domingo, 4 de julho de 2021

Hierarquia e dignidade na cozinha medieval

Tribunal de Poitiers, salle des pas perdus
Fogões do Tribunal de Poitiers, salle des pas perdus
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs








Na cozinha (imaginemos aquela cozinha de heróis, com sete fogões gigantescos, que é o único conservado até hoje do que fora o Palácio Ducal de Dijon) está sentado o cozinheiro de plantão numa poltrona, situada entre o fogão e os diversos serviços, da qual pode contemplar a cozinha inteira.

Na mão tem uma grande colher de pau “que lhe serve para duas finalidades: a primeira, experimentar as sopas e os molhos; a segunda, empurrar os serventes da cozinha para as suas obrigações e, se for necessário, bater neles mais de uma vez”.

Em raras ocasiões ‒ quando chegam as primeiras trufas ou o primeiro arenque novo ‒ apresenta-se o cozinheiro para servir pessoalmente, nesse caso levando a tocha na mão.

Para o grave cortesão que no-las descreve (La Marche) todas estas coisas são sacros mistérios, dos quais fala com respeito e com uma espécie de discurso escolástico.

“Quando eu era pajem ‒ diz La Marche ‒ era ainda demasiado jovem para entender questões de precedência e cerimonial”.


La Marche propõe a seus leitores importantes questões de hierarquia e etiqueta, para ter o gosto de resolvê-las com maduro tato:

‒ “Por que assiste o cozinheiro, e não o servente de cozinha à refeição do senhor? De que modo deve ser nomeado o cozinheiro? Quem deve representá-lo em caso de ausência: o 'hatcur' (encarregado dos assados) ou o 'potagier' (encarregado da sopa)?

‒ “A isto respondo: ‒ diz o sábio La Marche

Padeiro e aprendiz, Bodleian Library, Oxford
Padeiro e auxiliar. Bodleian Library, Oxford.
‒ Quando na corte de um príncipe deve ser nomeado um cozinheiro, devem ser chamados um depois do outro o “maître d'hôtel”, os “écuyers de cuisine” e todos aqueles que estão empregados na cozinha; e o cozinheiro deve ser nomeado por eleição solene, verificada por cada um, sob juramento. E à segunda questão: nem o “hateur” nem o “potagier” podem representá-lo, mas sim o substituto do cozinheiro, que deve ser nomeado igualmente por eleição.

‒ Por que os “panetiers” ( título honorífico que recebiam os que guardavam e serviam o pão ao rei) e os “escanções” (aquele que punha o vinho na copa e o apresentava ao rei; equivaleria ao copeiro de hoje em dia) ocupam respectivamente o primeiro e segundo lugares, antes que os trinchadores e os cozinheiros?

‒ Porque seus cargos referem-se ao pão e ao vinho, coisas santas, glorificadas pela dignidade do Sacramento”.

(Autor: Johan Huizinga, “El Otoño de la Edad Media”, Revista de Occidente, Madrid, 1965, 6ª. Edición.)



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