domingo, 3 de abril de 2022

Armonias de Notre Dame tocam o fundo das almas

Saint-Eustache encheu para ouvir o Coro de Notre Dame
Saint-Eustache encheu para ouvir o Coro de Notre Dame no Natal
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs





Passaram-se dois anos e meio desde o incêndio que devastou Notre Dame. Mas quando se anunciou que o coro da Catedral de Notre Dame voltaria a cantar para o Natal na imensa igreja de Saint-Eustache o público acorreu tão numeroso que quase não podiam se ver os cantores, observou o correspondente do “The New York Times”.

A tradição musical de Notre Dame é tão antiga quanto a própria catedral, cujas origens góticas remontam ao século XII. Ali nasceu o cântico polifônico além de se desenvolver o gregoriano e a arte dos órgãos.

Quando a catedral ardeu, muitos choraram o fim de uma época gloriosa, que incluía a velha escola de música da catedral e seus coros, reunidos na Maîtrise de Notre Dame. A maior parte dos músicos e dos auxiliares foi dispensada.

Mas Notre Dame pode dizer de si as palavras de Cícero que a Igreja aplica a si própria: “alios vidi ventos aliasque procelas” (“Eu já vi outros ventos, e afrontei outras tenebrosas tempestades”) (L. Calpurnium Pisonem Oratio, n.IX)

“Estamos motivados pela certeza de que Notre Dame reabrirá”, disse Yves Castagnet, o organista mestre que toca em Notre Dame há 33 anos. O grande órgão não foi atingido pelo incêndio, mas foram desmontadas suas milhares de peças e tubos, um por um, para uma limpeza e aprimoramento profundo. E está sendo montado de novo.

A catedral é um local de peregrinação e seu fechamento para reparação deixa o coração partido. Há a sensação de que algo muito amado está faltando na época do Natal, quando a missa da véspera em Notre Dame se transformava num glorioso concerto de órgãos e coros.

A modo de reparação, mais de 100 igrejas de Paris ofereceram música nas missas e vésperas; mestres organistas e corais deram concertos programados, até as igrejas que a tempestade pós-conciliar devastou com mais intensidade que o incêndio de Notre Dame.

Neste Natal se somou a pandemia com sua variante ômicron, a polêmica do “passaporte sanitário”, as máscaras faciais obrigatórias detestadas por muitos, um alerta nível 4 “não viaje” para a França dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, enfim tudo conspirou contra a saudade da música natalina na catedral mãe de todas as igrejas de Paris.

Maîtrise de Notre Dame, antes do incêndio
Maîtrise de Notre Dame, antes do incêndio
A Maîtrise foi albergada, durante a reconstrução, em igrejas das mais antigas de Paris, como a mãe em desgraça é acolhida nas casas das filhas. Os serviços religiosos da catedral foram transferidos para Saint-Germain-l’Auxerrois.

A Vierge du Pilier, a estátua de Maria mais importante em Notre Dame, está refugiada ali. Ela já fora destruída pelo ódio da Revolução Francesa em 1793, refeita e instalada no local em que todos a vimos, pelo genial Viollet-le-Duc em 1858.

No incêndio, as traves em fogo ou carbonizadas caíram em torno dEla, mas saiu intacta.

Seja-me permitido evocar as incontáveis horas que eu passei rezando junto a ela em também incontáveis ocasiões. Ficava molesto pela incessante circulação de turistas e devotos que passavam diante dela e pela catedral toda, que me faziam pensar na prosaica movimentação das estações de metrô.

Mais de uma vez, reparei que numerosos romeiros ingressavam numa área cercada à sua esquerda, com grandes mesas e volumosos cadernos, e ali escreviam mensagens e sentimentos que não tinham a quem comunicar.

Fiquei curioso e fui ler o que ficava ali escrito para a posteridade. Nunca imaginaria o que li. Fiquei emocionado. Cada página desses imensos cadernos registrava o testemunho comovido de pessoas de todas as línguas que agradeciam as graças recebidas pela simples visita da catedral de Nossa Senhora.

Até tirei fotos de algumas páginas para nunca mais esquecer essa maravilha da ação da graça de Nossa Senhora nas almas do público que até poucos instantes atrás eu comparava erroneamente ao fluxo humano que corre pelo metrô.

Solistas da Maîtrise de Notre-Dame em Saint-Séverin
Solistas da Maîtrise de Notre-Dame em Saint-Séverin
“Tocamos música de 800 anos atrás, cantos gregorianos, requiems e música clássica francesa barroca e romântica alemã”, explica Henri Chalet, diretor da Maîtrise de Notre Dame.

Saint-Eustache, próximo ao Forum des Halles, Saint-Sulpice (maior que Notre Dame), no bairro Saint-Germain-des-Prés, tem dimensões para acolher os concertos dos grandes coros da Maîtrise que atraem as multidões.

Saint-Eustache é uma espécie de versão em miniatura de Notre Dame, inspirado na grande catedral gótica, e dotada de uma extraordinária acústica.

Saint-Sulpice exibe seu estilo barroco tardio, sobre as fundações de uma igreja românica do século XIII. Seu grande órgão de 6.600 tubos é um dos mais fabulosos de Paris e reboa na excelente acústica da igreja.

Os coros de Notre Dame também cantam na gótica Saint-Étienne-du-Mont, numa colina suave do Quartier Latin dedicada a Santa Genoveva, a padroeira de Paris, que pôs em fuga o feroz Átila, rei dos hunos, e cujo antigo sarcófago está ali preservado.

La Maîtrise também estará presente na gótica Saint-Séverin, ainda no Quartier Latin, não longe da catedral, que desde o século XI exibe em seu exterior como Notre Dame, gárgulas e arcobotantes, além de uma rosácea na entrada oeste.

A Sainte Chapelle não é usada como igreja desde a Revolução Francesa, mas, como Notre Dame, é um dos exemplos mais gloriosos da arquitetura gótica do mundo. A luz flui através de vitrais de 2.000 metros quadrados, na maioria do século XIII.

Certa feita, o público foi convidado a se retirar pois chegaria uma comissão do Ministério da Cultura da Itália e haveria uma sessão especial. Fiquei por último para sair, e enquanto lançava um derradeiro olhar admirativo o guarda me convidou a ficar.

Maîtrise de Notre Dame, em Notre Dame de Luxembourg
Maîtrise de Notre Dame, em Notre Dame de Luxembourg
Esse mesmo guarda deu uma explicação fabulosa dos vitrais, de como ler neles a História do mundo desde a Criação até o Juízo Final numa sapiencial e deslumbrante ordenação de cristais e cores.

A agulha da Sainte Chapelle em madeira e chumbo do século XIX, um terço menor mas não diferente da que desabou em Notre Dame, foi criada em 1853 por Adolphe Victor Geoffroy-Dechaume, colega de Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc, que desenhou a agulha de Notre Dame consumida pelas chamas.

Notre Dame tem um espírito que penetra e marca os lugares mais inesperados. Entre esses lugares, há uns que são os mais recônditos e nos quais ninguém – excetuada a graça divina – pode penetrar: o fundo das almas.

E este fundo, infelizmente adormecido após séculos de Revolução, de igualitarismo democrático ou socialista, hoje geme com saudades da velha catedral fechada e procura por todo lado um loca digno para reouvir os velhos cânticos que a impregnavam.

Quem sabe se a Mãe de Deus não quis um desastre como o de 2019 para despertar os corações dos filhos que pareciam não se interessar por Ela.




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