Nesle”. Ao morrer, o que mais ele sente é nunca mais ver o seu feudo, nunca mais ver a sua terra natal.
Deve-se também entender aí o amor ao país, encarnado primeiramente no rei. Amar, portanto, ao rei. Talvez em nenhum outro país esse amor à pátria tenha chegado a mais alto grau do que na França.
Para todos os franceses, para aqueles rudes senhores feudais, essa beleza da França é um perpétuo encantamento. Aqueles homens, que com um golpe de espada cortam um mouro pela metade e ainda matam o cavalo, para eles a terra natal é a doce França, a bela França.
5º mandamento: Não recuarás diante do inimigo
Naturalmente não é um mandamento que repugna a um soldado, esta coragem de enfrentar a todo momento a dor e a morte. Melhor valeria ser morto do que ser chamado covarde — diz uma das canções de gesta.
O quotidiano do cavaleiro medieval é a luta armada, a possibilidade de ser gravemente ferido e morrer. Nessa coragem há dois componentes: o elemento germânico e o elemento cristão.
Sabemos que os germanos gostavam da guerra pela guerra, tinham uma coragem um tanto animal. Isso ainda se manteve para os cavaleiros feudais, e é o que explica uma certa coragem imprudente.
Mas havia também um elemento cristão, que Santa Joana d’Arc definiu com aquela famosa frase: “Os soldados batalharão e Deus lhes dará a vitória”.
É a coragem que nasce da confiança em Deus, e também da consciência do dever. Sabem que é um dever para com Deus combater, e combatem, arriscam a vida, arriscam a integridade corporal.
Armaduras dos husardos de Ian Sobieski, rei da Polônia. |
Não se pode imaginar um exército realmente corajoso que não creia na vida eterna, pois arriscar a vida, imaginando que não há nada depois da morte, é uma coisa monstruosa.
Mas se eu sei que, combatendo pela minha pátria, posso até morrer como mártir — supondo-se que ao combater pela pátria eu estou obedecendo a Deus — posso ter certeza de que vou para o Céu, e é claro que isto dá outro entusiasmo e outra coragem.
Os exemplos dessa coragem são inúmeros. Citemos o que ocorreu no castelo de Faria. O senhor de Faria (o fato se passa em Portugal, já na Renascença) vai fazer uma incursão contra os espanhóis e é aprisionado.
Os espanhóis o levam até junto do castelo, que ele comandava pelo rei. O filho tinha ficado no castelo, comandando em lugar do pai. Para ver se o pai convencia o rapaz a entregar o castelo, diante das muralhas os espanhóis mandam chamar o filho e ameaçam de matar o pai, se ele não entregasse o castelo.
Diante dos espanhóis, que estão armados e prontos para matá-lo se o filho não fizer o que eles mandam, ele incita o filho a defender o castelo que ele recebeu do rei de Portugal, e que o sangue dele, que vai ser derramado ali, sirva para fortificar a resistência do castelo.
Ele é imediatamente assassinado. Sabia que ia morrer, mas foi firme. É uma coragem completa.
Os portugueses na Abissínia, também. É um punhadinho, talvez uns 20 ou 30. Desembarcam na Abissínia, um país inteiramente desconhecido, para defender o imperador contra um oceano de mouros.
Na hora de escolher o comandante dessa tropa, aquele que certamente seria o primeiro a morrer, o almirante da esquadra, que é Vasco da Gama, diz que o escolhido não pode ser outro senão o irmão dele.
Para esse cargo, que implica o sacrifício certo da vida, ele escolhe o irmão, que era a esperança da família por ser um jovem de valor extraordinário.
E esse grupinho de portugueses entra pela Abissínia e vai combater com os mouros, em número vinte ou trinta vezes superior. Eles sabem que vão morrer, mas não hesitam, pois está ali um interesse de Deus.
Túmulo de um cavaleiro templário. Temple Church, Londres. |
Gente que entra numa casquinha de noz, para navegar num mar que eles não sabiam como era, não sabiam o que iam ver lá, nem que monstros viviam lá.
Mas trata-se de alargar a Fé e o império, e eles têm coragem. Uma canção de gesta diz: “Eis a morte sobre nós descendo, mas como cavaleiros nós vamos combater”.
