domingo, 1 de março de 2020

O eco da glória de Cluny superou o milênio


Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs









Por volta de setembro do ano 910, quando reinava na França Carlos III o Simples, portanto no início do feudalismo, deu-se um evento cuja lembrança 1100 anos depois congregou a nata da intelectualidade francesa e mundial.

Objetivo: testemunhar gratidão pela criação da Ordem de Cluny, ramo beneditino, que pela sua grandeza foi chamada também de “Igreja de Cluny”.

O escritor René Bazin foi encarregado pela famosa Académie Française de pronunciar o elogio por ocasião do cumprimento do milenário da maior e mais requintada das abadias que já houve.



Iluminura mostra devoçao cluniacense a Nossa Senhora.
Aos pés dEla, o abade Santo Odon.
Bibliothèque National de France, MSS. ms.latin 17716, fol 23
Também no III milênio foi comemorado o 1100º aniversário enquanto especialistas em computação não arredavam no colossal projeto de reconstruir em realidade virtual aquela que foi a prefigura da Jerusalém Celeste.

Tudo isso porque, como explicou o acadêmico René Bazin em seu histórico panegírico, Cluny exerceu na ordem medieval “a plenitude da missão civilizadora”.

Foi, sim apóstolo do Evangelho, mas também a guardiã de todas as ciências; a fundadora de todas as obras de caridade, a iniciadora ao mesmo tempo dos progressos literário e agrícola, a criadora de uma arte que tomou conta da Europa.

A Académie Française está engajada na defesa da língua francesa contra os bárbaros que renascem sem cessar, disse Bazin.

Mas, Cluny há mais de um milênio já estava salvando o francês e sua fonte latina pelos méritos de seus oradores sacros, historiadores e poetas.

A saga de Cluny é antes de tudo uma belíssima história religiosa marcada em seus três primeiros séculos pelos seus santos abades.

Porque dos nove primeiros, cinco foram declarados santos ou beatos, o que assemelha suas origens ao início da humanidade no Paraíso.

Deve-se a alguns poucos a autoridade que exerceu “a igreja de Cluny”; o progresso que imprimiu em todas suas obras, o selo da perfeição em tudo o que o homem pode conceber e fazer.

Ao bem-aventurado Bernão fundador, aos santos Odo, Maiolo, Hugo e Odilo, que escolheram o catolicismo o mais ortodoxo, inteiramente devotados ao Papado do qual desce para toda a Igreja a promessa divina.

Ábside da nave central, reconstituição virtual.
Abside da nave central, reconstituição virtual.
Foram infatigáveis peregrinos a Roma, onde eles procuravam ensino, justiça e conselho de Pedro, aquele que custodia as Chaves.

Não só isso. Cluny deu ao Papado, seus melhores filhos como São Gregório VII, o beato Urbano II, Pasqual II e Calisto II.

Os Papas sentiam tanta necessidade do apoio dos santos abades nas horas difíceis que São Gregório VII pode escrever a São Hugo:

“Chega a nos parecer que a chama de vosso afeto por Nós está diminuindo, pois não estamos conseguindo obter de Vós o consolo tão frequentemente solicitado de vossa visita.

“Exortamos, pois agora, do fundo de nossos corações, vossa amizade a nos visitar, o mais rápido possível, em atenção às grandes dificuldades em que nos encontramos”.

Interior de Cluny III, reconstituição virtual.
Interior de Cluny III, reconstituição virtual.
Esses abades reinavam sobre 2.000 mosteiros, submissos à Regra e ao Ordo de Cluny.

Eles espalhavam a cultura latina e o espírito da França pelo mundo, pela Espanha, pela Itália, pela Alemanha e pela Polônia.

Em volta da abadia nasceu a cidade de Cluny, num local onde outrora só havia um canil e um rendez-vous de chasse dos condes de Auvergne.

A partir dali, de proche en proche, civilizaram a Borgonha. Por toda parte surgiam os campanários brancos, as florestas eram abatidas, os campos trabalhados, os vinhedos plantados.

A Borgonha tornou-se um país prospero, o melhor desmatado, o melhor construído, rodeado de abadias e de paróquias que eram suas filhas.

Esses abades de sólidas construções de pedra, foram viajantes intrépidos, que assim que podiam se punham em marcha.

Celeiro da abadia
Celeiro da abadia
Viviam rodeados por uma multidão de religiosos que jamais serão esquecidos.

Eles chegavam de todos os ducados, condados e baronias.

De todas as nobrezas e de todas as vassalagens para ficar em pé de igualdade no claustro, doces uns com os outros, audazes, mas gloriosos para sempre.

Na desordem do mundo formaram uma sociedade organizada, polida e justa. Quantas almas vitoriosas nesses mosteiros!

Eles obedeciam e tinham a paz que é possível nesta terra, porque se amavam.

Eles explicam o atrativo, o poder conquistador da vida monástica num mundo abalado por invasões e guerras.


Continua no próximo post: Cluny deu ao mundo uma civilização superior




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