Farmacêutico medieval |
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
A procura de uma vacina ou de um remédio para vencer a epidemia da covid-19 levou à busca das mais diversas fórmulas ou tratamentos de saúde.
E eis que uma poção para os olhos usada há 1.200 anos, portanto dos inícios da Idade Média, mostrou que pode ajudar os cientistas em sua batalha contra a resistência de bactérias a antibióticos atuais, segundo informaram jornais como “Folha de S.Paulo” e “GauchaZH”.
Encontrada num tratado de medicina medieval, a receita foi reproduzida e testada por cientistas da Universidade de Warwick, na Inglaterra. O experimento foi publicado no Scientific Reports, da famosa revista Nature.
Feito à base de cebola, alho, vinho e sais biliares, ele é muito caseiro e se revelou seguro para as células humanas e eficaz no combate a colônias de microrganismos que funcionam como uma proteção para as bactérias, reduzindo a ação dos antibióticos atuais.
O combate ao tártaro dos dentes é um exemplo, mas há outros casos especialmente difíceis de tratar, como o de úlceras nos pés de pacientes diabéticos, em que o unguento medieval mostra sua ativa eficácia.
O bálsamo faz parte do Bald's Leechbook — ou “livro de prescrições médicas de Bald”. Trata-se de um manuscrito compilado no século IX durante as reformas educacionais do rei anglo-saxão Alfredo, o Grande.
Ele foi recuperado e testado por pesquisadores do Ancientbiotics.
Pentafillos (Cinquefoil) e Columbaris (Vervena) Pseudo-Apuleius Herbal, século XI, Bodleian MS Ashmole 1431, fol. 6r |
No caso, o grupo Ancientbiotics foi formado em 2015 por microbiologistas, químicos, farmacêuticos, analistas de dados e medievalistas de várias universidades britânicas e americanas.
Estão entre elas as universidades britânicas de Warwick, Nottingham, Coventry e a americana Universidade da Pensilvânia. Todas estavam à procura de alternativas antigas para a resistência microbiana contemporânea.
Em culturas em laboratório, o unguento de Bald se mostrou eficaz contra cinco diferentes bactérias (Acinetobacter baumani, Stenotrophomonas maltophilia, Staphylococcus aureus, Staphylococcus epidermidis e Streptococcus pyogenes) encontradas em biofilmes que infectam diabéticos.
Por causa da resistência desses biofilmes ou comunidades biológicas com elevado grau de organização onde as bactérias formam comunidades estruturadas, cfr. Wikipedia.
A resistência de ditos biofilmes aos antibióticos atuais pode fazer com que a infecção exija a amputação dos pés, para impedir que os patógenos invadam a corrente sanguínea.
A pesquisa mostrou que o efeito antibacteriano depende de todos os ingredientes estarem combinados nas especificações exatas da receita anglo-saxônica, incluindo um período de ativação de nove dias, escreve a matéria dos mencionados jornais.
A alicina (presente no alho), por exemplo, possui ação antibacteriana, mas o bulbo sozinho não tem atividade contra biofilmes, diz a professora de Warwick Freya Harrison, coautora do artigo.
Segundo Harrison, muitos antibióticos usados atualmente derivam de compostos naturais, mas o trabalho recém-publicado abre outra vereda para a exploração não apenas de substâncias isoladas, mas também da composição entre elas.
Oxford Botanic Gardens |
Afirma Harrison: “Algo em que os especialistas em humanidades da equipe estão especialmente interessados é comparar remédios e ingredientes em textos médicos de diferentes épocas e lugares, para ver qual conhecimento foi transmitido”.
Segundo ela, não há dúvidas de que algumas das receitas do Bald's Leechbook foram copiadas da medicina antiga ou têm paralelos em livros de outros tempos e povos.
A Biblioteca de Londres descreve fórmulas extraídas de autores gregos e romanos antigos, como do médico romano Alexandre de Trales (525 –605 d.C.).