6º mandamento: Moverás aos infiéis uma guerra sem trégua e sem mercê
Esse é o objetivo próprio e mais legítimo da coragem medieval: combater o infiel, combater o muçulmano.
Ali está uma representação, uma realização impressionante da palavra da Escritura: “Porei inimizade entre a tua descendência e a dela”.
Pois realmente foi Deus quem pôs essas inimizades entre os cavaleiros medievais e os muçulmanos. Por isso a vida do cavaleiro medieval tem como principal preocupação lutar contra o infiel.
Onde quer que haja um infiel, aí o cavaleiro medieval sente-se em casa para lutar. A tal ponto vai o ódio ao sarraceno, que eles têm a ideia de que tudo que não é cristão é sarraceno. Imaginam, por exemplo, que Clóvis era um rei sarraceno que se converteu.
No século XII, uma canção de gesta diz: “Se estivéssemos no Paraíso, desceríamos para combater os sarracenos”.
Era tal o desejo de lutar contra o sarraceno, que para isso eles seriam capazes até de abandonar o Paraíso. Sem a Cavalaria, talvez a Europa tivesse caído inteiramente sob o jugo muçulmano.
Gilbert de Clare, feito cavaleiro na véspera da batalha. Vitral em Tewkesbury Abbey, Gloucestershire, Inglatera. |
O feudalismo era a organização social da época, e condição de subsistência da civilização cristã. Portanto, é o dever do cavaleiro cumprir inteiramente seus deveres feudais.
A fidelidade feudal tomou um sentido muito especial, uma vida muito mais intensa, quando ela recebeu a nota da Cavalaria. Quando Raul de Cambrai fez queimar um mosteiro de religiosas em que estava a mãe de Benier, seu mais fiel vassalo, morrendo ela também queimada, diante disso esse vassalo diz:
“Meu Senhor Raul é mais traidor do que Judas, mas ele é meu senhor. Por nada do mundo eu lhe faltarei”.
Raul ainda o ofende, chamando-o de bastardo, e depois o esbofeteia. Benier se limita a dizer que se despedirá do serviço dele. Não reage nem se vinga.
O duque Nîmes leva essa fidelidade feudal ao extremo de dizer que não se casava porque todo o seu coração pertencia ao seu senhor.
Um traidor, Fromont, assassina seu senhor e quer extinguir toda a linhagem. O último dessa linhagem era uma criança de poucos meses, que foi confiada à guarda de um vassalo.
O traidor exige que o vassalo traga a criança para ele matar. O vassalo tem um filho da mesma idade. Então, fiel ao seu senhor, entrega o filho a Fromont e o filho é morto, mas a descendência do senhor está salva.
É levar a fidelidade feudal ao máximo que se pode conceber: sacrificar seu próprio filho para salvar a família do suserano.
Aubri, o borguinhão, matou os sobrinhos de seu vassalo Fouqueret e quis desonrar-lhe a filha.
Depois, vencido numa batalha, está a ponto de ser morto. Fouqueret faz esse raciocínio: “Deus, verdadeiro Rei, este é meu senhor. Se o matam, eu o terei traído”.
E ofereceu seu cavalo ao senhor, para ele fugir. O homem que tinha assassinado seus sobrinhos e tinha querido desonrar-lhe a filha, ele o ajuda a fugir, pois não queria ser traidor.
Se por acaso um desses cavaleiros se revolta, mas depois se arrepende, chora amargamente. Os cavaleiros medievais choram muito, pedem perdão.
Aquele Benier acaba matando Raul de Cambrai lealmente, em combate singular. Ele tinha, afinal de contas, todos os motivos para isso.
O Lidador, castelo de Beja, Portugal |
8º mandamento: Não mentirás e serás fiel à palavra empenhada
Roland, falando ao filho do rei da Pérsia, lhe diz: “Comigo, guarda-te de mentir, porque é mácula que muito faz arrepender-se”.
Esta é uma novidade cristã. Nunca se tinha dito aos soldados, antes do Cristianismo, que era uma desonra mentir.
A Igreja propõe isso aos soldados: não mentir, porque a mentira é uma desonra. Nunca faltar à palavra empenhada. Coisa muito característica é que a invocação mais comum do cavaleiro medieval era por Deus que não mente.
Um dos exemplos mais impressionantes dessa fidelidade à palavra empenhada é a de Bayard, já no tempo da decadência da Cavalaria.
Bayard era o primeiro cavaleiro francês, e portanto o primeiro inimigo de Henrique VIII da Inglaterra, que estava em luta contra a França. Para os ingleses, era de importância fundamental eliminar Bayard.
Se eles o conseguissem, o rei de França estaria meio liquidado. Num combate, Bayard vê que está perdido. Então, com um golpe de espada, ele desarma um cavaleiro inglês e o constitui prisioneiro.
Logo depois ele entrega a esse inimigo sua própria espada, e diz: “Eu me ponho sob a sua proteção”.
Quando os inimigos vêm para matar Bayard, o cavaleiro diz: “Não toquem nele, porque ele está sob minha proteção”. Levam então Bayard para o campo inimigo.
Henrique VIII ficou encantado com a notícia, e mandou buscar Bayard. Queria vê-lo, queria conhecê-lo. Trataram-no todos com cortesia, com todo o apreço.
Santo Eduardo III, rei da Inglaterra. |
Mandaram entrar o cavaleiro inglês, que confirmou: “Sim, a coisa passou-se como ele diz. Eu sou prisioneiro dele, e ele está sob a minha proteção”.
Coisa inteiramente inimaginável, mas que está nas crônicas do tempo, é que Henrique VIII e o cavaleiro pediram a Bayard que desse uma volta ali pelos Estados imperiais, e depois o reconduziram até o campo francês, devolvendo-lhe a liberdade.
Devolvem espontaneamente a liberdade àquele que era o pior inimigo deles, porque estava empenhada a palavra daquele pequeno fidalgo que se tinha constituído prisioneiro.
Característico também disso é a prisão sob palavra, em que um cavaleiro é preso pelo inimigo e diz: “Você está preso e ninguém o está vigiando. Pode passear pela cidade, mas não saia dos limites da cidade”. E ele não sai.
João II, o Bom, foi aprisionado pela Inglaterra na Guerra dos Cem Anos, e lhe foi devolvida a liberdade sob certas condições. Ele voltou para a França, mas não pôde cumprir aquelas condições.
Retornou então para a Inglaterra, para novamente se constituir prisioneiro. Deixou o reino acéfalo, pois tinha que ser fiel à palavra empenhada.
Outro exemplo é de São Luís IX em relação aos tratados com a Inglaterra. Seus antepassados haviam feito várias guerras, que tinham tomado partes muito grandes do domínio inglês na França.
São Luís manda verificar os tratados e os documentos, e constata que o rei da Inglaterra tinha direito sobre algumas daquelas terras. E espontaneamente devolveu-as.
9º mandamento: Serás liberal, farás liberalidade a todos
Para dar um exemplo português, o Duque Gemes IV de Bragança vai andando por um caminho, e encontra um pobre que lhe pede esmola. Ele entregou ao pobre o chapéu, pediu-lhe que o segurasse, e em seguida começou a colocar moedas de ouro dentro do chapéu.
A cada nova moeda, perguntava se o pobre estava satisfeito. E o pobre, abismado, mantinha-se quieto. Quando o chapéu estava cheio de ouro, e mais por vergonha do que por outro motivo, o pobre acabou dizendo que sim, que estava satisfeito.
E o duque: “A Deus graças, que vos fartei de ouro”. E foi-se embora. Essa liberalidade, fazer esmola e não ser apegado ao dinheiro é característico do cavaleiro.
Bayard, esse grande general que deu grandes vitórias à França, era de pequena nobreza e foi sempre pobre. Nunca quis receber contribuições daquelas pessoas que se constituíam seus prisioneiros.
Godofredo de Bouillon e os marqueses visitavam constantemente os pobres dos exércitos cruzados e lhes distribuíam víveres. Nos perigos, era muito frequente o cavaleiro fazer um voto de construir um hospital para receber todos os pobres possíveis.
10º mandamento: Serás por toda parte o campeão do direito e do bem, contra a injustiça e o mal
É a coroa do Código. É um mandamento tão grande, que só mesmo a Igreja teria a idéia de propô-lo, ainda mais a soldados.
El Cid, Valladolid, Espanha. |
No rito romano, vimos o bispo dizer ao cavaleiro: “Tudo que estiver por terra e for bom, levanta-o; tudo que estiver de pé e for mau, derruba-o”.
Victor Hugo tem um verso muito bonito a esse respeito. Ele diz sobre o cavaleiro: “Ele escuta por toda parte se alguém pede socorro”.