O volume anglo-saxônico ganhou uma segunda tradução conhecida como Lilium Medicinae, redigida em latim em 1305 por um médico francês.
A especialista em manuscritos medievais Erin Connelly criou uma base de dados com as combinações de substâncias sugeridas pelo livro, que descreve nada mais nada menos que 6.000 ingredientes para 359 receitas destinadas a combater 110 doenças.
O trabalho foi árduo, pois os mesmos ingredientes podem aparecer com nomes ou grafias diferentes — conforme ela descreve num artigo da MIT Technology Review.
Além disso, como pode haver ingredientes ativos diferentes dependendo da parte da planta usada, é preciso distinguir raiz, folha, seiva ou semente, fato muito estudado nos tratados monásticos de medicina medieval.
O grupo criou bases de dados tiradas de obras medievais, que ele considera fundamentais para identificar os remédios históricos mais promissores.
E com custos muito acessíveis, pois os experimentos em laboratório devoram muito tempo e dinheiro, observa Christina Lee, da Universidade de Nottingham, especialista no aspecto histórico do trabalho.
Herbarium de Apuleius Platonicus |
Harrison diz que há ainda um longo caminho entre as descobertas do Ancientbiotics e a produção de um remédio para uso médico.
Trata-se de identificar as moléculas antimicrobianas, descobrir a dose certa para cada infecção, evitar efeitos colaterais adversos em testes no laboratório e nas pessoas, bem como conferir se o custo de fabricação compensa.
Mas, segundo a cientista, já existem produtos naturais para tratar de infecções, que até hoje são usados como antimicrobianos seguros e eficazes.
Aliás, é suficiente ir à farmácia mais próxima para conferir a quantidade de remédios naturais que proliferam cada vez mais nas prateleiras.
Remédios muito prezados pelos nossos antepassados, descartados depois pela modernidade, voltam hoje remoçados.
Um exemplo é o mel, usado pelo Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido para tratar de infecções por queimaduras.
Outro é o medicamento antimalárico Artemisinina, que vem do absinto vegetal (Artemisia annua) e foi desenvolvido após o cientista Tu Youyou encontrar um tratamento antigo chinês que o utilizava.
“O mais empolgante para nós é que o ‘Bald’ também indica absinto para tratar a malária”, diz Harrison.
Na abadia delle Tre Fontane, Roma |
O local era outrora pantanoso e usado pelos romanos para matar sem chamar a atenção. Não muitos séculos atrás, os monges beneditinos, que vivem e rezam nessa abençoada abadia, trouxeram eucaliptos medicinais da Austrália para secar os pântanos.
E segundo o velho esquema medieval, puseram-se a estudar as propriedades da nova árvore.
Descobriram nela uma enormidade de aplicações, sobretudo para as vias respiratórias e problemas infecciosos ou de pele. Além do efeito terapêutico, ela produzia deliciosos licores, balas, doces, etc., sempre com o eucalipto.
Confesso que recorri a ele sempre que precisei e nunca falhou. Agora, enquanto escrevo, não sei exprimir a saudade que tenho daqueles eucaliptos. Quem tem saudade de um remédio moderno e eficaz, mas desagradável ao paladar?
São dois mundos: o moderno, prático, mas sem sabedoria, e o medieval, católico, abençoado, sábio, e também eficaz.
Acinetobacter baumani - associada a feridas infectadas em tropas de combate que retornam de zonas de conflito
Stenotrophomonas maltophilia - comumente associada a infecções respiratórias em humanos
Staphylococcus aureus - causa comum de infecções de pele, incluindo abscessos, infecções respiratórias, como sinusite e intoxicação alimentar
Staphylococcus epidermidis - causa comum de infecções causadas por cateter, infecções de feridas cirúrgicas e bacteremia em pacientes imunocomprometidos
Streptococcus pyogenes - causa faringite, amigdalite, escarlatina, celulite, febre reumática e glomerulonefrite pós-estreptocócica, entre outras infecções humanas. Cfr.: “Folha de S.Paulo” e “GauchaZH”.
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