É essa ideia de que, onde quer que precisem dele, ele está pronto. Mais do que isso, ele procura por todo lado saber se alguém precisa dele. E esse alguém, que podia ser pobre, viúva ou órfão, podia ser também outro cavaleiro ou o rei, e podia ser principalmente a Igreja.
É ainda aqui uma manifestação da ideia feudal. Trata-se de servir o suserano, que é Deus, e o feudo desse suserano é todo o mundo. Os vassalos desse suserano são todo o gênero humano, sobretudo todos os cristãos.
De modo que é preciso trabalhar por toda a Igreja, é preciso trabalhar por toda a extensão do mundo.
A Igreja ainda levou a Cavalaria a um grau mais alto de dignidade criando as Ordens de Cavalaria, que eram Ordens religiosas com os três votos: pobreza, obediência, castidade.
Eram tão Ordens religiosas quanto a de São Bento, a de São Domingos ou a Ordem Franciscana, mas constituídas por cavaleiros e com a função militar.
Assim como os beneditinos rezavam e trabalhavam no campo, assim como os dominicanos pregavam a palavra de Deus, assim como os franciscanos davam o exemplo da pobreza, da mesma forma os cavaleiros de Rodes, de Cristo ou do Templo tinham como obrigação religiosa combater de espada na mão contra os inimigos e pela dilatação do reino de Deus.
São Bernardo, escrevendo sobre a Ordem do Templo, fez da Cavalaria o mais belo elogio.
Historicamente esse código da Cavalaria reinou durante séculos sobre milhões de almas altivas, puras e grandes. Não foi uma coisa no mundo da lua, mas algo que se realizou.
Esse código foi realmente seguido, foi realmente obedecido.
Os exemplos que citei são casos típicos, que refletem a Cavalaria e o ambiente da Idade Média. Se o cavaleiro era fiel a esse código, contava com a recompensa eterna. Ele esperava o Céu como prêmio, que se prometia a todo aquele que combatia.
Renaud de Tor diz numa canção de gesta: “O barão desceu do cavalo, atingido seu corpo por quatro dardos. Quando se viu à morte, que dor, que cólera!
Desembainha uma vez ainda sua espada, passa o braço em seu escudo, e todos os que ele atinge caem mortos. Mas o sangue que dos seus ferimentos escorre é muito abundante, ele não resiste mais e cai por terra.
Então se dirige a Deus e às suas virtudes: ‘Glorioso Senhor Pai, que fostes e sereis eternamente, tende piedade de minha alma, que meu corpo está perdido’.
Volta-se para a gente de França e a saúda muitas vezes. Depois a alma partiu, enquanto o corpo ficou estendido. ‘Te Deum laudamus’ — cantam os anjos, que a levam para o Céu”.
Essa era a morte com que sonhavam os cavaleiros, e como eles geralmente morriam. Com esse sentimento de confiança, com essa coragem até o fim, com essa varonilidade, com essa simplicidade, contando certo com a recompensa final.
Fontes bibliográficas
J.B. Weiss, “Historia Universal”- Tipografia la Educación, Barcelona, 1927, vol. V, p. 503
Funck-Brentano, “Le Moyen Âge” - Hachette, Paris, 1947, p. 154
Léon Gautier, “La Chevalerie” - Arthaud, Paris, 1959, pp. 31-32
Pe. Luís F. de Retana, C.SS.R., “San Fernando III y su Época” - Editorial El Perpetuo Socorro, Madrid, 1941, pp. 242-243 Paul Lacroix, “Moeurs, Usages et Costumes au Moyen Âge et à l’époque de la Renaissance” - Firmin Didot Frères, Fils et Cie., Paris, 1874, pp. 16-17
Paul Lacroix, “Les Arts au Moyen Âge et à l’époque de la Renaissance” - Firmin Didot Frères, Fils et Cie., Paris, 1874
Paul Lacroix, “Vie Militaire et Religieuse au Moyen Âge et à l’époque de la Renaissance” - Firmin Didot Frères, Fils et Cie., Paris, 1873
“Histoire des Ordres Monastiques, Religieux et Militaires, et des Congrégations Seculières de l’un et l’autre sexe, qui ont été établies jusqu’à présent” - Nicolas Gosselin, Paris, 1775
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